Jaime Gralheiro, A longa marcha para o esquecimento - CETA

<<<                                  QUADRO VIII

 

(Em cena apenas Gomes de Carvalho. É de noite. Está a trabalhar no gabinete. Pouco a pouco começam a ouvir-se vozes. É um arruído popular que se aproxima. Gomes de Carvalho suspende o que estava a fazer. Vai à janela escutar. Cada vez o arruído se torna mais nítido. Batem à porta.)

GOMES DE CARVALHO

(Pega na espada e põe-na à cintura.)

Quem é?

ENCARREGADO

(De fora)
Sou eu, Sr. engenheiro.

GOMES DE CARVALHO

(Abre a porta. O Encarregado entra esbaforido.)
Que é que se passa?

ENCARREGADO

São eles. Vêm amotinados e dirigem-se p'ráqui.

GOMES DE CARVALHO

Eles quem?

ENCARREGADO

Os Senhores das Marinhas, os contrabandistas e o resto da comandita. São centenas de pessoas armadas com paus, chuços, picaretas, espadas e até armas de fogo. À frente o cirurgião Almeida Coimbra e o Governador das Justiças do Porto de Aveiro...

GOMES DE CARVALHO

(admirado)
O Governador das Justiças do Porto de Aveiro?!

ENCARREGADO

Esse mesmo, Sr. engenheiro: o Governador das Justiças do Porto de Aveiro!

GOMES DE CARVALHO

Mas que tem ele a ver com isto? É proprietário de marinhas?

ENCARREGADO

Que eu saiba não!

GOMES DE CARVALHO

Será que o Governador das Justiças do Porto de Aveiro está a dar cobertura a contrabandistas e a lacaios arruaceiros?!

(Entra a mulher de Gomes de Carvalho. Vem em trajes de noite e assustada.)

MARIA FRANCISCA

(assustada)
Luís, que barulho é este?

GOMES DE CARVALHO

Não é nada, filha. Vai-te deitar...

MARIA FRANCISCA

Não é nada?! Então este tumulto que nos cerca a casa e a cada momento se torna mais ameaçador não é nada?!

GOMES DE CARVALHO

São eles, mulher... São sempre os mesmos... Primeiro, quiseram comprar-me; agora, tentam meter-nos medo. Vamos recebê-los como deve ser. (Para o encarregado) Cláudio, vai ao armeiro e traz duas espingardas e todas as munições que houver... Vamos receber os nossos “convidados” com fogo de artifício!

MARIA FRANCISCA

Cláudio, traga três espingardas!

GOMES DE CARVALHO

Ó mulher! Deixa isto connosco...

MARIA FRANCISCA

Senhor meu marido, se V. Mercê prepara uma recepção aos seus “convidados”, eu, como sua esposa legítima, tenho de participar...

GOMES DE CARVALHO

(Acariciando-a)
Obrigado! Mas eu ficava mais tranquilo, se fosses para ao pé dos nossos filhos...

MARIA FRANCISCA

Os meninos estão entregues às criadas. Sou mais útil aqui. Casamos com comunhão de tudo. Do perigo, também!

GOMES DE CARVALHO

(Dando-lhe um beijo.)
Do perigo também...
(para o encarregado) Cláudio, três espingardas!

(O encarregado sai. Gomes de Carvalho vai a uma janela e a mulher a outra. Voltam.)

MARIA FRANCISCA

É melhor apagar a luz.

(Gomes de Carvalho executa. Entra o encarregado. Entrega uma espingarda a Gomes de Carvalho e outra à mulher e fica com a outra.)

GOMES DE CARVALHO

As munições?

ENCARREGADO

(puxando três caixas)
Estão aqui, senhor.

(Cada um puxa para junto de si uma caixa e formam um triângulo defensivo. Apontam as armas e esperam... A casa começa a ser cercada por uma multidão ululante. Gritam.)

UM

Abaixo os pedreiros livres!

TODOS

Abaixo!

UMA

Viva a Santa Religião Católica!

TODOS

Viva!

OUTRO

A barra é nossa! Fora com os ladrões!

TODOS

Fora com os ladrões!... Fora! Fora!... A barra é nossa!... 

OUTRA

Vamos abrir a barra!

TODOS

Todos à barra! Todos à barra! Ao assalto!... Ao assalto!...

(Grande vozearia. Correm e afastam-se, inesperadamente. Os três baixam as armas com certo alívio.)

GOMES DE CARVALHO

Não percebo nada disto!...

ENCARREGADO

Senhor, vão, com certeza, rebentar os diques!

GOMES DE CARVALHO

Não pode ser!

ENCARREGADO

Era voz pública que os diques iam ser abertos, hoje, custasse o que custasse... É o que vão fazer!...

GOMES DE CARVALHO

Rápido! Vai avisar o comandante da tropa que faz a segurança aos diques. Diz-lhe que as ordens são expressas: aguentar a todo o custo. Se for preciso, fogo neles! Fogo neles! Eu sigo já!

ENCARREGADO

(Fazendo continência militar.)

As sua ordens, meu Sargento Mor! (Sai)

GOMES DE CARVALHO

(Para a mulher)
E tu, Maria Francisca, vai, ou manda, a casa do Sr. Superintendente. Diz-lhe tudo o que se passa. Toma conta dos filhos e da casa. Isto não é nada. Eu volto já. 

(Dá-lhe um beijo e sai.)

MARIA FRANCISCA

Adeus, Luís. Eu fico à espera.

(escuro)

>>>

Página anterior Índice geral Página seguinte