(Entra
o APRESENTADOR)
APRESENTADOR
O
licenciado Custódio de Pinho Queimado tinha razão. Se ninguém deitasse a
mão a Aveiro, Aveiro, mais tarde ou mais cedo, acabaria por desaparecer.
Efectivamente, de 1736 a 1760, durante 24 anos, da barra de Aveiro apenas
saíram onze navios... Dos 14.000 habitantes ficaram cerca de 3.000; das 300
embarcações nenhuma!...
Aveiro transformou-se num pântano, ocupado por alguns mendigos, estropiados
e doentes...
(Entram
os mendigos, os estropiados e os doentes. Uns estendem a mão; outros fitam
abismados os escombros das casas, as silvas que tomaram conta dos quintais .
Caminham com água até à cintura. Arrastam-se. Um som tenebroso de rãs e
sapos mistura-se com o som fúnebre da “encomendação” das almas...).
VELHO/A
MENDIGO/A
Não
há sítio onde a gente possa descansar em seco...
UM
DOENTE
Onde
a gente possa morrer... em seco!
UM
ALEIJADO
Ainda
me lembro quando tudo isto por aqui era um bairro de luxo... Havia mais de
15 ou 16 casas com sege montada, que vos digo eu... mais de 15... Isso é
que era tempo, caramba!...
MENDIGO/A
Hoje
não há nem uma sege, quanto mais 15... Até as casas... Olha só para
isto!... Até as casas desapareceram... E tudo quintais cobertos de junco...
Cobertos de Iodo... Somos uma terra cemitério: os que morrem são mais que
o dobro dos que nascem...
ALEIJADO
Até
as famílias mais ricas são obrigadas a vender a telha das suas casas para
poderem comer alguma coisa...
MENDIGO/A
Que
remédio! Ninguém lhes compra mais nada! Quem é que quer as casas ou as
terras, em Aveiro? Ao menos a telha ainda se pode levar para outro lado...
DOENTE
Não
há direito... Não há direito que o Rei tenha proibido a venda de telha
das casas...
ALEIJADO
O
rei proibiu?!
MENDIGO/A
É,
proibiu... Dizem que foi para não arrancarem com tudo daqui...
ALEIJADO
Que
venha para cá o Rei viver!
MENDIGO/A
Que
Rei?... O Rei quer lá saber da gente...
DOENTE
Dizem
que o Duque de Aveiro foi falar com Sebastião José...
ALEIJADO
Quem
é Sebastião José?...
MENDIGO
Tu
não sabes quem é o Sebastião José?
ALEIJADO
Eu
cá não...
MENDIGO/A
É
o que manda mais...
ALEIJADO
Mais
que o rei?...
MENDIGO/A
Mais
que o rei!... Eu sei lá se ele manda mais que o rei... Ou se é o rei que
manda por ele... Eu só sei que eles estão para lá juntos na Corte... E
que não se faz, nem desfaz nada que não seja o tal Sebastião José a
fazer... Ou a desfazer... Isso é que eu sei... Agora quem manda mais...
DOENTE
Pois,
dizem que o Duque de Aveiro tomou o nosso partido e foi falar com o tal
Sebastião José... Ou com o rei... Para darem uma volta a isto!
ALEIJADO
Num
acredito!
MENDIGO/A
Que
admiração! O duque é o que mais perde... Se esta merda for toda para
debaixo de água... Que venha cá, depois, o Duque cobrar as rendas e os
foros às rãs e aos sapos... Olha o Duque...
(Escuro.
Noutro local. Em cena o Marquês de
Pombal; O Duque de Aveiro e os vereadores da Câmara de Aveiro; o Clero e o
Povo)
MARQUÊS
DE POMBAL
E
quereis vós, então, deixar de pagar os 5000 cruzados de cabeção que vos
foi imposto...
DUQUE
DE AVEIRO
Exacto,
Excelência... Os moradores de Aveiro encontram-se reduzidos a tal pobreza
que não podem pagar esse cabeção. E nem é justo que o paguem, Excelência...
MARQUÊS
Como
não é justo? Se toda a gente paga o seu cabeção, por que razão os de
Aveiro não hão-de pagar o deles? Quereis vós explicar-me, Duque?
DUQUE
É
fácil, Excelência: o cabeção de Aveiro foi imposto, tendo em consideração
os lucros que aos povos desta comarca advinham da sua ria e da sua barra.
Ora, a barra, como sabeis, fechou; não entra, nem sequer, um barco;
acabou-se a riqueza de Aveiro... Não podeis, vós, exigir que esta gente,
que morre, assim na miséria, tire à boca o pouco que tem para vo-Io dar!
(Os
de Aveiro batem palmas)
MARQUÊS
Espero
que não vos esqueçais do que acabastes de dizer quando mandardes cobrar os
vossos direitos...
DUQUE
É
bem certo o ditado, Excelência: onde não o há... El-rei o perde...
MARQUÊS
Os
ditados populares servem para tudo, Sr. Duque de Aveiro! Mas... adiante...
vamos ao que interessa: Sua Majestade vai ajudar... Mas tereis de ser vós a
ajudar também... Porque sem a vossa ajuda, a ajuda de Sua Majestade pouco
ou nada vale... Eu explico: os bêbados de Aveiro, a partir de hoje, vão
passar a pagar o vinho mais caro...
(Todos
se riem)
DUQUE
É
justo! É justo !...
MARQUÊS
E
o mesmo acontecerá aos que ainda podem comprar carne... (O Duque
sorriu) Assim, sobre cada quartilho de vinho e sobre cada arrátel de
carne será lançado o imposto de um real. Este imposto destina-se às obras
da barra e só existirá enquanto as obras durarem. Será pago pela vila de
Aveiro e em toda a comarca de Esgueira, pois que participa, também, das
mesmas vantagens. Mãos à obra, meus senhores!
(Todos
batem palmas)
UM
POPULAR
Viva
o Sr. Primeiro Ministro!
TODOS
Viva!
DUQUE
Viva
sua majestade!
TODOS
Viva
sua majestade!
OUTRO
POPULAR
Viva
o Duque de Aveiro!
TODOS
Viva
o Duque de Aveiro!
(Palmas.
Escuro)
(No
primeiro local, outra vez os Mendigos, os Doentes e os Aleijados)
ALEIJADO
Lá
prometer prometeu ele... Agora fazer!...
MENDIGO/A
Não!
Alguma coisa já se fez...
(Entra
um bêbado)
BÊBADO
Adeus,
ó barra de Aveiro,
Apertada como o cu!
Tornaste mais caro o vinho,
Arrasada sejas tu!...
Viva o nosso primeiro!
Viva sua Majestade!
DOENTE
Já
que estamos em maré de vivas, acrescente lá o Duque de Aveiro, amigo. O
Duque também ajudou...
BÊBADO
Schiu!
Quem é que falou no Duque de Aveiro?
DOENTE
Fui
eu!
BÊBADO
Não
fala mais no Duque... O Duque acabou!... Só nos saem duques, uma destas
!... (Canta)
“Adeus,
ó barra de Aveiro”...
DOENTE
Que
é que você tem contra o Duque?
BÊBADO
Eu?
Nada!... Eu tenho lá alguma coisa contra o Duque... Quer dizer: até
tenho... Tenho, sim senhor... Também ajudou a tornar o vinho mais caro...
Abaixo o Duque!...
MENDIGA
Você
tome cuidado com o que está a dizer, homem... Lá por estar bêbedo...
BÊBADO
Cuidado,
eu?! Vocês é que tomem cuidado... Ponham-se p’raí a gabar o Duque e
depois, se ficarem sem a cabeça, não se queixem...
(canta)
“Adeus,
ó barra de Aveiro”...
ALEIJADO
Que
baboseiras são essas que você está p’raí a dizer?
BÊBADO
Baboseiras...
Ai eu é que estou a dizer baboseiras?!...
ALEIJADO
Baboseiras,
sim!...
BÊBADO
Pois
então fica sabendo, meu perneta, que o Duque... O grande Duque de Aveiro...
Foi dentro, pequena... Está na jaula! Olariques, na jaula!...
MENDIGA
Na
jaula? Você sabe o que está a dizer?!... Na jaula, o Duque de Aveiro?!
BÊBADO
Na
jaula!... Pois!... Na jaula!... O Sr. Duque de Aveiro, nosso amo e senhor,
andou aos tirinhos ó Rei e agora está... Fodido!...
MENDIGA
Ó
homem, cale-se!...
(Todos
lhe tapam a boca e ele continua a dizer por gestos o que não lhe deixam
dizer com a boca. Escuro. Noutro local, de novo o Marquês e a Câmara de
Aveiro, reunida)
JUIZ
DE FORA
(solene)
Excelência, em nome das gentes de Aveiro, queremos testemunhar a V. Excelência
e particularmente a sua Majestade Real, o nosso repúdio, pelo sacrílego
acto cometido contra a sagrada vida do nosso Augusto Senhor.
Por
isso, pedimos que a nossa terra deixe de estar dependente de quaisquer donatários
e passe a estar ligada ao domínio directo de S. Majestade.
Mais:
Para que não continue a recair sobre todos nós o Iabéu do nome indigno de
Aveiro, pedimos a S. Majestade que nos mude o nome, escolhendo outro mais de
acordo com a sua real pessoa...
MARQUÊS
Senhores,
S. Majestade encarrega-me de vos comunicar que ficou muito sensibilizado com
o acto público de repulsa que acabais de levar a cabo. Este gesto calou
profundamente no coração magnânimo de S. Majestade, que decidiu manifestar
a sua satisfação da seguinte forma:
Primeiro:
a partir de hoje, Aveiro fica erecta em cidade!
(Grande alegria. Palmas)
Segundo:
passa a depender, directamente de sua Majestade real!
(Mais palmas)
Terceiro:
porque muito lhe apraz, passará a usar o nome de “Nova Bragança”, como
querendo significar que passa a fazer parte da família real...
(Mais palmas)
JUIZ
DE FORA
Juro
fidelidade a el-rei e ao seu primeiro ministro!
TODOS
(Estendendo
as mãos sobre um pretenso livro) Juro
(Escuro.
Luz de novo sobre os Mendigos, estropiados e doentes)
MENDIGA
Anda
tudo ao contrário! Quantos menos somos, mais valemos...
BÊBADO
(Cantando)
Adeus,
ó barra de Aveiro.
Adeus Esgueira, adeus Angeja.
Vou à procura de vinho,
Onde mais barato seja!...
(Sai)
MENDIGO/A
E
a gente?
DOENTE
A
Gente... A gente fica à espera de morrer...
ALEIJADO
Não!
Não! Eu cá também vou embora...
(arrasta-se
e sai)
MENDIGO/A
(chamando)
Ei! Esperem por mim... Esperem por mim!...
(Sai
também)
DOENTE
(sozinha)
Se
Deus não nos acode...
(Começa
a tossir. Tira de um saco uma sardinha salgada. Faz uma fogueira. Põe a
sardinha a assar. Tira um naco de pão de uma sacola e começa a comer.
Sopra à fogueira. Cheiro bom a sardinha assada).
Que
cheirinho!...
(Come
do pão enquanto espera... Tosse. Aparecem dois mendigos mais novos.
Aproximam-se da Velha doente sem que esta se aperceba. De um salto, um
rouba-lhe o pão e o outro rouba-lhe a sardinha. Fogem).
Aqui
del-rei! Aqui del-rei! Quem me acode!
(Corre
atrás dos ladrões)
Ladrões!
Ladrões!...
(volta desanimada e impotente. Tosse. Tosse).
Que
desgraça! Que desgraça! Até um naco de pão e uma sardinha de uma pobre
velha e doente lhes serve! Fome negra! Fome negra!...
(sai
tropeçando e a tossir).
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