Jaime Gralheiro, A longa marcha para o esquecimento - CETA

PRÓLOGO

Antes do espectáculo começar, à entrada, nos corredores e dentro da própria sala, deve ser transmitido, através de um circuito de televisão, um inquérito de rua, feito em Aveiro, onde se pergunte: «Sabe quem foi Luís Gomes de Carvalho?» ou «Sabe quem foi o engenheiro Gomes de Carvalho?» ou, «Que lhe diz este nome: Luís Gomes de Carvalho?» e outras perguntas semelhantes, de modo a que fique claro que hoje, em Aveiro, praticamente ninguém sabe quem foi Luís Gomes de Carvalho e o que fez.

 

QUADRO I

(No proscénio, um pianista toca música tranquila de «piano-bar». Em local adequado, um mapa da costa portuguesa desde Espinho ao Cabo Mondego, no século X, assinalando, claramente a linha da costa e as povoações marítimas, na altura: Espinho, Esmoriz, Ovar, Estarreja, Salreu, Fermelã, Angeja, Alquerubim, Cacia, Esgueira, Aveiro, Ílhavo, Vagos, Portomar, Mira e Cabo Mondego. Noutro tom ou noutras cores, o cabedelo que mais tarde se formou, desde Espinho a S. Jacinto e aqueloutro desde as Gafanhas ao Cabo Mondego. Além disso, a Ria, com os seus canais e ilhotas. Um foco de luz ilumina apenas o pianista e o Apresentador que está junto dele. Enquanto o Apresentador fala, o pianista deve acompanhar em surdina).

APRESENTADOR

Senhoras e senhores, o nosso espectáculo, desta noite, vai centrar-se em Aveiro.

Vamos, pois, falar de Aveiro.
Falar de Aveiro
É falar da Barra,
É falar da Ria,
É falar do “moliceiro”,
É falar da maresia
Que desprende e amarra
Da nau p’ra Terra Nova.
É falar das salinas,
É falar dos marnotos,
É falar das varinas
                       E dos “gafanhotos”
                       Meios mortos
Na sua cova
                       De lodo e lama!
Quem me chama? Quem me chama?
É o eco longínquo do lavrador da Arada
É a sua amada
Cantando ao postigo
Um cantar de amigo.
É o mar, é o mar...
É o som do sal
Acordando Portugal!

(Enquanto o Apresentador fala, marnotos, salineiras, pescadores, varinas, lavradores e lavradeiras, “gafanhões”, etc., mimam o próprio trabalho numa espécie de dança. O Apresentador dirige-se para o mapa)

APRESENTADOR

No século X, conforme se pode ver por este mapa, Aveiro era uma “póvoa marítima”.

Por volta do século XI, por acção dos ventos e marés, começaram a formar-se dois cabedelos de areia: um vindo do norte, a partir de Espinho, e outro abrangendo os areais que da Gafanha se estendem até ao cabo Mondego.  

Em 1575, um inverno pavoroso trouxe do mar milhares ou milhões de toneladas de areia (som cavo do mar em fúria, vento sibilando. Em cena todos reagem de acordo com o temporal) que acabou por se depositar em frente a S. Jacinto, tapando a barra.

Até então, o porto de Aveiro fora a inveja dos portos de Portugal. No séc. XVI, Aveiro tinha 14.000 habitantes, cerca de 300 embarcações e mandava 60 naus por ano à Terra Nova...

Mas, em 1575, a barra fechou e Aveiro foi-se tornando, dia a dia, numa ilha de miséria, cercada de lodo, de corrupção e de moléstias por todos os lados...

(Entra um popular que grita)

POPULAR

Mataram o Rei em Alcácer Quibir!
(Pára a dança)

TODOS

Em Alcácer Quibir? Mataram o Rei? Mataram o nosso Rei, em Alcácer Quibir?

UM NOBRE

(que entra acompanhado por um Mercador e Alto Clérigo)
Não pode ser! D. Sebastião foi a Alcácer Quibir para alargar Portugal, não foi a Alcácer Quibir para morrer!

POPULAR

Mas morreu. Morreu D. Sebastião, morreu o Duque de Aveiro, morreu a fina flor da fidalguia portuguesa...

POBRE CEGO

(entrando)
Viva D. António Prior do Crato, rei de Portugal!

(Todos fitam o Pobre Cego. Silêncio. O Nobre e o Grande Mercador e o Alto Clérigo formam um grupo. Os populares começam a cercar o Pobre Cego).

POPULAR

Porque deste o pregão pelo Prior do Crato?

POBRE CEGO

Porque o Prior do Crato é o novo rei de Portugal.

POPULAR

E quem é que te disse que o Prior do Crato é o novo rei de Portugal?

POBRE CEGO

(misterioso)
Vozes... Vozes...

(Sai e atrás dele vão saindo os populares enquanto perguntam: Quem é o Prior do Crato?”, “Quem é o Prior do Crato?”...)

PREGOEIRO

Aos quatro dias do mês de Julho de mil quinhentos e oitenta, nesta vila de Aveiro, na casa da Câmara, estando presentes o doutor Francisco da Gosta, ouvidor das vilas deste ducado (Dr. Francisco Gosta toma o seu lugar) e o licenciado Gonçalo Esteves, juiz de fora em esta vila (O licenciado toma o seu lugar) e Luís Dias Bocarro, Miguel Pires Piricão e Miguel de Moraes, vereadores (tomam o seu lugar) e, ainda, Tomé de Lira, procurador da vila (toma o seu lugar) e muitas pessoas da governança (tomam igualmente o seu lugar) e também muitas pessoas do povo...

(O recinto é invadido por marnotos, pescadores, sardinheiras, varinas, lavradores, lavradeiras, mercadores, sapateiros, etc. Fazem barulho. Sentem-se vitoriosos).

UM POPULAR

Viva D. António Prior do Crato!

TODOS OS POPULARES

Viva!

JUIZ DE FORA

(tocando a sineta)
Silêncio! Silêncio!...

(O barulho vai diminuindo. Começa a retomar-se a ordem. Sinais e expressões de silêncio entre a assistência.)

Estamos aqui para ouvir o que o Ex.mo. Senhor Dr. Francisco da Costa tem para nos dizer acerca de assunto que a todos diz respeito.

Peço o máximo silêncio e atenção. (Para o Dr. Francisco da Costa) Faça favor...

DR. FRANCISCO GOSTA

Meus senhores, estou aqui em nome d’el-rei D. António, primeiro deste nome, para vos informar que, face à quebra do compromisso assumido por Filipe II de Espanha de não abrir hostilidades enquanto a questão dinástica não fosse resolvida pelas justiças de Portugal, compromisso este que o rei espanhol quebrou, Sua Alteza Real, D. António, foi alevantado, jurado e reconhecido como rei de Portugal nas cidades de Santarém, Lisboa, Coimbra e em Montemor-o-Novo, Setúbal e muitas outras partes, vilas e lugares destes reinos.

Estou aqui para saber de vós, gentes de Aveiro, se quereis, também, aceitar e jurar D. António como rei e senhor destes reinos...

UM POPULAR

Viva D. António, rei de Portugal!

TODOS

Viva!

DR. FRANCISCO COSTA

Sendo esta a vossa vontade, vamos todos jurar sobre os Santos Evangelhos...

(É colocado ao centro um grande livro representando os Santos Evangelhos. Todos estendem a mão direita na direcção do livro)

"Juro não conhecer nem obedecer a outro rei”...

TODOS

“Juro não conhecer nem obedecer a outro rei”...

DR. FRANCISCO COSTA

“Senão ao Sr. D. António”...

TODOS

“Senão ao Sr. D. António”...

DR. FRANCISCO COSTA

“Juro morrer pelo seu serviço e pela difusão dos seus reinos”...

TODOS

“Juro”...

JUIZ DE FORA

(Pegando a bandeira das armas reais da vila de Aveiro)
Como juiz de fora e capitão mor desta vila, eu, Gonçalo Esteves, entrego esta bandeira da vila de Aveiro a José Bocarro, vereador mais antigo, para que, como representante de todos nós, dê o pregão pelo Sr. Rei D. António I de Portugal.

JOSÉ BOCARRO

(Depois de receber a bandeira encaminha-se com ela para o público e grita:)
“Real, real, real por D. António, rei de Portugal”!

TODOS

Real, real, real por D. António, rei de Portugal!

(Música. Alegria. Festa. Saem. Noutro local, o Nobre, o Mercador e o Alto Clérigo conversam...)

MERCADOR

Mas quem é, afinal, esse D. António Prior do Crato?

NOBRE

Bom! D. António Prior do Crato é filho do Infante D. Luís, irmão do sr. rei D. João III, que Deus guarde, e de uma tal Guiomar...

CLÉRIGO

Filho do pecado!...

MERCADOR

Eu diria... filho do amor...

NOBRE

Não! Não! Filho do pecado... Diz bem o Sr. Padre Francisco: filho do pecado.

MERCADOR

Pronto! Fica: filho do pecado. E depois?...

NOBRE

Como filho ilegítimo que é, (pequena pausa) está impedido de ser rei de Portugal...

MERCADOR

Ah! Quer dizer: os filhos da puta não têm lugar neste país?

NOBRE

Senhor João Afonso, eu não estou habituado a...

MERCADOR

Ser governado por um filho da puta!

CLÉRIGO

Vossa mercê deverá considerar que essa linguagem...

MERCADOR

É a linguagem da gente da minha terra! Fiquem sabendo, meus senhores, que “filhos da puta” há p’raí muitos...

Eu só quero saber é se D. António é um homem capaz, que até é “filho da puta”, ou se é um “filho da puta” qualquer que quer ser rei de Portugal.

NOBRE

Bom!... D. António Prior do Crato...

CLÉRIGO

Gosta muito de mulheres... Tem filhos...

MERCADOR

...da puta por todos os lados...

CLÉRIGO

É isso!

MERCADOR

E tem dinheiro para aguentar esta guerra com Filipe II?

NOBRE

Tem gente de muito valimento a seu lado, mas são muito poucos... A sua força está na escumalha que ninguém governa, nem respeita ninguém...

MERCADOR

E dinheiro?... Tem dinheiro?...

Não esqueçam, meus senhores, que este país precisa é de muito dinheiro para aguentar o comércio das Índias, que nos está fugindo...

(Entra um embuçado. Os três põem-se em guarda e tapam a cara com as capas).

NOBRE

Quem vem lá?

EMBUÇADO

Gente de bem!

NOBRE

Diga o seu nome!

EMBUÇADO

(mostrando-se)
Cristóvão de Moura!

NOBRE

E que quer de nós o fidalgo Cristóvão de Moura?

CRISTÓVÃO DE MOURA

Ouvi que vossas senhorias “praticavam” sobre questões de dinheiro.

NOBRE

Isso é!

CRISTÓVÃO DE MOURA

(misterioso)
Talvez vos traga a solução.

OS TRÊS

E qual é a solução?

CRISTÓVÃO DE MOURA

Filipe II.

MERCADOR

Quer Vossa senhoria dizer que Filipe II...

CRISTÓVÃO DE MOURA

É a salvação de Portugal...

NOBRE

Tem toda a legitimidade ao trono de Portugal...

CLÉRIGO

E é um rei católico...

CRISTÓVÃO DE MOURA

E tem o maior império do mundo... E tem os portos do mediterrâneo e do Norte da Europa... E tem a prata e o ouro das minas do Peru...

Filipe II, meus senhores, tem tudo o que quer...

MERCADOR

Senhor, o rei de Espanha pode muito bem ser a salvação de Portugal...

Mas e de Aveiro? O que nos interessa, agora, é Aveiro, esta lama, e esta miséria que nos afoga...

NOBRE

É isso, e Aveiro?

CLÉRIGO

Aveiro... e Santa Joana...

CRISTÓVÃO DE MOURA

E S. Gonçalo, e S. Miguel, e S. Brás, e S. António, e o Sr. das Barrocas, e a Sra. das Necessidades, e S. João Evangelista e os Irmãos Carmelitas e todas as demais igrejas, capelas e oratórios, e tudo, Reverência, sua Majestade Real atenderá.

NOBRE

E que garantia nos dais que assim virá a ser?

CRISTÓVÃO DE MOURA

Filipe II.

MERCADOR

Explicai-vos melhor para que eu vos entenda.

CRISTÓVÃO DE MOURA

É fácil de explicar, senhores. El-rei D. Filipe II de Espanha e I de Portugal encarrega-me de vos comunicar que, se Aveiro der por ele o pregão, terá o ouro e a prata que necessitar para que a vila se desenvolva e as suas gentes voltem a ter a vida desafogada de antigamente.

MERCADOR

Sim! E onde é que está o ouro, onde é que está a prata!...

CRISTÓVÃO DE MOURA

(atirando moedas por todo lado)
Aqui!...

(os três começam a apanhar afanosamente as moedas. Perdem a compostura. Lutam. Começam a aparecer populares que também aproveitam. Cristóvão de Moura desfaz-se em ouro e prata. Toda a gente apanha. Grande confusão)

Viva El-rei D. Filipe I de Portugal!

TODOS

Viva! Viva! Viva!

(surge de novo o pregoeiro)

PREGOEIRO

(lendo o mesmo manuscrito)
Ano do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo, mil quinhentos e oitenta, aos vinte e nove dias do mês de Agosto, nesta vila de Aveiro e na Casa da Câmara, estando presentes o Sr. Corregedor Amador de Queirós
(toma o seu lugar) o licenciado Gonçalo Esteves, Juiz de Fora (entra e toma o seu lugar), Luís Dias Bocarro, Miguel Pires Piricão e Miguel Moraes, vereadores, (tomam
o seu lugar) e mestre Tomé Lira, procurador da vila (toma o seu lugar) e todas as pessoas da governança e demais povo (entram; há muita expectativa) e porque tivessem chegado a esta terra umas cartas de el-rei D. Filipe, nosso Senhor, que nunca chegaram ao conhecimento destas gentes de Aveiro, se convocou esta sessão pública da Câmara para que todos delas tomem conhecimento.

CORREGEDOR AMADOR DE QUEIRÓS

(tomando a palavra)
Nas cartas que aqui vos mostro, el-rei D. Filipe, nosso Senhor, garante à vila de Aveiro todos os favores de que esta precisa e mostra que é rei de Portugal por sentença e outros títulos legais. Por isso vos pergunto se o recebeis e aclamais como rei e senhor destes reinos de Portugal.

JUIZ DE FORA

Viva el-rei D. Filipe, nosso rei e senhor!

TODOS

Viva!

(Luís Dias Bocarro pega na bandeira e grita)

LUIS DIAS BOCARRO

“Real, real, real por D. Filipe, nosso Senhor, rei de Portugal!

TODOS

Real, real, real por D. Filipe rei de Portugal.

(tambores rufando. Todos estendem a mão sobre o grande livro e gritam)

TODOS

Juro!

>>>

Página anterior Índice geral Página seguinte