(Gabinete
do ministro, D. Rodrigo de Sousa Coutinho. Em cena o Ministro
e Gomes de Carvalho.)
MINISTRO
Tu
sabes, Luís Gomes, o que eu tenho feito por ti e pelo teu projecto...
GOMES
DE CARVALHO
Sei,
Excelência. Sei que as gentes de Aveiro e de todas as beiras não poderão,
jamais, esquecer o nome de V. Excelência!
MINISTRO
Mas
vão esquecer, Luís. Vão esquecer o meu... Vão esquecer o teu... E vão
esquecer até as próprias dores e misérias porque passaram. Depois de
servidos, esquecer-se-ão de tudo, ou, pior do que isso, lembrar-se-ão,
talvez, daqueles que, de maneira oportunista, se souberam aproveitar da obra
que nós fizemos. Porque eu acredito que, apesar de tudo, vamos levar a cabo
as obras da abertura da barra, até para confundir de vergonha aqueles que
as quiseram impedir....
GOMES
DE CARVALHO
Se
V. Excelência continuar a dar-me o seu apoio, e o senhor superintendente,
Carlos Verney, ouvidos surdos à intriga e à calúnia, não tenho dúvidas
que a barra vai ser aberta... E depressa!
MINISTRO
Sim!
Mas não podemos ter contra nós tanta gente e tantos interesses
ofendidos!
GOMES
DE CARVALHO
Tanta
gente?!... Mas quem é que,
afinal, está contra a abertura da barra?
MINISTRO
Bom!
Contra a abertura da barra, eu suponho que não estará ninguém.
GOMES
DE CARVALHO
Pois
aí é que V. Excelência se engana. Claro que ninguém se atreve a dizer
que está contra a abertura da barra... Seria demasiado grosseiro! Mas, no
fundo, todos aqueles que sentem os seus interesses imediatos atingidos com
tal obra se opõem à abertura da barra... Só que não o dizem
claramente... Disfarçam e dizem que ela deveria ser aberta noutro local ou,
então, que as obras estão a ser mal executadas, ou mal dirigidas, ou então
que nunca mais acabam... Enfim! Desculpas...
MINISTRO
Mas
é muita gente, e poderosa, nessa situação...
GOMES
DE CARVALHO
Poderosa,
sim, mas muita não, Excelência!
MINISTRO
Muita
sim! São todos os proprietários das marinhas da ria. Não podemos estar
sujeitos a levantamentos populares semelhantes aos últimos verificados.
Causam
grande perturbação pública. Parecem mal e, depois, prejudicam a marcha
normal dos trabalhos
GOMES
DE CARVALHO
Isso
é verdade! Que prejudicam a marcha normal dos trabalhos é verdade...
Agora, quanto ao resto, permita-me V. Exª que discorde.
Os
proprietários das marinhas, que têm razão para estarem contra as obras da
barra, são apenas, meia dúzia. São apenas os donos daquelas que se situam
no ilhéu de Forte Novo. Claro que são as famílias mais antigas e
poderosas de Aveiro. E aí é que está o busílis, Sr. Ministro! Agora, os
outros, a grande maioria, pelo contrário, depois das obras feitas, irão
ver aumentar a produção das suas marinhas em mais de duzentos, trezentos
ou quatrocentos por cento.
Isto
para não falar da produção agrícola, isto para não falar na melhoria da
saúde... isto para não falar de tudo!
MINISTRO
Tu
tens razão, Luís. O trágico, meu filho, é que tens razão antes do
tempo!
GOMES
DE CARVALHO
(Fica
perturbado)
Mas...
tenho razão, Sr. Ministro!
MINISTRO
Que
importa que a tenhas, se ninguém ta dá?!
GOMES
DE CARVALHO
O
futuro ma dará! Pelo menos, o futuro ma dará!
MINISTRO
(desiludido)
O Futuro... Sabes lá tu quem fará o Futuro... O que interessa, agora, é o
presente, meu caro. E eu sou, apenas, um político, percebes? Como político
tenho de responder mais pelo presente do que pelo futuro.
Ora,
o nosso presente, esta meia dúzia de grandes senhores trazendo à sopa os
outros que estão a ser enganados, que continuaram a ser enganados...
GOMES
DE CARVALHO
Enquanto
não abrirem os olhos, Sr. ministro.
MINISTRO
Eu
gosto de ti, Luís. És um moço cheio de força e acreditas naquilo que
fazes! Só que és muito ingénuo... Roma e Pavia não se fizeram num dia!
Vamos por partes...
Mostra
lá o mapa... (Gomes de Carvalho estende o mapa) O
que é que já está feito?
GOMES
DE CARVALHO
(explica
no mapa)
Está
construído o dique desde a Gafanha ao ilhéu do Forte Novo, numa distância
de 388 braças. No tocante ao dique que sai do ilhéu do Forte Novo e se
dirige para os areais de S. Jacinto, já temos construído cerca de 300 braças
das 700 previstas. Quer dizer, se não houvesse tantos contratempos, a barra
já estava aberta, como eu prometera.
MINISTRO
Concretamente,
quanto tempo contas gastar mais?
GOMES
DE CARVALHO
A
grande dificuldade é a pedra. Já gastámos quase toda a que tirámos das
muralhas da cidade...
MINISTRO
Aí
está outra questão que tivemos de enfrentar! Tu sabes lá o que me
disseram por S. Alteza Real ter autorizado a utilização das pedras da
muralha da cidade nos paredões da nova barra! Que era um atentado contra a
história... Uma barbaridade!... Sei lá!
GOMES
DE CARVALHO
Pois
eu acho, Sr. Ministro, que as pedras da muralha, mandada construir pelo
grande Infante D. Pedro, o que pela primeira vez se deu conta que Aveiro
devia ser protegida dos piratas, porque tinha condições para vir a ser uma
grande terra, enfim, as muralhas do sonho do Infante D. Pedro, que também
teve razão antes do tempo, continuarão a cumpri-lo, mas agora noutro
local...
MINISTRO
Pois...
No local... do “presente".
Deixa-te
de poesia, Luís! Concretamente: quanto tempo pensas gastar, ainda?
GOMES
DE CARVALHO
(Sorrindo
e reflectindo)
Se
tudo continuar normal e a pedra não faltar, na pior das hipóteses, preciso
de mais um ano, Sr. Ministro.
MINISTRO
Mas
se eles não vão esperar mais um ano! Temos de arranjar uma
solução de compromisso...
GOMES
DE CARVALHO
E
qual?
MINISTRO
Tens
de descobrir a maneira de lhes chegar água salgada bastante para que as
marinhas possam funcionar a meio vapor...
GOMES
DE CARVALHO
E
como?
MINISTRO
Tu
é que és o engenheiro... Tu é que sabes disso... Sei lá, talvez abrir
uma entrada de água nos diques já construídos...
GOMES
DE CARVALHO
Já
existe uma entrada dessas, Excelência, entre o Forte Novo e a Gafanha.
MINISTRO
Pois
abre outra!
GOMES
DE CARVALHO
Não
pode ser... Isso era quebrar o dique ao meio... Era correr o risco de deitar
tudo a perder...
MINISTRO
Tem
de haver uma solução, Luís!... Tem de haver uma solução!
GOMES
DE CARVALHO
(reflecte)
Talvez haja, Sr. Ministro, talvez haja! Mas vai atrasar as obras
mais um ano!
MINISTRO
É
mais ano menos ano... Qual é a solução?
GOMES
DE CARVALHO
Abrir
no dique já feito, entre o Forte Novo e S. Jacinto, algumas comportas que
permitam a entrada e a saída das águas... Essas comportas são mais
pequenas que a outra e não oferecem tanto perigo, mas vão enfraquecer o
dique e atrasar a abertura da barra.
MINISTRO
Abre
as comportas!
GOMES
DE CARVALHO
É
contra a minha vontade, Sr. Ministro... Mais vale mais um pássaro na mão
que dois a voar!...
MINISTRO
Começas
a perceber alguma coisa da política, Luís
(Riem-se.
Escuro.)
|