Jaime Gralheiro, A longa marcha para o esquecimento - CETA

<<<                                   QUADRO III


(Noite. Temporal desabrido. Um longo deserto. No fundo, lá longe, o mar e uma nau desfeita. Vindos da nau três pescadores que se salvaram do naufrágio. Vêm rotos, encharcados e feridos. Um tem muita dificuldade em andar. E arrastado pelos outros. Caiem, levantam-se. Grande esforço. Um deles acaba por ser engolido por um poço de areia movediça perante o esforço e o desespero dos outros dois. Estes continuam a marcha. Cada vez mais penosa. O ferido torna-se cada vez mais pesado. Diz ao outro, por gestos, que vá sem ele. O outro hesita, mas acaba por deixar o companheiro sozinho no largo areal. Continua a arrastar-se até a uma pobre choupana meia enterrada na areia. Dentro da cabana, uma figura estranha, coberta de trapos, com a cara desfigurada e já sem mãos, que estão reduzidas a cotos. Batem à porta da choupana. Parece o vento, parece o mar, parece o temporal... Insistem. O homem da choupana arrasta-se. Abre a porta. Com a tempestade entra-lhe em casa e cai-lhe aos pés um embrulho de gente. Fecha a porta. Vai para levantar o vulto. Suspende. Fica a olhar longo tempo. Pouco a pouco o vulto parece acordar. Com grande esforço levanta-se. Procura orientar-se. Não se apercebe do Homem da Choupana. Finalmente dá com ele. Assusta-se. Recua...)

NÁUFRAGO

Não me toque!... Não me toque!...

HOMEM DA CHOUPANA

Eu não te toquei...

NÁUFRAGO

Você quem é?... Onde é que eu estou?... Que é isto aqui?... Os outros?... Os outros?...

(procura)

HOMEM DA CHOUPANA

Não veio mais ninguém contigo...

NÁUFRAGO

Éramos trinta homens... O mestre bem avisou: o tempo está mau... O buraco da barra é o cu de uma agulha... O mestre avisou... Mas nós éramos trinta. E todos tínhamos mulheres. E todos tínhamos um rancho de filhos... E lá em casa não havia nada... Senão Iodo nas paredes... A lama no chão... E nem um naco de pão... E veio uma aberta... E o cu da agulha da barra deixou-nos passar... E as redes ficaram prenhas de peixe... E a gente ia comer... E depois foi um relâmpago... E o mestre avisou... E o céu abriu-se... E todos os diabos que havia nas profundas do inferno vieram soprar... E o mar, que estava chão, deu um pulo como um cavalo à solta... E tudo num ai se virou...

Eram paredes de água alevantadas à nossa frente... Depois foi um safanão... O mastro rebentou... A nau rodopiou sobre si própria e nós fomos despejados na rebentação das vagas, como rãs perdidas...

Onde é que eu estou?... Onde é que eu estou?... Eu ainda estou vivo... Ou já estou no outro mundo?... Onde é que eu estou?...

HOMEM DA CHOUPANA

Acalma-te, meu filho...

NÁUFRAGO

Você quem é?... Não me toque!... Não me toque...

HOMEM DA CHOUPANA

Eu sou um pobre homem como tu. Vivo aqui nas areias deste deserto entre as Gafanhas e Mira e entregue à minha dor...

NÁUFRAGO

Que faz vocemecê aqui, sozinho... No meio deste deserto!...

HOMEM DA CHOUPANA

Sou um condenado...

NÁUFRAGO

Vocemecê é um criminoso?... Não me faça mal... Não me faça mal...

HOMEM DA CHOUPANA

Acalma-te, rapaz... Eu não te faço mal nenhum. Se o quisesse fazer já o teria feito...

NÁUFRAGO

Vocemecê é... o diabo?...

HOMEM DA CHOUPANA

Não! Eu sou um homem como tu... Só que... Olha bem para mim...

(O outro tremendo, tenta fitar o Homem. Vê-se mal. Mas vê-se que é um ser disforme.)

Sou a carne do lodo arrancada... Fiz do pântano searas. Estrume de um país, quem de mim se lembrará?!...

NÁUFRAGO

(Tremendo cada vez mais)

Vocemecê... Está podre... Vocemecê é um leproso... (Tenta fugir) Socorro!... Socorro!...

(Tropeça. Cai. Soergue-se. Começa a tremer. E treme, treme cada vez mais... (Quer vomitar...)

Eu vou morrer... eu vou morrer... é a peste... que frio... é a morte... é a morte...   (grita)

Ó mãe do céu!...

(O Homem da Choupana aproxima-se. Pega no Náufrago ao colo, acarinha-o como se fosse seu filho. Deita-o no seu catre. O Náufrago chora.)

Tenho medo... tenho medo...   (Delira)

O mestre avisou... O mestre avisou... E a gente éramos trinta... Éramos trinta...

(Escuro. Lá fora no meio do temporal as bruxas: figuras arrancadas ao barro, ao Iodo, à lama, dançam uma estranha dança de roda que tem a ver com a roda dos oleiros)

VOZES

Somos o barro
                  
Somos a lama

Feitas de lodo
                  
Ninguém nos chama...

Somos o barro
                  
Somos a lama

O corpo todo
                  
É uma chama

Somos o barro
                  
Somos a lama

A noite inteira
                  
É nossa cama

(Repete)

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