(Gabinete de trabalho de
campo de Luís Gomes de Carvalho. Em cena, Encarregado e Gomes de Carvalho.)
ENCARREGADO
Pode o Sr. Engenheiro ter
a certeza: anda alguém a espalhar boatos e mentiras contra a barra, contra
o paredão, contra tudo o que vossa mercê anda a fazer...
GOMES DE CARVALHO
Essa agora! Como sabes?
ENCARREGADO
Por essa ria a cabo, na
cidade e nas comarcas vizinhas, é voz corrente que a barra está mal
localizada; que no ponto escolhido por vossa mercê nunca a barra há-de
funcionar; mais: que nunca será aberta! Que outros mais sabedores que vossa
senhoria a tentaram abrir e não conseguiram... Enfim! A barra é a nossa
maldição!
GOMES DE CARVALHO
Isso é burrice! A barra
será aberta e o futuro o dirá!
ENCARREGADO
O
pior é que eu tenho medo, Sr. Engenheiro, que esse futuro nunca mais
chegue!...
GOMES DE CARVALHO
Essa agora!... E porque é
que não há-de chegar?
ENCARREGADO
Porque eu conheço-os, Sr.
Engenheiro... Eles, o Rei e os Ministros, contra Vossa Senhoria... Eles hão-de
fazer tudo para minar a obra... Vossa Senhoria verá, quando chegar esse tal
Almeida Coimbra... Até o pessoal que anda a trabalhar já começa a ficar
tocado... A desconfiar... A falar à boca pequena...
(Batem à porta.)
GOMES DE CARVALHO
Vai ver quem é.
(O Encarregado executa.)
ENCARREGADO
(com uma piscadela de olhos)
A gente a falar no
diabo...
ALMEIDA COIMBRA
V.
Senhoria, dá-me licença?
GOMES DE CARVALHO
Faça favor, Sr. Almeida
Coimbra...
ALMEIDA COIMBRA
(cumprimenta)
V. Senhoria está bem?
GOMES DE CARVALHO
Obrigado. E V. Senhoria?
ALMEIDA COIMBRA
Com a graça de Deus...
GOMES DE CARVALHO
Então que o traz por cá?
(Almeida Coimbra olha para o
Encarregado, hesita.)
Faça favor de falar, o
meu encarregado é homem de inteira confiança...
ALMEIDA COIMBRA
Bom!... Eu gostaria que
esta nossa conversa ficasse só entre nós... V. Senhoria compreende...
GOMES DE CARVALHO
Com franqueza, não
compreendo muito bem, mas se V. Senhoria faz questão... (para o
Encarregado) Sai!... (o Encarregado executa) Pronto! Estou à sua
inteira disposição...
ALMEIDA COIMBRA
Sr. Engenheiro Gomes de
Carvalho, eu nem sei como hei-de começar... O assunto que aqui me traz e em
razão do qual pedi a V. Senhoria esta audiência é ... Como dizer... É um
bocado melindroso!...
GOMES DE CARVALHO
(não o tomando muito a sério)
Começo a ficar
preocupado...
ALMEIDA COIMBRA
Bom!... Preocupado... Preocupado
estou eu e todos os habitantes de
Aveiro e das comarcas vizinhas...
GOMES DE CARVALHO
E porquê, posso saber?
ALMEIDA COIMBRA
Por causa das obras da
barra... Da forma como decorrem... Do local escolhido... Enfim, temos sérios
receios de que todo o dinheiro que a cidade de Aveiro e a vila de Esgueira,
enfim, de todo o dinheiro que estamos a gastar não seja, mais uma vez, em
pura merda...
GOMES DE CARVALHO
E qual a razão de tal
receio, Sr. Almeida Coimbra?
ALMEIDA COIMBRA
A razão é simples, Sr.
engenheiro Gomes de Carvalho: em minha opinião e na opinião de muita gente
entendida, a nova barra que V. Senhoria quer abrir está mal localizada. O
local indicado, se é que algum há, terá que ser na Vagueira, onde
presentemente se encontra.
GOMES DE CARVALHO
Que sabe V. Senhoria
disto? É engenheiro hidráulico?
ALMEIDA COIMBRA
Não, como V. Senhoria
sabe, sou, apenas, cirurgião...
GOMES DE CARVALHO
E essa tal “muita gente
entendida” que se opõe à abertura da barra
em S. Jacinto, qual a sua qualificação técnica e científica?
ALMEIDA COIMBRA
Bom! Gente! Como eu, a
quem nasceram os dentes aqui, na ria e na cidade. Gente que as conhece como
as suas próprias mãos...
GOMES DE CARVALHO
Quer dizer: práticos...
ALMEIDA COIMBRA
Chamemos-lhes assim: práticos...
GOMES DE CARVALHO
Sr. Almeida Coimbra, eu
tenho respeito pelos “práticos”, eu próprio também o sou. Só que a
prática, não informada pelas luzes profundas da razão científica, pode
transformar-se numa repetição de erros acumulados.
ALMEIDA COIMBRA
Os mais célebres
engenheiros e hidráulicos que se debruçaram sobre as obras da barra sempre
indicaram o lugar da Vagueira como local indicado.
GOMES DE CARVALHO
Desculpe V. Senhoria, mas
desde os engenheiros holandeses, no século passado, ao engenheiro inglês
Elsden e ao grande professor Dr. Monteiro da Rocha, todos apontaram S.
Jacinto. De resto, todas as tentativas para abrir a barra noutro local se
saldaram pelo mais rotundo fracasso!
ALMEIDA COIMBRA
É verdade! Mas o mesmo
aconteceu com as tentativas para abrir a barra em S. Jacinto!...
GOMES DE CARVALHO
Só que as circunstâncias
foram totalmente diferentes! Para se levar a cabo uma obra como esta, Sr.
Almeida Coimbra, é precisa muita informação, muito cálculo, muito estudo
e muito dinheiro...
Eu não duvido que todos
aqueles que, antes de mim, tentaram abrir a barra tiveram boa vontade, mas
faltou-lhes uma coisa muito importante: conhecimentos científicos.
ALMEIDA COIMBRA
Presunção e água
benta!...
GOMES DE CARVALHO
Não é presunção, Sr.
Almeida Coimbra, é a constatação de um facto. A ciência, em nossos dias,
está a dar saltos prodigiosos e o saber fazer com a ciência é a grande
aquisição deste nosso tempo...
Para abrir a barra é
preciso estudar e conhecer a barra desde o movimento das areias ao sentido
dos ventos; desde o regime das marés; à composição do solo e subsolo;
desde o percurso e direcções das correntes à profundidade das
“cales”; desde a fauna e flora à história económica e social. É
preciso tudo conhecer, tudo relacionar... E eu conheço!...
A decisão de abrir a
barra, ali, em S. Jacinto, é fruto de muita reflexão, de muito estudo,
levado a cabo por mim e por meu Exmo. Sogro, o Sr. Brigadeiro Reinaldo Oudinot.
ALMEIDA COIMBRA
É o grande mal, Sr. Gomes
de Carvalho, é que V. Senhoria após a saída de seu Exmo. Sogro para a
Madeira, alterou profundamente o projecto de S. Excelência...
GOMES DE CARVALHO
Isso é falso!
Tentar atirar o projecto
do meu sogro contra o meu é apenas mais uma tentativa para entorpecer a
marcha dos trabalhos. Nada mais! Garanto-lhe
que nada conseguirão, Sr. Almeida Coimbra!
ALMEIDA COIMBRA
Quer V. Senhoria dizer que
não está disposto a ceder nem uma polegada nas sua posições?
GOMES DE CARVALHO
Não sou fácil cata-vento,
Sr. Almeida Coimbra.
ALMEIDA COIMBRA
Eu sei que toda a “mudança”
tem o seu “preço”... E, às vezes, bem alto!...
GOMES DE CARA VALHO
Não estou a perceber
muito bem onde quer chegar...
ALMEIDA COIMBRA.
A lado nenhum, Sr. Gomes
de Carvalho... Quero, apenas, significar que toda a “mudança” tem um
“custo”... E nós estamos dispostos a pagá-lo...
GOMES DE CARVALHO
Se bem entendo, V. Senhoria está a procurar subornar-me...
ALMEIDA COIMBRA
Perdão! Estou apenas a
procurar mostrar-lhe que o seu projecto nos traz grandes prejuízos, aos
quais nos oporemos, com unhas e dentes!... Se todos os projectos falharam,
até aqui... O de V. senhoria também pode falhar...
GOMES DE CARVALHO
Suponho que saberá que o
“meu” projecto já não é só meu. É o projecto do Governo. É, mesmo,
o projecto de S. Alteza Real!...
ALMEIDA COIMBRA
(displicente)
O Governo... Bom, o
Governo muda facilmente de opinião... E S. Alteza Real, enfim, S. Alteza
Real tem a opinião do Governo...
GOMES DE CARVALHO
Sr. Almeida Coimbra, eu até
percebo que os contrabandistas estejam contra o meu projecto; mas já
percebo mal que os proprietários das marinhas tomem idêntica atitude e não
consigo, mesmo, entender que os proprietários agrícolas embarquem em tal
mercantel furado!...
ALMEIDA COIMBRA
É fácil de perceber, Sr.
Engenheiro Gomes de Carvalho, as águas, apesar das suas promessas de em
dois, três anos, resolver a questão das inundações, cada ano sobem mais
de nível, em vez de baixarem!...
GOMES DE CARVALHO
E o Sr. sabe muito bem
qual a razão por que o prazo primitivamente assinalado não pode ser
cumprido. Foi a falta de verba e foram os senhores que, com as vossas
sucessivas queixas ao Sr. Ministro e ao próprio Príncipe Regente, têm
obrigado as obras a atrasarem...
Seja como for, eu lhe
garanto que, quando a barra estiver aberta, e vai está-lo dentro em breve,
o negócio das marinhas subirá em flecha, porque entrará muito mais água
salgada na ria...
ALMEIDA COIMBRA
Só que, se entrar mais água,
mais esta alagará os campos... e lá se vai o resto da agricultura da região...
GOMES DE CARVALHO
Errado, Sr. Almeida
Coimbra, errado! Se entrar mais água, mais água sairá, porque a barra não
serve só para deixar entrar mais água; serve, também, para a deixar
sair... Depois, não se esqueça que os canais da ria serão limpos e
refundados. Os campos do Vouga voltaram a produzir milhões de alqueires de
cereais. Eu lhe garanto!
ALMEIDA COIMBRA
Dessa conversa fiada
estamos nós fartos, Sr. Gomes de Carvalho! Queremos é factos, factos!
GOMES DE CARVALHO
E tê-los-ão dentro em
breve, Sr. Almeida Coimbra.
ALMEIDA COIMBRA
E tê-los-emos, mas não
será aqueles que julga!...
(Sai abruptamente, sem se
despedir. Gomos de Carvalho é apanhado de surpresa.)
GOMES DE CARVALHO
Ai o filho da puta!...
(chama)
Cláudiol...
(Entra o Encarregado.)
ENCARREGADO
Pronto, Sr. engenheiro!
GOMES DE CARVALHO
Ouviste?
ENCARREGADO
Ouvi...
GOMES DE CARVALHO
E então, que te parece?
ENCARREGADO
Foi declarada guerra!
GOMES DE CARVALHO
Se querem guerra, vamos à
guerra!... Senta-te. Escreve ai.
ENCARREGADO
(Prepara-se para escrever,
enquanto Gomes de Carvalho bufa e passeia agitado.)
GOMES DE CARVALHO
Ai o filho da puta!... Ai
o filho da puta!...
ENCARREGADO
Pronto, Sr. engenheiro!
GOMES DE CARVALHO
Escreve: ao cimo - "Edital".
Mais abaixo: «Luís Gomes
de Carvalho, Sargento Mor do Real Corpo de Engenheiros»... etc., etc. O
costume... Está?
ENCARREGADO
Está, Sr. Engenheiro.
GOMES DE CARVALHO
“Tendo imaginado e
exposto a Sua Alteza Real um projecto para escorrer as águas estagnadas da
Ria, desencharcar as marinhas, os campos e a cidade”. Está?
ENCARREGADO
...e a cidade...
GOMES DE CARVALHO
E tendo Sua Alteza Real
concordado com tal projecto, tenho a honra de comunicar aos senhores
proprietários das marinhas que deverão começar a prepará-las já, porque,
ainda este ano, as águas doces
serão escoadas e substituídas por águas salgadas das novas marés...
Aveiro, 15 de Março de
1805. O resto é o do estilo.
Manda imprimir. Enche a
cidade e as comarcas à volta com editais do mesmo teor.
Vamos caçar na mesma
coutada. E quem tem unhas que toque a viola!...
(Riem-se satisfeitos. Escuro.)
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