A HISTÓRIA DA CONTRATAÇÃO COLECTIVA

NA HISTÓRIA DA CELULOSE

POR JOÃO DE ALMEIDA *

 

Longe vão os recuados tempos de 1950, quando, envolvidos numa onda de boatos sobre os terríveis fins a que o empreendimento se destinaria, se iniciavam, em Cacia, os trabalhos de desaterro no local onde haveriam de implantar-se as Instalações Fabris da Companhia Portuguesa de Celulose.

E os boatos aumentariam, quando, pouco tempo depois, começavam a chegar a Cacia os primeiros equipamentos adquiridos nos Estados Unidos da América, mediante a utilização dos fundos do «Plano Marshall» que, como é sabido, se destinava a reconstruir uma Europa devastada pelos horrores da II Guerra Mundial de que acabava de sair.

A recordação de tais horrores, com todo o seu cortejo de destruições sem conta, morticínios de milhões de pessoas, fome e privações de toda a ordem, estava ainda bem viva na mente das pessoas.

E, mesmo no nosso País, que à guerra, embora não a muitas das suas consequências, foi poupado, o simples receio de que tudo de novo recomeçasse fazia olhar, com desconfiança, qualquer empreendimento que constituísse, por assim dizer, uma pedra no charco duma industrialização inexistente ou duma agricultura estagnada. Daí que qualquer iniciativa, que extravasasse os hábitos rotineiros e atávicos dum povo fatalista, fizesse nascer e desse corpo a boatos que, nem por serem objectivamente incríveis, deixavam de ter acolhimento na generalidade duma população sem horizontes na senda do progresso.

A fábrica a montar em Cacia a tudo se destinava, portanto: fábrica de bombas, canhões, granadas, aviões, tanques, eu sei lá, que o «terrível imperialismo «yanke» desejava afastar da América para não levantar suspeitas dum rearmamento até aos dentes e com a vantagem de a ter, pronto a ser servido, no local do teatro de novas operações!...

E só quando, no segunda semestre de 1953, a chaminé da fábrica começou a deitar cá para fora os fumos, que, no capítulo da poluição, tanta tinta haveriam de fazer correr, e os primeiros fardos de pasta crua começaram a sair, os boatos amainaram.

As próprias acções da Companhia Portuguesa de Celulose – SARL, que, por efeitos da desconfiança generalizada, poucos desejavam subscrever e se transaccionavam ao desbarato por valores inferiores ao do seu valor nominal, perante a realidade palpável, agora aos olhos de toda a gente, iniciavam um processo de recuperação e de valorização que, até 1974 não deixaria de crescer.

É que, entretanto, no segundo semestre de 1954, iniciava-se a fabrico de papel kraft; em 1955, o de papel de jornal; em fins de 1957, o de pasta mecânica; mais tarde, o fabrico de pasta branqueada; e, finalmente, o de cartão canelado, embalagens, sacos e fita gomada.

Afinal, as armas eram de outra espécie e bem necessárias ao desenvolvimento da nossa economia e duma industrialização nacional incipiente.

Assistia-se, assim, à concretização duma ideia duns poucos, já velha de muitos anos. Remontavam, efectivamente, a 1937 as primeiras diligências do Eng.º Manuel dos Santos Mendonça e a 1939, os do Eng.º Vasco Quevedo Pessanha que, unidos os seus esforços, em 1940, haveriam de ser os dinâmicos fundadores da C. P. C. cuja escritura de constituição se viria a celebrar, após vários contratempos e peripécias, em 4 de Novembro de 1941.

Longe estavam, na verdade, esses tempos em que a luta contra a burocracia e obstáculos de vária ordem saiu vencedora.

A fábrica aí estava como realidade indesmentível. Com a conquista de mercados internos e externos, a produção subia, as encomendas aumentavam e as divisas entravam.

Entretanto, toda a geografia humana de Cacia, que passara a ser de facto / 95 / um ponto assinalado no mapa de Portugal, se alterava profundamente. Duma população reduzida a escassas centenas de fogos cujos habitantes se dedicavam à pesca artesanal e à agricultura onde sobressaíam as culturas do arroz e do junco no Baixo Vouga, Cacia passava ser ponto industrial de relevo no País, pois lá se instalara uma indústria base de capital importância. Não admira, pois, que para ali acorresse parte do excedente demográfico do interior, superpovoado de agricultores que outro remédio não tinham, até ali, senão o de, regando com o seu suor as pedras das serranias, tentar baldadamente extrair delas o pão de cada dia.

São efectivamente centenas de famílias que, em Cacia e arredores, vêm fixar-se, o que traz, como consequência, que ali se fixem também um comércio e actividades afins que, até então, não passavam duma ou outra tasca, onde de tudo se vendia um pouco, desde os vinhos e petiscos às ferragens, fazendas e mercearias.

A simples indicação anual do número de trabalhadores ao serviço da C.P,C. dar-nos-á uma ideia da evolução verificada, [como se pode ver no quadro reproduzido].

A partir de 1955, portanto, mais de um milhar de famílias vive do salário pelo trabalho prestado à C. P. C..

Que salário?

Praticamente que, desde o início da laboração da Fábrica, os salários nesta praticados eram superiores aos auferidos noutra qualquer unidade fabril da região e, não raro, do País. Daí a busca, a todo o custo, de emprego na Fábrica de Celulose de Cacia, onde, além do mais, se beneficiava duns serviços sociais (cantina, principalmente), então pouco vulgares no limitado parque industrial português.

Se recuarmos às décadas de 1950 e 1960, verificaremos que as retribuições pagas eram sem dúvida superiores às praticadas na generalidade das empresas.

Além de que, por parte da Administração, sempre, com excepção de 1958, foram anualmente autorizados aumentos de retribuição de maior ou menor montante.

Por outro lado, num tempo em que, praticamente, não havia contratação colectiva de trabalho generalizada, nem salário mínimo nacional legalmente estabelecido, à parte alguns despachos de salários mínimos para determinadas actividades, bem poderá dizer-se ter sido a C. P. C uma das empresas nacionais pioneiras neste campo.

Aliás e como se sabe, os Sindicatos ao tempo existentes, sem qualquer autonomia, porque dominados pela Administração do regime e sem força, porque proibida e até considerada como crime, pelo Dec.-Lei n.º 23870, de 18-5-1934, a arma principal dos trabalhadores, a greve, não tinham quaisquer possibilidades de legalmente fazer impor a contratação colectiva às administrações das empresas.

Com efeito, não obstante a contratação colectiva estar prevista no Estatuto do Trabalho Nacional e sistematizados os princípios que deviam reger os contratos e acordos colectivos de trabalho no Dec.-Lei 36.173 de 6-3-1947, a verdade é que tal sistematização não passava dum mero enunciado de princípios de intenção, sem qualquer norma legal que tornasse obrigatória a celebração duma convenção colectiva de trabalho, sempre que qualquer das partes, sindicatos ou entidades patronais, tomasse a iniciativa duma qualquer proposta nesse sentido.

Como até à publicação e entrada em vigor do Dec.-Lei n.º 49212, de 28-8-1969, a lei não estabelecia as normas processuais a que a celebração das convenções colectivas devia obedecer, nem prazos a respeitar, nem sequer a obrigação de responder a quaisquer propostas, bem poderia acontecer – e muitas vezes aconteceu – que o destino da maioria daquelas, quando da iniciativa dos Sindicatos, fosse a gaveta dos patrões ou das suas associações de classe (grémios), onde dormiam anos e anos, até que, amarelecidas pelo tempo, seguiam o rumo normal das coisas inúteis: o cesto dos papéis.

Daí que se contassem pelos dedos os contratos colectivos de trabalho existentes actualizados e, praticamente, não existissem, salvas algumas excepções, os acordos colectivos de trabalho. / 96 /

Ora, logo em 1957, quando ainda vigorava a velha Lei 1952 de 10-3-1937, reguladora dos contratos individuais de trabalho e que ainda longos anos teria de vida até à entrada em vigor do Dec.-Lei 47032, de 27-5-1966, que a substituiu, a Administração da C. P. C. celebrou, com todos os Sindicatos representativos do seu Pessoal, o primeiro Acordo Colectivo de Trabalho que viria a ser publicado no Bol. do I. N. T.P. n.º 22/57, de 30-11-1957.

Uma ligeira análise desse ACT permitir-nos-á confirmar o que atrás deixámos dito. Além do nível de salários nele fixados ser superior ao geralmente praticado, ali se estabelecia um conjunto de regalias contratuais, que hoje, visto à distância no tempo, nos parece ridículo, mas que, na época, atenta a prática nas outras empresas e o disposto na velha Lei 1952, de modo algum poderia deixar de considerar-se significativo.

Apesar de, anualmente, se processarem aumentos de salários unilateralmente concedidos pela entidade patronal, em 1963, é celebrado novo Acordo Colectivo de Trabalho, que, após a publicação no BoI. do I.N.T.P. n.º 6/63, de 31 de Março, entra em vigor.

Nele são ampliadas as regalias contratuais já constantes do ACT de 1957 e consagradas muitas outras que, além do mais, tiveram como consequência, por arrastamento, que as empresas da região entretanto montadas por complementaridade da indústria de Celulose ou já existentes, procurassem aproximar-se, no capítulo das condições de trabalho concedidas, da Fábrica de Cacia.

Até nestes aspectos, no fomento de sectores complementares, como os de habitação, comércio e hotelaria e no incentivo, que representou, na melhor remuneração da mão-de-obra da região, incluindo a própria cidade de Aveiro, a CPC teve fundamental importância.

Após várias ampliações das linhas de fabrico, a CPC torna-se uma unidade industrial de dimensão pouco vulgar no País e ao nível de grande parte das suas congéneres no campo internacional.

Cria-se, entretanto, uma nova empresa de Celulose, a SOCEL – Sociedade Industrial de Celuloses, SA,RL, cuja fábrica, situada na Mitrena – Setúbal, entra em laboração em princípios de 1964.

Dada a circunstância de pertencerem ao mesmo grupo financeiro, entre a CPC e a Socel, desde a fundação desta, desenvolveu-se uma política de apertada colaboração, em todos os campos, com mútuos reflexos nas condições de trabalho do seu pessoal, funcionando, cada uma delas, de forma de certo modo competitiva, como incentivo da outra. E a tal ponto tal colaboração se desenvolveu que, nos começos da década de 1970, a fusão de ambas as empresas aparece como objectivo a curto prazo e definitivamente aceite pelas respectivas administrações.

Por tal motivo, o ACT que a Socel celebra, em meados de 1971, com os Sindicatos representativos do seu pessoal, agora já com a força que, do estabelecido no citado Dec.-Lei 49212, lhes advinha, acaba por constituir também, com ligeiras alterações, o novo ACT da CPC que, após meia dúzia de meses de negociações, é publicado no BoI. n.º 26/712, de 28-7-1972 e entra em vigor em 1 de Agosto do mesmo ano.

Se nos lembrarmos que o ACT da Socel foi, no acto da sua assinatura, classificado, pelo representante dos Sindicatos, que 'usou da palavra na cerimónia, como verdadeiro Acordo-piloto, ficaremos com uma ideia do que tal convenção colectiva representava, ao tempo, no avanço das regalias dos trabalhadores.

Revisto em começos de 1974 (BoI. INTP, n.º 13/74 de 8-4-74, nas condições permitidas pelo Dec.-Lei 196/72, então em vigor, o ACT de 1972 (ainda agora vigente na parte em que não foi derrogado pela aceitação do Caderno Reivindicativo subsequente ao 25 de Abril de 1974), fez-se, em tal revisão, a actualização das remunerações do Pessoal. E significativamente, porque a fusão com a SOCEL apenas esperava a escritura pública que a formalizasse, estabelecia-se, no n.º 9 da cl.ª 25.ª, que «todos os aumentos salariais generalizados, que pela Socel tenham sido ou venham a ser, voluntariamente, concedidos a partir de 1 de Janeiro do ano em curso (1974), serão extensivos aos trabalhadores da CPC».

Desta disposição contratual, ainda o Pessoal da CPC viria a beneficiar uma vez.

Porém, com o advento do 25 de Abril, tudo se alterou significativamente.

A fusão com a SOCEL foi naturalmente posta de lado e, só mais tarde, ela adviria, com maior amplitude, quando, após a nacionalização das empresas, de celulose (Dec.-Lei 221-B/75, de 9 de Maio), foi constituída a actual Empresa Pública, PORTUCEL (Dec.-Lei n.º 554-A/76, de 14 de Julho) de que a antiga CPC constitui um dos Centros de Produção Fabril.

Presentemente, decorrem as negociações para a celebração dum ACTV para toda a PORTUCEL. Negociações difíceis e morosas cujo termo, com impaciência, se aguarda. Não pode, porém, esquecer-se que quanto maior é a nau, maior é a tormenta.

De qualquer modo, se as potencialidades da Celulose já provaram e deram os seus frutos no passado, por que não haverão de continuar no futuro?

Em todo o caso, a história das empresas, como a dos povos, de que é componente sociológica essencial, contém em si elementos cujos aspectos pedagógico e pragmático não poderão nem deverão esquecer-se.

Renegar ou esquecer aquela história conduzirá a renegar e a esquecer que o Homem é também produto do seu meio que, no tempo e no lugar do seu trabalho, os seus hábitos foi moldando.

J. A.

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* Advogado, Chefe de Serviços do Pessoal e A, Sociais do Centro - CACIA

 

 

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