Assistência técnica no Brasil

POR

ALBERTO FRAZÃO *

 

Em 1 de Novembro de 1966 partimos, o sr. Manuel Pais e eu, com destino à fábrica de papel da «Companhia Indústrias Brasileiras Portela», implantada em Jaboatão, localidade que fica a 18 km da cidade do Recife, no Nordeste Brasileiro.

Fizemos a viagem de avião. Era o nosso baptismo de voo: cerca de 1 hora no ar, entre Lisboa e Madrid, e mais 10 horas, entre Madrid e o Recife, interrompidas por uma paragem em Dacar, que havia que reabastecer o aparelho, antes de iniciar a travessia do Atlântico.

Perto já do termo da viagem, pouco depois de ter nascido o sol, avistámos a costa brasileira. Confesso, embora corra o risca de ser apelidado de chauvinista por algum desdenhoso «intelectual», que pensei então com admiração nesses portugueses de antanho que, meses a fio, em barcos sem comodidade nem segurança, percorriam mares desconhecidos, em busca de novas terras. Tentei imaginar as suas reacções ao avistarem esse pedaço de terra que eu, nesse momento, vislumbrava...

Pelas 6 horas da manhã, hora brasileira, aterrámos no aeroporto de Guararapes. Todavia, e antes que nos deixassem pôr o pé em terra, eu, o avião, e os demais passageiros fomos desinfectados. Um empregado da alfândega, armado com um pulverizador, percorreu a avião, esguichando tudo e todos com um produto mal cheiroso. Este mesmo «cara», que também vistoriava bagagem, enquanto punha as tradicionais riscas a giz na nossa, ia perguntando, sorridente e jovial, se tínhamos gostado do cheirinho. Sentimo-nos duplamente gozados, mas por um gozador que nos acolhia com simpatia. Rimo-nos, e fomos à nossa vida.

A temperatura rondava os 28º à sombra.

Cá fora, alguém nos esperava para nos conduzir ao hotel e, mais tarde, após o chuveiro, o corte da barba e o pequeno almoço, aos escritórios da fábrica, no Recife.

Começava o primeira dia dos quase 2 meses de trabalho que passámos no Brasil.

Íamos para prestar assistência técnica a uma fábrica que, embora deficitária, talvez desde longa data, alguém reconhecera ter, em potência, a capacidade de se tornar num empreendimento viável.

Esperava-se que nós o conseguíssemos.

A missão afigurava-se-nos bastante difícil. É que, além do mais, ter a pretensão de fabricar papel com pastas de sisal, bambu e bagaço de cana de açúcar, pouco referenciados na literatura técnica, e que nunca tínhamos visto e, em menos de 2 meses conseguir, com essas fibras, o que outros, em anos de trabalho, não tinham conseguido, pareceria a estes, certamente, um atrevimento inaceitável, quiçá insolência. Seria portanto de esperar, da sua parte, uma recepção pouca amistosa e pouco ou nenhuma colaboração. Acrescia ainda o facto de por lá terem passado técnicos de várias origens sem resultados muito palpáveis.

Na verdade, embora não tenhamos sido frontalmente hostilizados, alguém houve que, embora a sorrir, sempre foi dizendo que um anterior gerente tinha sido suspenso da ponte, pelos pés, e que se ali não ficou, foi porque um oficial do exército de lá o foi tirar... Verdade?

Tudo decorreu, no entanto, bastante melhor do que tínhamos previsto. Acabámos por conseguir muito bons resultados, a curto prazo, advindo daí uma mudança de atitude da maioria do pessoal, que passou a dar-nos maior colaboração. Bastará dizer que as perdas, que se cifravam, em média, em 800 contos por mês, logo em Novembro se transformaram num lucro de 100 contos, e isto apesar de a fábrica ter estado parada vários dias por falta de matéria-prima. É que não havia dinheiro nem créditos para a adquirir.

Que fizemos para conseguir tais resultados? Tratou-se de algum golpe de génio? De descoberta sensacional? / 98 /

Não, nada disso.
Foi Edison, salvo erro, quem disse que nas obras de génio há 1 % de inspiração e 99 % de transpiração. Creio poder dizer, também, que se os nossos conhecimentos contribuíram para os bons resultados obtidos, mais terá contribuído a nossa transpiração. Trabalhámos duramente.

Procurámos, antes de tudo, conhecer bem a instalação, as fibras de que dispúnhamos, e os papéis que, com elas, vinham a ser fabricados. Desse estudo resultou a quase certeza de que seria vantajoso alterar os circuitos das pastas, reduzir a sua refinação e trabalhar com maiores diluições na caixa de alimentação. Assim fizemos, começando por aplicar as medidas referidas à linha principal.

Os resultados foram espectaculares: a velocidade da máquina, que era de 82 m/min., passou para 152 m/min. E, apesar do aumento enorme de produção, parámos 2 do 4 refinadores normalmente em serviço, o que representou grande economia de energia. O papel manteve-se, sem alteração sensível de características. A máquina trabalhou 8 horas seguidas sem quebras, e mais não trabalhou por ter faltado a matéria-prima. Mais tarde, a velocidade da máquina foi levada, no mesmo tipo de papel, até 170 m/min., velocidade máxima admitida pelo respectivo accionamento.

Uma vez definidos os princípios gerais a adoptar na preparação das pastas, duas outras grandes questões nos propúnhamos então resolver: encontrar as composições mais económicas e reduzir o consumo de vapor. Quanto à primeira, conseguimos, diversificando o seu tratamento, fazer a substituição de parte da pasta de sisal, bastante cara, por pasta de bambu e da pasta de bagaço cozida com soda por pasta cozida com cal. Com a finalidade de economizar vapor, tomámos várias medidas, entre as quais sobressaem a montagem de uma prensa de borracha sobre o cilindro aspirante, a modificação da posição das prensas e do trajecto dos respectivos feltros, a regularização do gradiente de temperaturas na secaria, a instalação de um permutador de calor e o evitar a saída do papel demasiado seco no enrolador da máquina de papel.

Posta a funcionar, como desejávamos, a linha principal, dirigimos a nossa atenção para as 2 linhas restantes, seguindo o caminho e adoptando medidas semelhantes às tomadas anteriormente para aquela linha. Os resultados, embora menos espectaculares, foram também francamente positivos. Tivemos mesmo que alterar e pôr em funcionamento uma velha «holandesa» por se ter tornado insuficiente a capacidade de desfibração existente.

Os referidos aumentos de produção conduziram, logicamente, a um aumento de consumo de vapor, pelo que houve necessidade de pôr em funcionamento uma outra caldeira.

A grande rapidez com que essa caldeira foi metida em linha levou-nos a pensar que as coisas não andariam muito bem pelas bandas da Central geradora de vapor e energia eléctrica. Um estudo cuidadoso deste sector mostrou-nos a necessidade de introduzir alterações no sistema de tratamento de água, para se evitar o arrastamento das lamas dos tanques de cal e soda e fosfatos para dentro das caldeiras; de elaborar instruções relativas à operação desse mesmo sistema e ao regime de purgas das caldeiras; de instruir o pessoal quanto aos processos de aquecimento e paralelo de caldeiras, evidenciando os perigos que resultam de um aquecimento demasiado rápido, particularmente se feito com a válvula atmosférica do sobreaquecedor fechada; de chamar a atenção para os cuidados a ter com a operação e manutenção dos queimadores, etc.

Muitas outras medidas, de maior ou menor importância, foram tomadas, mas seria fastidioso enumerá-las. Convirá, no entanto, referir que elaborámos um estudo relativo ao aproveitamento de um turbo-gerador «Stal», existente na fábrica, e um projecto de remodelação da fábrica de papel, tornando-a apta a utilizar pasta kraft de fibra longa em
substituição da de sisal, cujo preço subia então vertiginosamente. Introduzimos também a determinação sistemática de custos mensais por produto fabricado e o hábito da reunião semanal dos responsáveis pelos vários departamentos, com a finalidade de se verificar periodicamente o andamento da produção e dos vários trabalhos em curso, de definir prioridades nas obras de reparação e manutenção, etc.

Creio, em suma, que a nossa presença foi útil para a fábrica de Jaboatão; que deixámos bem representados os nomes de Portugal e o da Companhia Portuguesa de Celulose. Sei que fizemos por isso quanto estava nas nossas mãos, porque de sermos portugueses e empregados da C. P. C. nos orgulhávamos.

No dia 23 de Dezembro voltámos a Portugal.

A. F.

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* Engenheiro Mecânico, Chefe de Divisão de Produção de Papel e Embalagens do Centro - CACIA

 

 

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