(Em cena apenas Gomes de
Carvalho. É de noite. Está a trabalhar no gabinete. Pouco a pouco começam
a ouvir-se vozes. É um arruído popular que se aproxima. Gomes de Carvalho
suspende o que estava a fazer. Vai à janela escutar. Cada vez o arruído se
torna mais nítido. Batem à porta.)
GOMES DE CARVALHO
(Pega na espada e põe-na à
cintura.)
Quem é?
ENCARREGADO
(De fora)
Sou eu, Sr. engenheiro.
GOMES DE CARVALHO
(Abre a porta. O Encarregado
entra esbaforido.)
Que é que se passa?
ENCARREGADO
São eles. Vêm amotinados
e dirigem-se p'ráqui.
GOMES DE CARVALHO
Eles quem?
ENCARREGADO
Os Senhores das Marinhas,
os contrabandistas e o resto da comandita. São centenas de pessoas armadas
com paus, chuços, picaretas, espadas e até armas de fogo. À frente o
cirurgião Almeida Coimbra e o
Governador das Justiças do Porto de Aveiro...
GOMES DE CARVALHO
(admirado)
O Governador das Justiças do Porto de Aveiro?!
ENCARREGADO
Esse mesmo, Sr.
engenheiro: o Governador das Justiças do Porto de Aveiro!
GOMES DE CARVALHO
Mas que tem ele a ver com
isto? É proprietário de marinhas?
ENCARREGADO
Que eu saiba não!
GOMES DE CARVALHO
Será que o Governador das
Justiças do Porto de Aveiro está a
dar cobertura a contrabandistas e
a lacaios arruaceiros?!
(Entra a mulher de Gomes de
Carvalho. Vem em trajes de noite e assustada.)
MARIA FRANCISCA
(assustada)
Luís, que barulho é este?
GOMES DE CARVALHO
Não é nada, filha.
Vai-te deitar...
MARIA FRANCISCA
Não é nada?! Então este
tumulto que nos cerca a casa e a cada momento se torna mais ameaçador não
é nada?!
GOMES DE CARVALHO
São eles, mulher... São
sempre os mesmos... Primeiro, quiseram comprar-me; agora, tentam meter-nos
medo. Vamos recebê-los como deve ser. (Para o encarregado) Cláudio,
vai ao armeiro e traz duas espingardas e todas as munições que houver...
Vamos receber os nossos “convidados” com fogo de artifício!
MARIA FRANCISCA
Cláudio, traga três
espingardas!
GOMES DE CARVALHO
Ó mulher! Deixa isto
connosco...
MARIA FRANCISCA
Senhor meu marido, se V.
Mercê prepara uma recepção aos seus “convidados”, eu, como sua esposa
legítima, tenho de participar...
GOMES DE CARVALHO
(Acariciando-a)
Obrigado! Mas eu ficava mais tranquilo, se fosses para ao pé dos nossos
filhos...
MARIA FRANCISCA
Os meninos estão
entregues às criadas. Sou mais útil aqui. Casamos com comunhão de tudo.
Do perigo, também!
GOMES DE CARVALHO
(Dando-lhe um beijo.)
Do perigo também... (para o encarregado) Cláudio, três
espingardas!
(O encarregado sai. Gomes de
Carvalho vai a uma janela e a mulher a outra. Voltam.)
MARIA FRANCISCA
É melhor apagar a luz.
(Gomes de Carvalho executa.
Entra o encarregado. Entrega uma espingarda a Gomes de Carvalho e outra à
mulher e fica com a outra.)
GOMES DE CARVALHO
As munições?
ENCARREGADO
(puxando três caixas)
Estão aqui, senhor.
(Cada um puxa para junto de
si uma caixa e formam um triângulo defensivo. Apontam as armas e esperam...
A casa começa a ser cercada por uma multidão ululante. Gritam.)
UM
Abaixo os pedreiros
livres!
TODOS
Abaixo!
UMA
Viva a Santa Religião Católica!
TODOS
Viva!
OUTRO
A barra é nossa! Fora com
os ladrões!
TODOS
Fora com os ladrões!...
Fora! Fora!... A barra é nossa!...
OUTRA
Vamos abrir a barra!
TODOS
Todos à barra! Todos à
barra! Ao assalto!... Ao assalto!...
(Grande vozearia. Correm e
afastam-se, inesperadamente. Os três baixam as armas com certo alívio.)
GOMES DE CARVALHO
Não percebo nada
disto!...
ENCARREGADO
Senhor, vão, com certeza,
rebentar os diques!
GOMES DE CARVALHO
Não pode ser!
ENCARREGADO
Era voz pública que os
diques iam ser abertos, hoje, custasse o
que custasse... É o que vão fazer!...
GOMES DE CARVALHO
Rápido! Vai avisar o
comandante da tropa que faz a segurança aos diques. Diz-lhe que as ordens são
expressas: aguentar a todo o custo. Se for preciso, fogo neles! Fogo neles!
Eu sigo já!
ENCARREGADO
(Fazendo continência militar.)
As sua ordens, meu
Sargento Mor! (Sai)
GOMES DE CARVALHO
(Para a mulher)
E tu, Maria Francisca, vai, ou manda, a casa do Sr. Superintendente. Diz-lhe
tudo o que se passa. Toma conta dos filhos e da casa. Isto não é nada. Eu
volto já.
(Dá-lhe um beijo e sai.)
MARIA FRANCISCA
Adeus, Luís. Eu fico à
espera.
(escuro)
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