inventário & balanço

CONTO

POR

IDALÉCIO CAÇÃO *

 

Sou o Chancas, mas aqui na fábrica ninguém me conhece por isso, é lá na parvónia donde vim que me dão esta graça, por mor que eu andava sempre com os pés metidos nuns tamancos granjolas, geasse ou chovesse, ou assobiasse o vento nos enxaiméis. Aqui sou eu mesmo. Tratam-me pelo nome da pia do baptismo e tenho ainda um número sempre presente na memória. Um número, ouviram? Como se um homem andasse na tropa, que isto uma fábrica é mesmo um quartel, com batarias e tudo, comandantes e impedidos, oficiais e homens de pré.

Eu sou do tempo ainda em que o comandante era um gajo pequenino, um fraquezas, um amarelo chupado das carochas. Mas com um peso do carago!... Homem pequenino ou velhaco ou bailarino, não é? E o tal não me consta que soubesse dançar. Um coitado vinha lá de cascos de rolha, arrancado às berças, fazer a sua França, que é como quem diz, de maneiras que aquilo tinha de ser tudo muito respeitinho, a boina nas unhas e a cabeça derrubada, quando passava o tal meia leca de gente, mas que era quem todo lo manda, como dizem os espanhóis. Conho, mira losté, só de lembrar-me... Põe-te a fancos, Zé Pereira – o meu nome é mesmo José Pereira, mais nada, e lá o do manda-chuva tinha uma data de albardas que só visto. Uma porrada de sobrenomes, entende-se? Até nisto um pobre fica a ver navios. Põe-te a fancos, Zé, que o gajo vem sorrateirinho, num silêncio de gato felpudo, dar uma volta às obras, e é o diabo.

Cá o Chancas, ou outro qualquer como eu, andava com os olhos cravados no trabalho, ali, de peito feito, e não dava com a tal incelência. Era o catano. Falta de respeito perante um superior e zás! Vinha logo a talhada da praxe. Ou então punha-se a praça um nadita ao alto a descansar as cruzes, um tilzinho só na retranca, e a pancada lá vinha na mesma. Como está, senhor engenheiro, passou bem? E a boina logo chapadinha nas unhas, ali, como manda a puta da sapatilha. E a cabeça derreada, numa vénia, que mais parecia mas é dum lindo par deles, e mais não lhe conheço o peso. Valia-nos dum grosso! Preso por ter cão e preso por não ter, é por isso que eu digo que era preciso estar sempre a fancos com o bicho. Ou não tenho razão?

– Chancas, ó Chancas, o que é que tu fazes lá na tal fábrica? – perguntavam-me quando eu ia à terra. E eu, vá, contava que fazia e acontecia, a armar aos cágados. Ficava-se com a ideia de que eu era o chefe cá desta balhana, baleias de côvado que eu contava na venda do Laronha. – Sou tu-cá, tu-lá com o engenheiro, arrotava cá eu.

Era assim naqueles tempos, quando não um homem não passava dum merdas qualquer. Mas volto a dizer que aquilo era tempo dum corno mais velho, mal nos percatávamos era cá um coice nas partes!... Também, olha, os que trazem um seixo nos dentros do peito hão-de pagar a patente neste mundo – ai não que não pagam! –, que no outro a gente não sabe ao certo se as contas chegam a ser feitas. Nessa altura, um homem desforra-se. Chancas, tu ficaste num sino em festa, foi ou não foi? Quando o tal comandante levou um biqueiro naquele sítio. Embrulhadas retorcidas ou coisa, fosse por que fosse, o fulano arrancou rijo da fábrica e, de tanta folia, eu e uns manos cá da cor enxugámos uns canecos valentes que só visto. Bota e vira, à saúde, foi uma bebedeira das antigas.

Sou o Chancas, e depois? Se forem a Canudos – que é assim um buraco aberto no regaço da serra –-, quitam de perguntar pelo Zé Pereira, que ninguém dá fé de quem seja. Falem é no Chancas. O quê, um que dá os dias santos numa fábrica assim, assim? Toda a gente vê logo de caras quem é, pois, um tipo bem situado lá em Vougacia. Pintam-me até com bens ao luar. Não sabem é o que um homem amargou em turnos e turnos de degredo, os sonos trocados, os gases a roerem os ossos a um homem. Trato de cachorro, digo eu, mau passadio. E os tempos de antigamente, quando era o tal chupado das carochas a mandar? Aguenta-te, Chancos! Sinto ainda arrepios de medo espinha-acima, castigos em riba do lombo, sacanices, um gajo era um completo panal. Ou um monte de trampa. E o mal não era só do tal mandante dos princípios da fábrica, porque outros e outros vieram depois com poucas melhoras, ah! Zé Pereira, tu andaste sempre numa fona, os olhos cravados no trabalho, os ouvidos atentos por causa das moscas. Foi ou não foi? Quando o mar bate na rocha, é sempre o mexilhão que se lixa.

Até que, até que. Chego a gaguejar só de ver o que foi aquele dia em que a maralha soube que tinha havido sarrafusca em Lisboa. Em Abril, a 25, num dia que calhou a uma quinta-feira. A malta ajuntou-se toda, aos vivas e vivas, e os reaças a cortarem-nas, e uns certos senhores com culpas no cartório a fazerem-se muito nossos amigos. Um dia importante, carago, quem é que vai esquecer? A gente conquistou coisas que nos andavam sonegadas, a gente anda agora de cara mais alevantada para aqueles que estão no poleiro. Desde aquelas jornadas de Abril, desde a Grândola cantada em coro no 1.º de Maio, nos comícios, nas grandes manifestações de rua. Grândola, vila morena! Terra de fraternidade... Coisa mais linda nunca se cantou neste país. Quem é que vai esquecer? Só mesmo com umas pazadas valentes de terra em cima do caixão.

Sou o Chancas, José Pereira, do caldeiro do baptismo. Letras bem poucas, ou nenhumas, mas tenho entendimento bastante para alcançar donde é que nos veio a fortaleza, a cara erguida, regalias que nem sonhadas no tempo do fascismo. Eh, Chancas, então tu dantes sabias o que era isso do fascismo? Por acaso não sabia, não senhor, uma dúzia aqui na fábrica é que sabia e alguns / 93 / desses, olha, malharam com os ossos nas cadeias tarrafais. A gente queria era a ganhuça espremida, a bagalhoça para a mantença e uma forrazita pro que desse e viesse, tudo sempre na rédea curta. Tão curta que o Toino da Leandra – um tipo encolhido, mas que tratava por tu a máquina de papel – viu-se de repente com o pré a dobrar e tinha até vergonha de o receber porque achava que era demais. Os coitados dos pobres são assim, nem têm a noção daquilo que valem. Mas do agora já fia mais fino. Desde que os fachos fizeram as malas, a malta como eu viu que tinha uma força dos diabos, era só continuar de posse das liberdades conquistadas, a que dantes nem nos julgávamos com direito. Alguns de nós, entenda-se. Porque outros, bem poucos, lutaram por elas aqui, no arrocho, foram engavetados para a prísia, e esses eram os tais camaradas que sabiam já o que era o fascismo.

Mas agora falo é do 25 de Abril. Eu não esqueço, a maralha que nunca esqueça também. Falo da Revolução que fez de cada Chancas como eu um homem livre, um operário que sabe que o mundo só se transformará pela força dos nossos braços e da nossa vigilância, pelo nosso trabalho consciente. Um chefe é preciso, eu não sou contra isso. É preciso haver quem mande e dirija, se não andava tudo à balda, sem regime, era uma balbúrdia do camandro. Cá o Chancas atinge que é assim, e mais tem razões de sobra para dar com os pés em certos pançudos. Mas um chefe que respeite os nossos direitos, que não amonte num homem, que seja camarada, hem! Faz falta e é do meu grado. Ah, e sobre todas as coisas que não traga sempre um chicote nos passos abafados de ruindade, que é uma coisa com que eu engalinho. Como antigamente, no tempo da senhora comadre. Quando me lembro – nós todos dobrados como se fôssemos pedaços de barbante que o tal gajo pequenino atava e desatava à vontade –, forma-se-me um nó de vergonha nas goelas, e o caso não é para menos. E nisto éramos todos unidos como os dedos das mãos, no respeitinho ao tal, na carneirice de dobrarmos a espinha quando ele passava. No mais, ó minhas encomendas, desunidos como cachorros a um osso, vigiávamo-nos, contávamos coisas uns dos outros aos capatazes, para ver qual de nós trepava um degrauzito na escada. É ou não é de um tipo borrar a cara com bosta? Por isso é que eu digo que uma coisa como o 25 de Abril um operário chancudo como eu nunca mais esquece.

– Chancas, ó Chancas! Como é lá isso agora na fábrica?

Quando na terra me fazem esta pergunta, eu digo é isto: o pagode é que tem de cavar a sua independência, ter consciência de classe, que é a coisa mais linda que um gajo de pá e pica como eu pode ter. Os tempos agora são outros. Nunca mais os tempos antigos da cachorrice, meter coisas na cabeça do capataz, para enrascar o parceiro e subir.

Venho já de quando era o tal meia leca de gente que nos metia medo a todos. Chancas ou Zé Pereira, tanto faz, o que segue é que estes dois que a terra há-de comer viram muita coisa neste ror de anos. Coisas de arrepio e vergonha e coisas lindas para a classe – carta de alforria ou lá o que é – que nos deram uma segurança que a malta não pode esquecer. De maneiras que, se hoje me perguntassem – valeu a pena viver, ó Chancas? – eu dizia que sim. Só por estes anos abrilados valeu a pena, muito embora viver seja sempre perigoso.

I. C.

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* Licenciado em Filologia Românica, Escritor, Empregado de Escritório do Centro-CACIA

 

 

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