(Noite. Temporal desabrido. Um longo deserto. No fundo, lá longe, o mar
e uma nau desfeita. Vindos da nau três pescadores que se salvaram do naufrágio.
Vêm rotos, encharcados e feridos. Um tem muita dificuldade em andar. E
arrastado pelos outros. Caiem, levantam-se. Grande esforço. Um deles acaba
por ser engolido por um poço de areia movediça perante o esforço e o
desespero dos outros dois. Estes continuam a marcha. Cada vez mais penosa. O
ferido torna-se cada vez mais pesado. Diz ao outro, por gestos, que vá sem
ele. O outro hesita, mas acaba por deixar o companheiro sozinho no largo
areal. Continua a arrastar-se até a uma pobre choupana meia enterrada na
areia. Dentro da cabana, uma figura estranha, coberta de trapos, com a cara
desfigurada e já sem mãos, que estão reduzidas a cotos. Batem à porta da
choupana. Parece o vento, parece o mar, parece o temporal... Insistem. O
homem da choupana arrasta-se. Abre a porta. Com a tempestade entra-lhe em
casa e cai-lhe aos pés um embrulho de gente. Fecha a porta. Vai para
levantar o vulto. Suspende. Fica a olhar longo tempo. Pouco a pouco o vulto
parece acordar. Com grande esforço levanta-se. Procura orientar-se. Não se
apercebe do Homem da Choupana. Finalmente dá com ele. Assusta-se. Recua...)
NÁUFRAGO
Não
me toque!... Não me toque!...
HOMEM
DA CHOUPANA
Eu
não te toquei...
NÁUFRAGO
Você
quem é?... Onde é que eu estou?... Que é isto aqui?... Os outros?... Os
outros?...
(procura)
HOMEM
DA CHOUPANA
Não
veio mais ninguém contigo...
NÁUFRAGO
Éramos
trinta homens... O mestre bem avisou: o tempo está mau... O buraco da barra
é o cu de uma agulha... O mestre avisou... Mas nós éramos trinta. E todos
tínhamos mulheres. E todos tínhamos um rancho de filhos... E lá em casa não
havia nada... Senão Iodo nas paredes... A lama no chão... E nem um naco de
pão... E veio uma aberta... E o cu da agulha da barra deixou-nos passar...
E as redes ficaram prenhas de peixe... E a gente ia comer... E depois foi um
relâmpago... E o mestre avisou... E o céu abriu-se... E todos os diabos
que havia nas profundas do inferno vieram soprar... E o mar, que estava chão,
deu um pulo como um cavalo à solta... E tudo num ai se virou...
Eram paredes de água
alevantadas à nossa frente... Depois foi um safanão... O mastro
rebentou... A nau rodopiou sobre si própria e nós fomos despejados na
rebentação das vagas, como rãs perdidas...
Onde
é que eu estou?... Onde é que eu estou?... Eu ainda estou vivo... Ou já
estou no outro mundo?... Onde é que eu estou?...
HOMEM
DA CHOUPANA
Acalma-te,
meu filho...
NÁUFRAGO
Você
quem é?... Não me toque!... Não me toque...
HOMEM
DA CHOUPANA
Eu
sou um pobre homem como tu. Vivo aqui nas areias deste deserto entre as
Gafanhas e Mira e entregue à minha dor...
NÁUFRAGO
Que
faz vocemecê aqui, sozinho... No meio deste deserto!...
HOMEM
DA CHOUPANA
Sou
um condenado...
NÁUFRAGO
Vocemecê
é um criminoso?... Não me faça mal... Não me faça mal...
HOMEM
DA CHOUPANA
Acalma-te,
rapaz... Eu não te faço mal nenhum. Se o quisesse fazer já o teria
feito...
NÁUFRAGO
Vocemecê
é... o diabo?...
HOMEM
DA CHOUPANA
Não!
Eu sou um homem como tu... Só que... Olha bem para mim...
(O
outro tremendo, tenta fitar o Homem. Vê-se mal. Mas vê-se que é um ser
disforme.)
Sou
a carne do lodo arrancada... Fiz do pântano searas. Estrume de um país,
quem de mim se lembrará?!...
NÁUFRAGO
(Tremendo
cada vez mais)
Vocemecê...
Está podre... Vocemecê é um leproso... (Tenta
fugir) Socorro!... Socorro!...
(Tropeça.
Cai. Soergue-se. Começa a tremer. E treme, treme cada vez mais... (Quer
vomitar...)
Eu
vou morrer... eu vou morrer... é a peste... que frio... é a morte... é a
morte... (grita)
Ó
mãe do céu!...
(O
Homem da Choupana aproxima-se. Pega no Náufrago ao colo, acarinha-o como se
fosse seu filho. Deita-o no seu catre. O Náufrago chora.)
Tenho
medo... tenho medo... (Delira)
O
mestre avisou... O mestre avisou... E a gente éramos trinta... Éramos
trinta...
(Escuro.
Lá fora no meio do temporal as bruxas: figuras arrancadas ao barro, ao
Iodo, à lama, dançam uma estranha dança de roda que tem a ver com a roda
dos oleiros)
VOZES
Somos
o barro
Somos a lama
Feitas
de lodo
Ninguém nos chama...
Somos
o barro
Somos a lama
O
corpo todo
É uma chama
Somos
o barro
Somos a lama
A
noite inteira
É nossa cama
(Repete)
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