(Retirantes.
Miseráveis, esfomeados, andrajosos e doentes abandonam Aveiro, levando
consigo o pouco que podem. São marnotos, salineiras, pescadores,
lavradores, gentes de ofícios, etc.... Param para descansar. Pedem às
portas e na rua a quem passa)
UM
Ó
meu senhor, dê-me lá alguma coisa para comer...
UMA
Ó
“patroinha”, tenha dó desta miséria... Dê-me um quartilho de leite
para esta criança. Co’a fome eu fiquei seca...
ALEIJADO
Pelas
cinco chagas de Cristo ajudai esta desgraça...
UM
RESIDENTE
Vocês
quem são?
MARNOTO
Eu
sou marnoto, senhor... Esta é a minha mulher... Aquele era pescador...
Aquela sardinheira... Aquele sapateiro... Os pequenos são filhos de uns e
de outros... enfim... são nossos...
RESIDENTE
Donde
são vocês?
PESCADOR
De
Aveiro, senhor...
MULHER
DO RESIDENTE
De
Aveiro?!... Vocês vêm de Aveiro?!...
SARDINHEIRA
E
a pé, senhora... A pé, com os pequenos ao colo e o resto à canga...
MULHER
Mas
daqui a Aveiro é muito longe...
MARNOTO
P’raí
dez léguas!... ou mais...
(todos
concordam: “ou mais...”)
RESIDENTE
E
para onde é que vocemecês vão?
UM
Por
esse mundo de Cristo...
RESIDENTE
Porque
fogem vocês de Aveiro?... Alguma coisa fizeram!...
MARNOTO
A
gente não fez nada, senhor... A gente foge para não morrer... De fome ou
de maleitas... Tudo o que tínhamos perdemos...
MULHER
Mas
perderam como?
PESCADOR
A
barra. Andou... Andou... Foi até à Vagueira... Foi até Mira e fechou... E
os barcos ficaram no Iodo a apodrecer...
MARNOTO
O
sal ficou debaixo da água que começou a subir... a subir... e o sal a
derreter... a derreter... Ficou só lama...
LAVRADOR
E
os terrenos onde a gente cultivava o milho, o feijão, o necessário para as
nossas vidas, ficaram... Ficaram num charco...
SAPATEIRO
E
as casas cheias de água, à altura de dois palmos... as ruas e as praças,
no Rossio, no Alboi, no Cojo... Vocemecê conhece? É só água podre cheia
de mosquitos...
Hoje
em dia, Aveiro é fome... É miséria... É doença... É um raio... É um
cemitério de lama... É o que Aveiro é... Um cemitério...
MULHER
E,
então, vocês vão a fugir?
SARDINHEIRA
Que
remédio tem a gente, santinha... Que é que a gente podia fazer numa terra
daquelas?
RESIDENTE
Mas
o rei de Espanha não vos deu ajuda?
SARDINHEIRA
Sabe
o que é que os reis de Espanha querem?... Que a gente os ajude a eles...
Cala-te boca!...
HOMEM
Mas
foi aqui dito que o rei de Espanha ficou muito satisfeito com Aveiro, por
vocês terem corrido com o Prior do Crato...
SARDINHEIRA
Outro
vigarista!...
PESCADOR
É!
Ficou muito satisfeito... Disse que Aveiro era uma “vila notável”...
parrapapá... pardais ao ninho.., e pronto! A gente que se fornicasse...
SARDINHEIRA
Se
ele pusesse era os cornos a segurar a areia...
MARNOTO
Ó
mulher!...
SARDINHEIRA
Deus
me perdoe se peco...
MARNOTO
Linguareira
de merda !...
SARDINHEIRA
Não
me estejas a atesanar... Não me estejas a atesanar, que eu ainda bolso mar
fora...
PESCADOR
Tu
bolsas, mas é uma bofetada nas bentas, se não te calas já.
SARDINHEIRA
Queres
tu ver! Queres tu ver que estes dois cucos me querem pôr a asa em cima?
OUTRA
Cala-te,
estupor!
SARDINHEIRA
Cala
uma porra! Não gosto dos reis de Espanha e pronto! Se vocês gostam,
lambam-lhe o cu!...
MARNOTO
Ai!
Que desgraça! Ai que desgraça!... Esta mulher ainda nos desgraça a
todos... (muda de tom)
Dai uma esmolinha a estes desgraçados...
TODOS
(numa
lenga, lenga)
Dai uma esmolinha... Dai uma esmolinha...
(vão
passando e saindo...)
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