Jaime Gralheiro, A longa marcha para o esquecimento - CETA

<<<                                  QUADRO IX

 

(Gabinete do ministro, D. Rodrigo de Sousa Coutinho. Em cena o Ministro e Gomes de Carvalho.)

MINISTRO

Tu sabes, Luís Gomes, o que eu tenho feito por ti e pelo teu projecto...

GOMES DE CARVALHO

Sei, Excelência. Sei que as gentes de Aveiro e de todas as beiras não poderão, jamais, esquecer o nome de V. Excelência!

MINISTRO

Mas vão esquecer, Luís. Vão esquecer o meu... Vão esquecer o teu... E vão esquecer até as próprias dores e misérias porque passaram. Depois de servidos, esquecer-se-ão de tudo, ou, pior do que isso, lembrar-se-ão, talvez, daqueles que, de maneira oportunista, se souberam aproveitar da obra que nós fizemos. Porque eu acredito que, apesar de tudo, vamos levar a cabo as obras da abertura da barra, até para confundir de vergonha aqueles que as quiseram impedir....

GOMES DE CARVALHO

Se V. Excelência continuar a dar-me o seu apoio, e o senhor superintendente, Carlos Verney, ouvidos surdos à intriga e à calúnia, não tenho dúvidas que a barra vai ser aberta... E depressa!

MINISTRO

Sim! Mas não podemos ter contra nós tanta gente e tantos interesses ofendidos!

GOMES DE CARVALHO

Tanta gente?!... Mas quem é que, afinal, está contra a abertura da barra?

MINISTRO

Bom! Contra a abertura da barra, eu suponho que não estará ninguém.

GOMES DE CARVALHO

Pois aí é que V. Excelência se engana. Claro que ninguém se atreve a dizer que está contra a abertura da barra... Seria demasiado grosseiro! Mas, no fundo, todos aqueles que sentem os seus interesses imediatos atingidos com tal obra se opõem à abertura da barra... Só que não o dizem claramente... Disfarçam e dizem que ela deveria ser aberta noutro local ou, então, que as obras estão a ser mal executadas, ou mal dirigidas, ou então que nunca mais acabam... Enfim! Desculpas...

MINISTRO

Mas é muita gente, e poderosa, nessa situação...

GOMES DE CARVALHO

Poderosa, sim, mas muita não, Excelência!

MINISTRO

Muita sim! São todos os proprietários das marinhas da ria. Não podemos estar sujeitos a levantamentos populares semelhantes aos últimos verificados.

Causam grande perturbação pública. Parecem mal e, depois, prejudicam a marcha normal dos trabalhos

GOMES DE CARVALHO

Isso é verdade! Que prejudicam a marcha normal dos trabalhos é verdade... Agora, quanto ao resto, permita-me V. Exª que discorde.

Os proprietários das marinhas, que têm razão para estarem contra as obras da barra, são apenas, meia dúzia. São apenas os donos daquelas que se situam no ilhéu de Forte Novo. Claro que são as famílias mais antigas e poderosas de Aveiro. E aí é que está o busílis, Sr. Ministro! Agora, os outros, a grande maioria, pelo contrário, depois das obras feitas, irão ver aumentar a produção das suas marinhas em mais de duzentos, trezentos ou quatrocentos por cento.

Isto para não falar da produção agrícola, isto para não falar na melhoria da saúde... isto para não falar de tudo!

MINISTRO

Tu tens razão, Luís. O trágico, meu filho, é que tens razão antes do tempo!

GOMES DE CARVALHO

(Fica perturbado)

Mas... tenho razão, Sr. Ministro!

MINISTRO

Que importa que a tenhas, se ninguém ta dá?!

GOMES DE CARVALHO

O futuro ma dará! Pelo menos, o futuro ma dará!

MINISTRO

(desiludido)
O Futuro... Sabes lá tu quem fará o Futuro... O que interessa, agora, é o presente, meu caro. E eu sou, apenas, um político, percebes? Como político tenho de responder mais pelo presente do que pelo futuro.

Ora, o nosso presente, esta meia dúzia de grandes senhores trazendo à sopa os outros que estão a ser enganados, que continuaram a ser enganados...

GOMES DE CARVALHO

Enquanto não abrirem os olhos, Sr. ministro.

MINISTRO

Eu gosto de ti, Luís. És um moço cheio de força e acreditas naquilo que fazes! Só que és muito ingénuo... Roma e Pavia não se fizeram num dia! Vamos por partes...

Mostra lá o mapa... (Gomes de Carvalho estende o mapa) O que é que já está feito?

GOMES DE CARVALHO

(explica no mapa)

Está construído o dique desde a Gafanha ao ilhéu do Forte Novo, numa distância de 388 braças. No tocante ao dique que sai do ilhéu do Forte Novo e se dirige para os areais de S. Jacinto, já temos construído cerca de 300 braças das 700 previstas. Quer dizer, se não houvesse tantos contratempos, a barra já estava aberta, como eu prometera.

MINISTRO

Concretamente, quanto tempo contas gastar mais?

GOMES DE CARVALHO

A grande dificuldade é a pedra. Já gastámos quase toda a que tirámos das muralhas da cidade...

MINISTRO

Aí está outra questão que tivemos de enfrentar! Tu sabes lá o que me disseram por S. Alteza Real ter autorizado a utilização das pedras da muralha da cidade nos paredões da nova barra! Que era um atentado contra a história... Uma barbaridade!... Sei lá!

GOMES DE CARVALHO

Pois eu acho, Sr. Ministro, que as pedras da muralha, mandada construir pelo grande Infante D. Pedro, o que pela primeira vez se deu conta que Aveiro devia ser protegida dos piratas, porque tinha condições para vir a ser uma grande terra, enfim, as muralhas do sonho do Infante D. Pedro, que também teve razão antes do tempo, continuarão a cumpri-lo, mas agora noutro local...

MINISTRO

Pois... No local... do “presente".

Deixa-te de poesia, Luís! Concretamente: quanto tempo pensas gastar, ainda?

GOMES DE CARVALHO

(Sorrindo e reflectindo)

Se tudo continuar normal e a pedra não faltar, na pior das hipóteses, preciso de mais um ano, Sr. Ministro.

MINISTRO

Mas se eles não vão esperar mais um ano! Temos de arranjar uma solução de compromisso...

GOMES DE CARVALHO

E qual?

MINISTRO

Tens de descobrir a maneira de lhes chegar água salgada bastante para que as marinhas possam funcionar a meio vapor...

GOMES DE CARVALHO

E como?

MINISTRO

Tu é que és o engenheiro... Tu é que sabes disso... Sei lá, talvez abrir uma entrada de água nos diques já construídos...

GOMES DE CARVALHO

Já existe uma entrada dessas, Excelência, entre o Forte Novo e a Gafanha.

MINISTRO

Pois abre outra!

GOMES DE CARVALHO

Não pode ser... Isso era quebrar o dique ao meio... Era correr o risco de deitar tudo a perder...

MINISTRO

Tem de haver uma solução, Luís!... Tem de haver uma solução!

GOMES DE CARVALHO

(reflecte)
Talvez haja, Sr. Ministro, talvez haja! Mas vai atrasar as obras mais um ano! 

MINISTRO

É mais ano menos ano... Qual é a solução?

GOMES DE CARVALHO

Abrir no dique já feito, entre o Forte Novo e S. Jacinto, algumas comportas que permitam a entrada e a saída das águas... Essas comportas são mais pequenas que a outra e não oferecem tanto perigo, mas vão enfraquecer o dique e atrasar a abertura da barra.

MINISTRO

Abre as comportas!

GOMES DE CARVALHO

É contra a minha vontade, Sr. Ministro... Mais vale mais um pássaro na mão que dois a voar!...

MINISTRO

Começas a perceber alguma coisa da política, Luís 

(Riem-se. Escuro.)

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