recordando...

POR J. EVANGELISTA DE CAMPOS *

 

Nos meus tempos de rapaz, e, mesmo, até ao fim dos anos de 40, Cacia era um local escolhido pelos aveirenses para passarem, no verão, as suas tardes de Domingo.

Pelo areal que, então, se estendia entre a ponte de pau (a Ponte de Angeja) e a do caminho de ferro, juntavam-se as famílias, com os seus farnéis, e organizavam-se diversões que davam lugar a que se passassem tardes muito agradáveis.

Nas águas, então, límpidas, do Vouga, grandes e pequenos, novos e velhos, tomavam a sua «banhoca», e faziam-no com uma certa segurança, salvo se algum atrevido se afastava da margem e ia ter a algum «fundão».

E não era só no areal que ficavam os que, aos Domingos, se deslocavam a Cacia, pois havia quem preferisse sentar-se debaixo dos salgueirais, ao longo da estrada que vai para Angeja, a ler ou a dormir a sua «soneca», livres, portanto, da balbúrdia que, normalmente, havia no areaI, devido à quantidade de pessoas por lá acampadas.

A deslocação fazia-se pelo caminho de ferro e pela estrada, tanto de bicicleta de pedais, como a pé, pois ainda não havia as motorizadas. Um chefe da estação da C. P. afirmava que a média de bilhetes vendidos para o percurso de Aveiro-Cacia, e volta, era, aos Domingos, de 400.

E não se julgue que, então, ir a pé de Aveiro a Cacia, ou vice-versa, era proeza de difícil execução, pois muita gente o fazia.

E estou a lembrar-me que o Conselheiro Nunes da Silva, já com uma idadesita «bastante puxada», apesar de viajar gratuitamente nos comboios da C. P., fazia, normalmente, essa viagem a pé.

O Conselheiro Nunes da Silva quando, de Lisboa, vinha no comboio rápido, tinha o privilégio de desembarcar na estação de Cacia, onde aquele comboio, normalmente, não parava; porém, o condutor do comboio que o transportava, tinha ordem expressa de fazer paragem naquela estação para o senhor Conselheiro desembarcar.

Muito modesto – apesar da sua categoria / 105 / social – e muito amável com todas as pessoas, o senhor Conselheiro costumava dizer, já para o fim da sua vida: sofro de uma doença muito má; e quando se lhe perguntava qual era essa doença, respondia: é a da muita idade; e, esta, não perdoa a ninguém.

Aquando da inauguração da actual ponte que liga Cacia a Angeja, pelo saudoso ministro das Obras Públicas, Duarte Pacheco, o senhor Conselheiro sofreu um dissabor tremendo: quando se preparava para ler o discurso que tinha escrito para tal acto, a fim de, em nome do povo de Cacia, agradecer aquele melhoramento, o Ministro, que andava sempre com pressa nas suas deslocações (foi a sua pressa para assistir a um Conselho de Ministros que ocasionou o desastre de que foi vítima quando regressava de Vila Viçosa a Lisboa), reparando nas muitas páginas que tinha o discurso, dirigiu-se, amavelmente, ao senhor Conselheiro e disse-lhe mais ou menos isto: – O que aí está escrito é tudo para mim, não é? Como, agora, não posso dispor de tempo e da atenção necessários para o ouvir, e, como estou convencido que o que aí se diz é muito importante para esta região, agradecia que V. Ex.ª fizesse o favor de me entregar esse escrito e eu prometo lê-lo, em Lisboa, no meu gabinete, com toda a calma e atenção.

Mais tarde, e muito depois desta cena, Duarte Pacheco foi visto numa bateira, por debaixo da ponte a verificar se ela estava construída de harmonia com o projecto aprovado que, para o tempo, era de técnica muito avançada.

Duarte Pacheco que, devido a sofrer de uma úlcera estomacal (ou duodenal?) só bebia leite, não perdia tempo nos banquetes que se realizavam aquando das inaugurações que fazia, aproveitava esse tempo para observar, sem acompanhamento, o que, na realidade, pretendia ver.

Nas deslocações que, nesse dia, fez dentro de Aveiro e arredores, notou a presença constante do Chefe VidaI, da Polícia, que por ordem superior o seguia de motocicleta, com a boa intenção de lhe poder ser útil ou prestar-lhe ajuda, se dela necessitasse o Ministro.

Ou porque não simpatizou com o Chefe Vidal, ou porque na realidade desejava deslocar-se sozinho, o certo é que exigiu que o livrassem de tal personalidade, não permitindo que ele o seguisse ou lhe voltasse a aparecer, como tinha acontecido até então.

A actual ponte foi um grande benefício para toda a nossa região, pois a de madeira, que ela substituiu, já não permitia o trânsito de veículos pesados, sendo certo, também, que no tempo das cheias do Vouga, os seus acessos ficavam debaixo de água.

A reparação da mesma era muito dispendiosa e não remediava o inconveniente das cheias.

Apesar de haver, já há tempos, projecto elaborado para a ponte de cimento, e na execução da mesma Duarte Pacheco ter mostrado muito empenho, / 106 / tendo, mesmo, já, posto a concurso a empreitada, a verdade é que a concretização de tal trabalho era difícil, por não haver, no mercado interno, o ferro necessário para o efeito e, no externo, dificuldades em o conseguir.

Aconteceu, porém, que em determinada altura entrou no Tejo um navio carregado de ferro.

Contactados os donos desta mercadoria pelos empreiteiros da ponte, estes verificaram que a carga continha ferro de medidas que podiam ser aplicadas na referida construção, pelo que tentaram acertar a compra do ferro de que necessitavam; porém, os donos só vendiam a carga completa e a dinheiro, o que, para eles, era impossível de realizar; pediram, então, um prazo para resolverem o assunto e, depois de combinarem o preço, os proprietários da mercadoria comprometeram-se a manter a palavra dada durante 48 horas.

Posto o assunto a Duarte Pacheco, que examinando o problema e desprezando a burocracia, passou o cheque da importância necessária para aquela transacção, acertando, depois, as contas com os empreiteiros.

Cacia era quase que uma estância de repouso estival ...

Os naturais daqui, e os de Sarrazola e da Quintã do Loureiro, eram grandes industriais de padaria e estabelecidos por todo o País, principalmente em Lisboa e arredores.

No verão, e na altura das festas, os seus familiares vinham passar uns tempos às suas casas e arrastavam consigo pessoas amigas que, desta forma, se habituaram a vir passar as suas férias a Cacia.

E até havia rapaziada de Aveiro que alugava casa em Cacia para a família passar as férias (pois, nessa altura, quem estava empregado, não as tinha) pela facilidade de transportes e pequena distância de Aveiro, o que lhes permitia ir, todos os dias, jantar e dormir com os seus.

Estes veraneantes mantinham entre si e até com os habitantes de Cacia, relações de amizade e até de intimidade.

O areal muito limpo e o rio com abundante quantidade de peixe permitindo o exercício da pesca à linha, o movimento nos campos marginais cultivados com esmero e a gentileza do povo de Cacia, tudo contribuía para que houvesse quem, necessitando de sossego e descanso, escolhesse esta povoação para, anualmente, passar as suas férias.

Era, também, motivo de distracção, a travessia dos carros de bois que transportavam, pelo rio, de uma para outra margem, as alfaias e os produtos agrícolas, por vaus conhecidos dos seus condutores que, umas vezes, iam à frente dos bois, e, outras, em cima dos carros.

No primeiro caso – e se eram mulheres que conduziam o gado – estas iam arregaçando as saias (para não as molharem) à medida que o rio era mais fundo. E estou a lembrar-me de uma que, cedo ainda, e atravessando um «fundão» já tinha arregaçado, mesmo muito, as saias; uma pessoa amiga, que da margem a observava, gritou-lhe; dá-lhe de beber! Ao que ela, sem se zangar, respondeu; e, se o fizesse, já não era em jejum!

Foram frequentadores assíduos de Cacia Amadeu José do Vale, poeta e autor teatral de várias operetas e revistas e sua esposa, D. Maria do Vale. Esta, para se restabelecer de uma doença, aceitou o conselho do seu médico, Dr. Simões Carrêlo (natural de Cacia) e veio viver para aqui, tanto mais que, em solteira, já algumas vezes tinha passado épocas em casa de pessoa amiga.

E, com o casal Vale, vieram vários actores e actrizes como Santos Carvalho, Ema de Oliveira, Filomena Lima e outros.

E toda esta gente tomou conhecimento, e criou, e manteve, laços de grande amizade com as raparigas e rapazes do Grupo Cénico de Tricanas e Galitos, que, por essa altura, ensaiava a revista «Ao Cantar do Galo».

Frequentadores eram, também, uns caçadores do Porto que, juntando-se com os de Cacia e os de Aveiro, não só faziam vida com os restantes veraneantes, como também, tinham as suas reuniões próprias; e quando caçavam, faziam-no juntos, reunindo o resultado da caçada para se fazerem patuscadas em que entravam todos os amigos, quer os de Cacia, quer os de fora.

Amadeu José do Vale foi, durante vários anos, / 107 / Presidente da Assembleia Geral do Clube Recreio Caciense, pois, com o amor que ele devotava a Cacia, até se fez seu habitante, comprando uma casa para sua residência.

Uma rua de Cacia tem o seu nome.

Verificando que o Clube tinha necessidade de obter receitas extra quotização, e, também – digamos a verdade – para entretenimento de todos, e deles próprios, obteve a anuência dos actores Santos Carvalho e Ema de Oliveira para levarem à cena um espectáculo teatral, para a montagem do qual todos trabalharam.

Escolheram uns amadores com jeito e ensaiaram-nos.

O que foram esses espectáculos dizem-no os cartazes, então postos a circular, e que aqui se reproduzem; e, ainda, a fotografia de uma das cenas cujo mobiliário foi emprestado pelo senhor Conselheiro.

Também do jornal «Ecos de Cacia» datado de 10 de Outubro de 1942, vou transcrever, tal qual lá está escrito, o que ele diz a este respeito:

«Conforme programa que publicamos realizou-se no último domingo no Salão deste Clube o espectáculo da hilariante comédia em 3 actos DAR CORDA PARA ENFORCAR! que um simpático grupo de amadores e dois ilustres artistas levaram a efeito com admiração geral.

A nossa crítica vamos encetar: o Clube Recreio Caciense foi pequeno para conter a multidão e, devido a isso, algumas dezenas de pessoas ficaram sem bilhetes.

Os espectadores de todas as classes sociais, aguardavam o início; sobe o pano, ainda entra mais gente pertencente à lotação, depara-se com uma cena nova, belamente mobilada.»

Segue-se a apreciação do trabalho dos componentes, terminando:

«... está terminado o espectáculo; um pequeno intervalo para arrumar a sala e o baile envolta-se até às 3 horas.

Foi este o mais importante espectáculo levado à cena em Cacia, agradando a todos os espectadores o trabalho sublime de todos os intérpretes, Sr. Manuel dos Santos Carvalho, Sr.ª D. Ema de Oliveira, mademoiselles Julieta Ferreira e Regina Barbosa e os Srs. Florentino Maia e Henrique Silva.

Os nossos cumprimentos.»

Termino esta minha colaboração, agradecendo ao meu amigo Florentino Maia a cedência do material com que elaborei parte deste artigo: cartazes, fotografia e artigo dos «Ecos de Cacia».

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Em tempo:

Ao rever este escrito, notei que não relembrei que foi em Cacia, em 1919, aquando da revolução monárquica que estalou no Porto e ficou conhecida pela TRAULlTÂNIA, que as tropas republicanas organizadas em Aveiro pelo, então, Coronel Peres e pelo Comandante Rocha e Cunha, com os militares dos dois regimentos e voluntários civis, travaram a marcha às tropas que apoiavam aquele movimento, e que se dirigiam para o sul onde contavam com apoios, visto que havia regiões militares comandadas por generais monárquicos, como acontecia com Coimbra.

Foram dias terríveis os que se passaram em Cacia e em Aveiro, sem comunicações com o resto do país, até que chegassem os regimentos de infantaria e de marinha, de Lisboa, e o de artilharia de Viseu, que derrotaram as tropas monárquicas e restabeleceram a ordem existente.

Algumas casas de Cacia foram atingidas com balas, nelas deixando marcas.

Se os monárquicos tivessem atravessado o Vouga, as coisas ter-se-iam complicado muito.

Maio de 1978.

J. E. C.

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* Contabilista. Publicista aveirense

 

 

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