Jaime Gralheiro, A longa marcha para o esquecimento - CETA

<<<                                  QUADRO IV

 

(Em cena, o Rei. Um pobre tonto que brinca com a coroa. Corre atrás das cortesãs e levanta-lhes as saias. Faz onanismo pelos cantos. Risos lúbricos. Entra um camareiro e anuncia)

CAMAREIRO

O licenciado Cristovão de Pinho Queimado, procurador dos povos de Aveiro!

(O rei atrapalha-se; dá uma corrida e senta-se no trono. Procura assumir uma atitude “majestática”. Fica ridículo. As cortesãs fogem.)

REI

Pode falar o “Pinho Queimado”, quer dizer: “o pinheiro ardido”...

Em Aveiro há muitos pinheiros queimados, ó Pinho? E cheiram mal?

PINHO QUEIMADO

Em Aveiro, Senhor, há morte e desolação!

REI

Pf!... Também não exageres...  
(repetindo)  

“Morte e desolação!...” Até parece que Aveiro está a desaparecer!...

PINHO QUEIMADO

E está, Senhor... Aveiro, que foi o segundo porto, depois de Lisboa... Aveiro que chegou a receber por ano mais de trezentas embarcações...

REI

(incrédulo)  
Trezentas embarcações! Como é que sabes disso, ó Pinho?

PINHO QUEIMADO

É o que consta dos livros dos padres dominicanos da nossa vila de Aveiro...

REI

Dos livros de quem?!

PINHO QUEIMADO

(Emendando)
Dos “santos” padres dominicanos...

REI

Ah! “Santos” padres dominicanos... Assim é que é bonito... O respeitinho é muito lindo!... Olha lá, ó Pinho, esse “queimado” não será alguma chamuscadela feita por alguma das fogueiras que os “Santos” padres dominicanos andam a acender por estes reinos de Portugal... e dos Algarves?...

PINHO QUEIMADO

Senhor, eu sou um “cristão velho”...

REI

Ah! Sim? Pois olha que pelo nome nem pareces... Mas continua lá a tua lenga lenga...

PINHO QUEIMADO

Das 300 naus de antigamente, Senhor, hoje só entram ou saem meia dúzia, se tanto. A barra está fechada, durante quase todo o ano. Os que à barra se afoitam muitos perigos correm. Aquilo não é uma barra, Senhor, aquilo é um campo de batalha com a morte!...

REI

(meio cantando)
Heróis da barra!...

CAMAREIRO

Senhor, dá-me a impressão que estais a cantar... antes do tempo!

REI

Eu canto quando quero... Eu mijo quando quero... Eu cago quando quero... Para um rei é sempre tempo...

(para Pinho Queimado)
Continua... ó “Chamuscado”.

PINHO QUEIMADO

Temos pedido, Senhor,... Temos implorado à coroa que nos ajude, mas até hoje nada, ou pouco mais que nada!

REI

Mas não há dinheiro, homem. Foi a guerra... foi... são as despesas... não há dinheiro para tudo... Olha lá: porque é que vocês não fazem uma “finta” e não arranjam o dinheiro necessário?... Faziam-nos cá uma “finta”...

(Entram três enfermeiros. Rapidamente, vestem uma “camisa de forças” ao Rei. O Rei apanhado de surpresa estrebucha. Berra).

O Rei sou eu! O rei sou eu! Canto quando quero... mijo quando quero...

(Quando ia para dizer o resto, o enfermeiro-chefe tapa-lhe a boca e não o deixa falar mais. O Rei é levado para fora).

CAMAREIRO

Bem me queria cá parecer que V. Majestade estava a cantar... fora de tempo!...

(O Chefe dos Enfermeiros - D. PEDRO II - reentra agora acompanhado de uma Dama - a Rainha - que traz pela mão. Vêm dançando um minueto. Senta-se no trono. Põe a Dama ao colo e fazem amor, como se estivessem sozinhos. PINHO QUEIMADO assiste a tudo com ar aparvalhado. Quando se apercebe que a “coisa” está a ir longe demais, tosse para se fazer notar).

D. PEDRO II

(Parando)
Quem é que está aí?

PINHO QUEIMADO

Sou eu, Majestade, Custódio de Pinho Queimado, em nome do “povo de Aveiro

D. PEDRO II

Que homem, Cristo! Estavas aí há muito?

PINHO QUEIMADO

Só desde o tempo do Sr. Rei Afonso VI... Quer dizer: Cheguei agora mesmo...

D. PEDRO II

E que é que tu queres?

PINHO QUEIMADO

Falar a V. Majestade sobre problemas de Aveiro e da sua barra... Enfim, pedir providências...

D. PEDRO II

Ah, já sei... já sei... Fala, fala...  
(Volta à marmelada com a rainha)

PINHO QUEIMADO

Como ia dizendo, Senhor, a gente já procurou resolver a questão à nossa custa. É verdade! Os de Aveiro e de Esgueira chamaram dois estrangeiros da Holanda, que, dizem, tem terras mais baixas que o mar e são muito entendidos nessa arte de engenharia das águas, ou hidráulica, como lhe chamam...

D. PEDRO II

(sem deixar a marmelada)
E o que fizeram os Holandeses?

PINHO QUEIMADO

Nada, senhor, nada!

D. PEDRO II

(Suspende)
Nada?!

PINHO QUEIMADO

Quer dizer: vieram, estiveram em Aveiro catorze meses, observaram tudo, as correntes, as marés, as correntes, as areias, observaram tudo...

D. PEDRO II

(recomeçam)
Ah! São muitos observadores esses Holandeses!... E depois?...

PINHO QUEIMADO

Concluíram que a causa do não escoamento das águas estava no facto de a barra, existente ao pé da Vagueira de Mira, estar muito longe e mal localizada. São nove milhas de canal virado a sudoeste.

D. PEDRO II

É! Realmente é preciso “limpar o canal”... E “abrir” a barra!

PINHO QUEIMADO

Ainda bem que V. Majestade é da nossa opinião...

D. PEDRO II

(aumenta a “marmelada”)
Ah! Eu sempre gostei de “canais limpos” e “barras abertas”...

PINHO QUEIMADO

Podemos contar com V. Majestade?

D. PEDRO II

Inteiramente... Inteiramente... Mas... e onde é que se abre agora a “barra”?

PINHO QUEIMADO

Os holandeses disseram que o melhor local era no sítio de S. Jacinto, mas que eram precisos muitos milhares de cruzados e muitos milhares de braços e, mesmo assim, não garantiam o resultado.

D. PEDRO II

Nesse caso nada feito!

PINHO QUEIMADO

Nada feito porquê,  Majestade?

D. PEDRO II

Porque S. Jacinto é muito longe... E eu queria, eu queria uma “barra” aberta aqui muito perto para eu “entrar” todo... E depois são precisos muitos milhares de cruzados... muitos milhares de braços... e as boas “barras”, amigo, são as que se abrem... por amor... O resto...  
(Volta à marmelada)

PINHO QUEIMADO

Se V. Majestade nos não acudir, daqui a meio século, Aveiro não terá ninguém...

D. PEDRO II

Oh! Oh! Oh! Exageros!... exageros!...

(PINHO QUEIMADO continua num discurso mudo que já ninguém ouve. A “reinação” continua também. Escuro)

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