(No proscénio, um pianista
toca música tranquila de «piano-bar». Em local adequado, um mapa da costa
portuguesa desde Espinho ao Cabo Mondego, no século X, assinalando,
claramente a linha da costa e as povoações marítimas, na altura: Espinho,
Esmoriz, Ovar, Estarreja, Salreu, Fermelã, Angeja, Alquerubim, Cacia,
Esgueira, Aveiro, Ílhavo, Vagos, Portomar, Mira e Cabo Mondego. Noutro tom
ou noutras cores, o cabedelo que mais tarde se formou, desde Espinho a S.
Jacinto e aqueloutro desde as Gafanhas ao Cabo Mondego. Além disso, a Ria,
com os seus canais e ilhotas. Um foco de luz ilumina apenas o pianista e o
Apresentador que está junto dele. Enquanto o Apresentador fala, o pianista
deve acompanhar em surdina).
APRESENTADOR
Senhoras e senhores, o
nosso espectáculo, desta noite, vai centrar-se em Aveiro.
|
Vamos, pois, falar de
Aveiro.
Falar de Aveiro
É falar da Barra,
É falar da Ria,
É falar do “moliceiro”,
É falar da maresia
Que desprende e amarra
Da nau p’ra Terra Nova.
É falar das salinas,
É falar dos marnotos,
É falar das varinas
E dos “gafanhotos”
Meios mortos
Na sua cova
De lodo e lama!
Quem me chama? Quem me chama?
É o eco longínquo do lavrador da Arada
É a sua amada
Cantando ao postigo
Um cantar de amigo.
É o mar, é o mar...
É o som do sal
Acordando Portugal! |
(Enquanto o Apresentador
fala, marnotos, salineiras, pescadores, varinas, lavradores e lavradeiras,
“gafanhões”, etc., mimam o próprio trabalho numa espécie de dança. O
Apresentador dirige-se para o mapa)
APRESENTADOR
No século X, conforme se
pode ver por este mapa, Aveiro era uma “póvoa marítima”.
|
Por volta do século
XI,
por acção dos ventos e marés, começaram a formar-se dois cabedelos de
areia: um vindo do norte, a partir de Espinho, e outro abrangendo os areais
que da Gafanha se estendem até ao cabo Mondego.
|
Em 1575, um inverno
pavoroso trouxe do mar milhares ou milhões de toneladas de areia
(som cavo
do mar em fúria, vento sibilando. Em cena todos reagem de acordo com o
temporal) que acabou por se depositar em frente a S. Jacinto, tapando a
barra.
Até então, o porto de
Aveiro fora a inveja dos portos de Portugal. No séc. XVI, Aveiro tinha
14.000 habitantes, cerca de 300 embarcações e mandava 60 naus por ano à
Terra Nova...
Mas, em 1575, a barra
fechou e Aveiro foi-se tornando, dia a dia, numa ilha de miséria, cercada
de lodo, de corrupção e de moléstias por todos os lados...
(Entra um popular que grita)
POPULAR
Mataram o Rei em Alcácer
Quibir!
(Pára a dança)
TODOS
Em Alcácer Quibir?
Mataram o Rei? Mataram o nosso Rei, em Alcácer Quibir?
UM NOBRE
(que entra acompanhado por um
Mercador e Alto Clérigo)
Não pode ser! D. Sebastião foi a Alcácer Quibir para alargar Portugal, não
foi a Alcácer Quibir para morrer!
POPULAR
Mas morreu. Morreu D.
Sebastião, morreu o Duque de Aveiro, morreu a fina flor da fidalguia
portuguesa...
POBRE CEGO
(entrando)
Viva D. António Prior do Crato, rei de Portugal!
(Todos fitam o Pobre Cego.
Silêncio. O Nobre e o Grande Mercador e o Alto Clérigo formam um grupo. Os
populares começam a cercar o Pobre Cego).
POPULAR
Porque deste o pregão
pelo Prior do Crato?
POBRE CEGO
Porque o Prior do Crato é
o novo rei de Portugal.
POPULAR
E quem é que te disse que
o Prior do Crato é o novo rei de Portugal?
POBRE CEGO
(misterioso)
Vozes... Vozes...
(Sai e atrás dele vão
saindo os populares enquanto perguntam: “Quem
é o Prior do Crato?”, “Quem é o Prior do Crato?”...)
PREGOEIRO
Aos quatro dias do mês
de Julho de mil quinhentos e oitenta, nesta vila de Aveiro, na casa da Câmara,
estando presentes o doutor Francisco da Gosta, ouvidor das vilas deste
ducado
(Dr. Francisco Gosta toma o seu lugar) e o licenciado Gonçalo
Esteves, juiz de fora em esta vila
(O licenciado toma o seu lugar) e Luís
Dias Bocarro, Miguel Pires Piricão e Miguel de Moraes, vereadores
(tomam o
seu lugar) e, ainda, Tomé de Lira, procurador da vila
(toma o seu lugar) e
muitas pessoas da governança
(tomam igualmente o seu lugar) e também
muitas pessoas do povo...
(O recinto é invadido por
marnotos, pescadores, sardinheiras, varinas, lavradores, lavradeiras,
mercadores, sapateiros, etc. Fazem barulho. Sentem-se vitoriosos).
UM POPULAR
Viva D. António Prior do
Crato!
TODOS OS POPULARES
Viva!
JUIZ DE FORA
(tocando a sineta)
Silêncio! Silêncio!...
(O barulho vai diminuindo.
Começa a retomar-se a ordem. Sinais e expressões de silêncio entre a
assistência.)
Estamos aqui para ouvir o
que o Ex.mo. Senhor Dr. Francisco da Costa tem para nos dizer acerca de
assunto que a todos diz respeito.
Peço o máximo silêncio
e atenção.
(Para o Dr. Francisco da Costa) Faça favor...
DR. FRANCISCO GOSTA
Meus senhores, estou aqui
em nome d’el-rei D. António, primeiro deste nome, para vos informar que,
face à quebra do compromisso assumido por Filipe II de Espanha de não
abrir hostilidades enquanto a questão dinástica não fosse resolvida pelas
justiças de Portugal, compromisso este que o rei espanhol quebrou, Sua
Alteza Real, D. António, foi alevantado, jurado e reconhecido como rei de
Portugal nas cidades de Santarém, Lisboa, Coimbra e em Montemor-o-Novo, Setúbal
e muitas outras partes, vilas e lugares destes reinos.
Estou aqui para saber de vós,
gentes de Aveiro, se quereis, também, aceitar e jurar D. António como rei
e senhor destes reinos...
UM POPULAR
Viva D. António, rei de
Portugal!
TODOS
Viva!
DR. FRANCISCO COSTA
Sendo esta a vossa
vontade, vamos todos jurar sobre os Santos Evangelhos...
(É colocado ao centro um
grande livro representando os Santos Evangelhos. Todos estendem a mão
direita na direcção do livro)
"Juro
não conhecer nem obedecer a outro rei”...
TODOS
“Juro não conhecer nem
obedecer a outro rei”...
DR. FRANCISCO COSTA
“Senão ao Sr. D. António”...
TODOS
“Senão ao Sr. D. António”...
DR. FRANCISCO COSTA
“Juro morrer pelo seu
serviço e pela difusão dos seus reinos”...
TODOS
“Juro”...
JUIZ DE FORA
(Pegando a bandeira das armas
reais da vila de Aveiro)
Como juiz de fora e capitão mor desta vila, eu, Gonçalo Esteves, entrego
esta bandeira da vila de Aveiro a José Bocarro, vereador mais antigo, para
que, como representante de todos nós, dê o pregão pelo Sr. Rei D. António
I de Portugal.
JOSÉ BOCARRO
(Depois de receber a bandeira
encaminha-se com ela para o público e grita:)
“Real, real, real por D. António, rei de Portugal”!
TODOS
Real, real, real por D.
António, rei de Portugal!
(Música. Alegria. Festa.
Saem. Noutro local, o Nobre, o Mercador e o Alto Clérigo conversam...)
MERCADOR
Mas quem é, afinal, esse
D. António Prior do Crato?
NOBRE
Bom! D. António Prior do
Crato é filho do Infante D. Luís, irmão do sr. rei D. João III, que Deus
guarde, e de uma tal Guiomar...
CLÉRIGO
Filho do pecado!...
MERCADOR
Eu diria... filho do
amor...
NOBRE
Não! Não! Filho do
pecado... Diz bem o Sr. Padre Francisco: filho do pecado.
MERCADOR
Pronto! Fica: filho do
pecado. E depois?...
NOBRE
Como filho ilegítimo
que é,
(pequena pausa) está impedido de ser rei de Portugal...
MERCADOR
Ah! Quer dizer: os filhos
da puta não têm lugar neste país?
NOBRE
Senhor João Afonso, eu não
estou habituado a...
MERCADOR
Ser governado por um filho
da puta!
CLÉRIGO
Vossa mercê deverá
considerar que essa linguagem...
MERCADOR
É a linguagem da gente da
minha terra! Fiquem sabendo, meus senhores, que “filhos da puta” há
p’raí muitos...
Eu só quero saber é se
D. António é um homem capaz, que até é “filho da puta”, ou se é um
“filho da puta” qualquer que quer ser rei de Portugal.
NOBRE
Bom!... D. António Prior
do Crato...
CLÉRIGO
Gosta muito de mulheres...
Tem filhos...
MERCADOR
...da puta por todos os
lados...
CLÉRIGO
É isso!
MERCADOR
E tem dinheiro para
aguentar esta guerra com Filipe II?
NOBRE
Tem gente de muito
valimento a seu lado, mas são muito poucos... A sua força está na
escumalha que ninguém governa, nem respeita ninguém...
MERCADOR
E dinheiro?... Tem
dinheiro?...
Não esqueçam, meus
senhores, que este país precisa é de muito dinheiro para aguentar o comércio
das Índias, que nos está fugindo...
(Entra um embuçado. Os três
põem-se em guarda e tapam a cara com as capas).
NOBRE
Quem vem lá?
EMBUÇADO
Gente de bem!
NOBRE
Diga o seu nome!
EMBUÇADO
(mostrando-se)
Cristóvão de Moura!
NOBRE
E que quer de nós o
fidalgo Cristóvão de Moura?
CRISTÓVÃO DE MOURA
Ouvi que vossas senhorias
“praticavam” sobre questões de dinheiro.
NOBRE
Isso é!
CRISTÓVÃO DE MOURA
(misterioso)
Talvez vos traga a solução.
OS TRÊS
E qual é a solução?
CRISTÓVÃO DE MOURA
Filipe II.
MERCADOR
Quer Vossa senhoria dizer
que Filipe II...
CRISTÓVÃO DE MOURA
É a salvação de
Portugal...
NOBRE
Tem toda a legitimidade ao
trono de Portugal...
CLÉRIGO
E é um rei católico...
CRISTÓVÃO DE MOURA
E tem o maior império do
mundo... E tem os portos do mediterrâneo e do Norte da Europa... E tem a
prata e o ouro das minas do Peru...
Filipe II, meus senhores,
tem tudo o que quer...
MERCADOR
Senhor, o rei de Espanha
pode muito bem ser a salvação de Portugal...
Mas e de Aveiro? O que nos
interessa, agora, é Aveiro, esta lama, e esta miséria que nos afoga...
NOBRE
É isso, e Aveiro?
CLÉRIGO
Aveiro... e Santa Joana...
CRISTÓVÃO DE MOURA
E S. Gonçalo, e S.
Miguel, e S. Brás, e S. António, e o Sr. das Barrocas, e a Sra. das
Necessidades, e S. João Evangelista e os Irmãos Carmelitas e todas as
demais igrejas, capelas e oratórios, e tudo, Reverência, sua Majestade
Real atenderá.
NOBRE
E que garantia nos dais
que assim virá a ser?
CRISTÓVÃO DE MOURA
Filipe II.
MERCADOR
Explicai-vos melhor para
que eu vos entenda.
CRISTÓVÃO DE MOURA
É fácil de explicar,
senhores. El-rei D. Filipe II de Espanha e I de Portugal encarrega-me de vos
comunicar que, se Aveiro der por ele o pregão, terá o ouro e a prata que
necessitar para que a vila se desenvolva e as suas gentes voltem a ter a
vida desafogada de antigamente.
MERCADOR
Sim! E onde é que está o
ouro, onde é que está a prata!...
CRISTÓVÃO DE MOURA
(atirando moedas por todo
lado)
Aqui!...
(os três começam a apanhar
afanosamente as moedas. Perdem a compostura. Lutam. Começam a aparecer
populares que também aproveitam. Cristóvão de Moura desfaz-se em ouro e
prata. Toda a gente apanha. Grande confusão)
Viva El-rei D. Filipe I de
Portugal!
TODOS
Viva! Viva! Viva!
(surge de novo o pregoeiro)
PREGOEIRO
(lendo o mesmo manuscrito)
Ano do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo, mil quinhentos e oitenta,
aos vinte e nove dias do mês de Agosto, nesta vila de Aveiro e na Casa da Câmara,
estando presentes o Sr. Corregedor Amador de Queirós (toma o seu lugar)
o licenciado Gonçalo Esteves, Juiz de Fora (entra e toma o seu lugar),
Luís Dias Bocarro, Miguel Pires Piricão e Miguel Moraes, vereadores, (tomam
o seu lugar) e mestre Tomé Lira,
procurador da vila (toma o seu lugar) e todas as pessoas da governança
e demais povo (entram; há muita expectativa) e porque tivessem
chegado a esta terra umas cartas de el-rei D. Filipe, nosso Senhor, que
nunca chegaram ao conhecimento destas gentes de Aveiro, se convocou esta
sessão pública da Câmara para que todos delas tomem conhecimento.
CORREGEDOR AMADOR DE QUEIRÓS
(tomando a palavra)
Nas cartas que aqui vos mostro, el-rei D. Filipe, nosso Senhor, garante à
vila de Aveiro todos os favores de que esta precisa e mostra que é rei de
Portugal por sentença e outros títulos legais. Por isso vos pergunto se o
recebeis e aclamais como rei e senhor destes reinos de Portugal.
JUIZ DE FORA
Viva el-rei D. Filipe,
nosso rei e senhor!
TODOS
Viva!
(Luís Dias Bocarro pega na
bandeira e grita)
LUIS DIAS BOCARRO
“Real, real, real por D.
Filipe, nosso Senhor, rei de Portugal!
TODOS
Real, real, real por D.
Filipe rei de Portugal.
(tambores rufando. Todos
estendem a mão sobre o grande livro e gritam)
TODOS
Juro!
|