Jaime Gralheiro, A longa marcha para o esquecimento - CETA

<<<                                  QUADRO II

 

(Retirantes. Miseráveis, esfomeados, andrajosos e doentes abandonam Aveiro, levando consigo o pouco que podem. São marnotos, salineiras, pescadores, lavradores, gentes de ofícios, etc.... Param para descansar. Pedem às portas e na rua a quem passa)

UM

Ó meu senhor, dê-me lá alguma coisa para comer...

UMA

Ó “patroinha”, tenha dó desta miséria... Dê-me um quartilho de leite para esta criança. Co’a fome eu fiquei seca...

ALEIJADO

Pelas cinco chagas de Cristo ajudai esta desgraça...

UM RESIDENTE

Vocês quem são?

MARNOTO

Eu sou marnoto, senhor... Esta é a minha mulher... Aquele era pescador... Aquela sardinheira... Aquele sapateiro... Os pequenos são filhos de uns e de outros... enfim... são nossos...

RESIDENTE

Donde são vocês?

PESCADOR

De Aveiro, senhor...

MULHER DO RESIDENTE

De Aveiro?!... Vocês vêm de Aveiro?!...

SARDINHEIRA

E a pé, senhora... A pé, com os pequenos ao colo e o resto à canga...

MULHER

Mas daqui a Aveiro é muito longe...

MARNOTO

P’raí dez léguas!... ou mais...

(todos concordam: “ou mais...”)

RESIDENTE

E para onde é que vocemecês vão?

UM

Por esse mundo de Cristo...

RESIDENTE

Porque fogem vocês de Aveiro?... Alguma coisa fizeram!...

MARNOTO

A gente não fez nada, senhor... A gente foge para não morrer... De fome ou de maleitas... Tudo o que tínhamos perdemos...

MULHER

Mas perderam como?

PESCADOR

A barra. Andou... Andou... Foi até à Vagueira... Foi até Mira e fechou... E os barcos ficaram no Iodo a apodrecer...

MARNOTO

O sal ficou debaixo da água que começou a subir... a subir... e o sal a derreter... a derreter... Ficou só lama...

LAVRADOR

E os terrenos onde a gente cultivava o milho, o feijão, o necessário para as nossas vidas, ficaram... Ficaram num charco...

SAPATEIRO

E as casas cheias de água, à altura de dois palmos... as ruas e as praças, no Rossio, no Alboi, no Cojo... Vocemecê conhece? É só água podre cheia de mosquitos...

Hoje em dia, Aveiro é fome... É miséria... É doença... É um raio... É um cemitério de lama... É o que Aveiro é... Um cemitério...

MULHER

E, então, vocês vão a fugir?

SARDINHEIRA

Que remédio tem a gente, santinha... Que é que a gente podia fazer numa terra daquelas?

RESIDENTE

Mas o rei de Espanha não vos deu ajuda?

SARDINHEIRA

Sabe o que é que os reis de Espanha querem?... Que a gente os ajude a eles... Cala-te boca!...

HOMEM

Mas foi aqui dito que o rei de Espanha ficou muito satisfeito com Aveiro, por vocês terem corrido com o Prior do Crato...

SARDINHEIRA

Outro vigarista!...

PESCADOR

É! Ficou muito satisfeito... Disse que Aveiro era uma “vila notável”... parrapapá... pardais ao ninho.., e pronto! A gente que se fornicasse...

SARDINHEIRA

Se ele pusesse era os cornos a segurar a areia...

MARNOTO

Ó mulher!...

SARDINHEIRA

Deus me perdoe se peco...

MARNOTO

Linguareira de merda !...

SARDINHEIRA

Não me estejas a atesanar... Não me estejas a atesanar, que eu ainda bolso mar fora...

PESCADOR

Tu bolsas, mas é uma bofetada nas bentas, se não te calas já.

SARDINHEIRA

Queres tu ver! Queres tu ver que estes dois cucos me querem pôr a asa em cima?

OUTRA

Cala-te, estupor!

SARDINHEIRA

Cala uma porra! Não gosto dos reis de Espanha e pronto! Se vocês gostam, lambam-lhe o cu!...

MARNOTO

Ai! Que desgraça! Ai que desgraça!... Esta mulher ainda nos desgraça a todos... (muda de tom) Dai uma esmolinha a estes desgraçados...

TODOS

(numa lenga, lenga)
Dai uma esmolinha... Dai uma esmolinha...

(vão passando e saindo...)

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