Jaime Gralheiro, A longa marcha para o esquecimento - CETA

<<<                                  QUADRO VII

(Gabinete de trabalho de campo de Luís Gomes de Carvalho. Em cena, Encarregado e Gomes de Carvalho.)

ENCARREGADO

Pode o Sr. Engenheiro ter a certeza: anda alguém a espalhar boatos e mentiras contra a barra, contra o paredão, contra tudo o que vossa mercê anda a fazer...

GOMES DE CARVALHO

Essa agora! Como sabes?

ENCARREGADO

Por essa ria a cabo, na cidade e nas comarcas vizinhas, é voz corrente que a barra está mal localizada; que no ponto escolhido por vossa mercê nunca a barra há-de funcionar; mais: que nunca será aberta! Que outros mais sabedores que vossa senhoria a tentaram abrir e não conseguiram... Enfim! A barra é a nossa maldição!

GOMES DE CARVALHO

Isso é burrice! A barra será aberta e o futuro o dirá!

ENCARREGADO

O pior é que eu tenho medo, Sr. Engenheiro, que esse futuro nunca mais chegue!...

GOMES DE CARVALHO

Essa agora!... E porque é que não há-de chegar?

ENCARREGADO

Porque eu conheço-os, Sr. Engenheiro... Eles, o Rei e os Ministros, contra Vossa Senhoria... Eles hão-de fazer tudo para minar a obra... Vossa Senhoria verá, quando chegar esse tal Almeida Coimbra... Até o pessoal que anda a trabalhar já começa a ficar tocado... A desconfiar... A falar à boca pequena...

(Batem à porta.)

GOMES DE CARVALHO

Vai ver quem é.

(O Encarregado executa.)  

ENCARREGADO

(com uma piscadela de olhos)

A gente a falar no diabo...

ALMEIDA COIMBRA

V. Senhoria, dá-me licença?

GOMES DE CARVALHO

Faça favor, Sr. Almeida Coimbra...

ALMEIDA COIMBRA

(cumprimenta)

V. Senhoria está bem?

GOMES DE CARVALHO

Obrigado. E V. Senhoria?

ALMEIDA COIMBRA

Com a graça de Deus...

GOMES DE CARVALHO

Então que o traz por cá?

(Almeida Coimbra olha para o Encarregado, hesita.)

Faça favor de falar, o meu encarregado é homem de inteira confiança...

ALMEIDA COIMBRA

Bom!... Eu gostaria que esta nossa conversa ficasse só entre nós... V. Senhoria compreende...

GOMES DE CARVALHO

Com franqueza, não compreendo muito bem, mas se V. Senhoria faz questão... (para o Encarregado) Sai!... (o Encarregado executa) Pronto! Estou à sua inteira disposição...

ALMEIDA COIMBRA

Sr. Engenheiro Gomes de Carvalho, eu nem sei como hei-de começar... O assunto que aqui me traz e em razão do qual pedi a V. Senhoria esta audiência é ... Como dizer... É um bocado melindroso!...

GOMES DE CARVALHO

(não o tomando muito a sério)

Começo a ficar preocupado...

ALMEIDA COIMBRA

Bom!... Preocupado... Preocupado estou eu e todos os habitantes de Aveiro e das comarcas vizinhas...

GOMES DE CARVALHO

E porquê, posso saber?

ALMEIDA COIMBRA

Por causa das obras da barra... Da forma como decorrem... Do local escolhido... Enfim, temos sérios receios de que todo o dinheiro que a cidade de Aveiro e a vila de Esgueira, enfim, de todo o dinheiro que estamos a gastar não seja, mais uma vez, em pura merda...

GOMES DE CARVALHO

E qual a razão de tal receio, Sr. Almeida Coimbra?

ALMEIDA COIMBRA

A razão é simples, Sr. engenheiro Gomes de Carvalho: em minha opinião e na opinião de muita gente entendida, a nova barra que V. Senhoria quer abrir está mal localizada. O local indicado, se é que algum há, terá que ser na Vagueira, onde presentemente se encontra.

GOMES DE CARVALHO

Que sabe V. Senhoria disto? É engenheiro hidráulico?

ALMEIDA COIMBRA

Não, como V. Senhoria sabe, sou, apenas, cirurgião...

GOMES DE CARVALHO

E essa tal “muita gente entendida” que se opõe à abertura da barra em S. Jacinto, qual a sua qualificação técnica e científica?

ALMEIDA COIMBRA

Bom! Gente! Como eu, a quem nasceram os dentes aqui, na ria e na cidade. Gente que as conhece como as suas próprias mãos...

GOMES DE CARVALHO

Quer dizer: práticos...

ALMEIDA COIMBRA

Chamemos-lhes assim: práticos...

GOMES DE CARVALHO

Sr. Almeida Coimbra, eu tenho respeito pelos “práticos”, eu próprio também o sou. Só que a prática, não informada pelas luzes profundas da razão científica, pode transformar-se numa repetição de erros acumulados.

ALMEIDA COIMBRA

Os mais célebres engenheiros e hidráulicos que se debruçaram sobre as obras da barra sempre indicaram o lugar da Vagueira como local indicado.

GOMES DE CARVALHO

Desculpe V. Senhoria, mas desde os engenheiros holandeses, no século passado, ao engenheiro inglês Elsden e ao grande professor Dr. Monteiro da Rocha, todos apontaram S. Jacinto. De resto, todas as tentativas para abrir a barra noutro local se saldaram pelo mais rotundo fracasso!

ALMEIDA COIMBRA

É verdade! Mas o mesmo aconteceu com as tentativas para abrir a barra em S. Jacinto!...

GOMES DE CARVALHO

Só que as circunstâncias foram totalmente diferentes! Para se levar a cabo uma obra como esta, Sr. Almeida Coimbra, é precisa muita informação, muito cálculo, muito estudo e muito dinheiro...

Eu não duvido que todos aqueles que, antes de mim, tentaram abrir a barra tiveram boa vontade, mas faltou-lhes uma coisa muito importante: conhecimentos científicos.

ALMEIDA COIMBRA

Presunção e água benta!...

GOMES DE CARVALHO

Não é presunção, Sr. Almeida Coimbra, é a constatação de um facto. A ciência, em nossos dias, está a dar saltos prodigiosos e o saber fazer com a ciência é a grande aquisição deste nosso tempo...

Para abrir a barra é preciso estudar e conhecer a barra desde o movimento das areias ao sentido dos ventos; desde o regime das marés; à composição do solo e subsolo; desde o percurso e direcções das correntes à profundidade das “cales”; desde a fauna e flora à história económica e social. É preciso tudo conhecer, tudo relacionar... E eu conheço!...

A decisão de abrir a barra, ali, em S. Jacinto, é fruto de muita reflexão, de muito estudo, levado a cabo por mim e por meu Exmo. Sogro, o Sr. Brigadeiro Reinaldo Oudinot.

ALMEIDA COIMBRA

É o grande mal, Sr. Gomes de Carvalho, é que V. Senhoria após a saída de seu Exmo. Sogro para a Madeira, alterou profundamente o projecto de S. Excelência...

GOMES DE CARVALHO

Isso é falso!

Tentar atirar o projecto do meu sogro contra o meu é apenas mais uma tentativa para entorpecer a marcha dos trabalhos. Nada mais! Garanto-lhe que nada conseguirão, Sr. Almeida Coimbra!

ALMEIDA COIMBRA

Quer V. Senhoria dizer que não está disposto a ceder nem uma polegada nas sua posições?

GOMES DE CARVALHO

Não sou fácil cata-vento, Sr. Almeida Coimbra.

ALMEIDA COIMBRA

Eu sei que toda a “mudança” tem o seu “preço”... E, às vezes, bem alto!...

GOMES DE CARA VALHO

Não estou a perceber muito bem onde quer chegar...

ALMEIDA COIMBRA.

A lado nenhum, Sr. Gomes de Carvalho... Quero, apenas, significar que toda a “mudança” tem um “custo”... E nós estamos dispostos a pagá-lo...

GOMES DE CARVALHO

Se bem entendo, V. Senhoria está a procurar subornar-me...

ALMEIDA COIMBRA

Perdão! Estou apenas a procurar mostrar-lhe que o seu projecto nos traz grandes prejuízos, aos quais nos oporemos, com unhas e dentes!... Se todos os projectos falharam, até aqui... O de V. senhoria também pode falhar...

GOMES DE CARVALHO

Suponho que saberá que o “meu” projecto já não é só meu. É o projecto do Governo. É, mesmo, o projecto de S. Alteza Real!...

ALMEIDA COIMBRA

(displicente)

O Governo... Bom, o Governo muda facilmente de opinião... E S. Alteza Real, enfim, S. Alteza Real tem a opinião do Governo...

GOMES DE CARVALHO

Sr. Almeida Coimbra, eu até percebo que os contrabandistas estejam contra o meu projecto; mas já percebo mal que os proprietários das marinhas tomem idêntica atitude e não consigo, mesmo, entender que os proprietários agrícolas embarquem em tal mercantel furado!...

ALMEIDA COIMBRA

É fácil de perceber, Sr. Engenheiro Gomes de Carvalho, as águas, apesar das suas promessas de em dois, três anos, resolver a questão das inundações, cada ano sobem mais de nível, em vez de baixarem!...

GOMES DE CARVALHO

E o Sr. sabe muito bem qual a razão por que o prazo primitivamente assinalado não pode ser cumprido. Foi a falta de verba e foram os senhores que, com as vossas sucessivas queixas ao Sr. Ministro e ao próprio Príncipe Regente, têm obrigado as obras a atrasarem...

Seja como for, eu lhe garanto que, quando a barra estiver aberta, e vai está-lo dentro em breve, o negócio das marinhas subirá em flecha, porque entrará muito mais água salgada na ria...

ALMEIDA COIMBRA

Só que, se entrar mais água, mais esta alagará os campos... e lá se vai o resto da agricultura da região...

GOMES DE CARVALHO

Errado, Sr. Almeida Coimbra, errado! Se entrar mais água, mais água sairá, porque a barra não serve só para deixar entrar mais água; serve, também, para a deixar sair... Depois, não se esqueça que os canais da ria serão limpos e refundados. Os campos do Vouga voltaram a produzir milhões de alqueires de cereais. Eu lhe garanto!

ALMEIDA COIMBRA

Dessa conversa fiada estamos nós fartos, Sr. Gomes de Carvalho! Queremos é factos, factos!

GOMES DE CARVALHO

E tê-los-ão dentro em breve, Sr. Almeida Coimbra.

ALMEIDA COIMBRA

E tê-los-emos, mas não será aqueles que julga!...

(Sai abruptamente, sem se despedir. Gomos de Carvalho é apanhado de surpresa.)

GOMES DE CARVALHO

Ai o filho da puta!...

(chama)
Cláudiol...

(Entra o Encarregado.)

ENCARREGADO

Pronto, Sr. engenheiro!

GOMES DE CARVALHO

Ouviste?

ENCARREGADO

Ouvi...

GOMES DE CARVALHO

E então, que te parece?

ENCARREGADO

Foi declarada guerra!

GOMES DE CARVALHO

Se querem guerra, vamos à guerra!... Senta-te. Escreve ai.

ENCARREGADO

(Prepara-se para escrever, enquanto Gomes de Carvalho bufa e passeia agitado.)

GOMES DE CARVALHO

Ai o filho da puta!... Ai o filho da puta!...

ENCARREGADO

Pronto, Sr. engenheiro!

GOMES DE CARVALHO

Escreve: ao cimo - "Edital".

Mais abaixo: «Luís Gomes de Carvalho, Sargento Mor do Real Corpo de Engenheiros»... etc., etc. O costume... Está?

ENCARREGADO

Está, Sr. Engenheiro.

GOMES DE CARVALHO

“Tendo imaginado e exposto a Sua Alteza Real um projecto para escorrer as águas estagnadas da Ria, desencharcar as marinhas, os campos e a cidade”. Está?

ENCARREGADO

...e a cidade...

GOMES DE CARVALHO

E tendo Sua Alteza Real concordado com tal projecto, tenho a honra de comunicar aos senhores proprietários das marinhas que deverão começar a prepará-las já, porque, ainda este ano, as águas doces serão escoadas e substituídas por águas salgadas das novas marés...

Aveiro, 15 de Março de 1805. O resto é o do estilo.

Manda imprimir. Enche a cidade e as comarcas à volta com editais do mesmo teor.

Vamos caçar na mesma coutada. E quem tem unhas que toque a viola!...

(Riem-se satisfeitos. Escuro.)

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