CELULOSE
POR EVANGELISTA DE MORAES SARMENTO *
artigo 1529 da matriz
predial
De poucos é sabido o que era a chão que hoje
pisamos e sobre o qual, sem nos apercebermos, vamos consumindo,
quotidianamente, as solas da nossa existência.
Não tanto pelo conhecimento da sua origem de
formação quaternária que os geólogos podem precisar. Menos ainda pela
revelação inusitada se por aqui passava a via, ou ramal, da estrada
romana que, vinda de AEminium, conduzia a Cale ou se, por
estas imediações, se localizaria a célebre Talabriga!
Nas asserções românicas dessas certezas não
nos queremos imiscuir, pois que delas se incumbem os arqueólogos, que
nossa intenção é outra, e bem mais modesta.
Pelo pretexto da efeméride que se comemora
nos sentimos estimulados à escrevinhação destas despretensiosas linhas,
movidos apenas na ilusória suposição do valimento possível, quanto mais
não seja de possuírem o mérito de rememorar os mais velhos e de ajudar a
elucidar os recém-chegados para o conhecimento do que antes fora a terra
na qual se acha hoje implantado o importante parque industrial da
Celulose de Cacia.
Apenas isso. E sem deixarmos de admitir a
imperfeição e singeleza deste apontamento, muito longe da exaustação e
profundidade que o assunto mereceria, mesmo assim nos arrojámos a
trazê-lo à luz do dia, valendo-nos da papelada de espólio paternal e de
outros elementos – poucos mais esclarecedores de todo o processo
activado que assistiu à compra dos terrenos da Celulose.
Para além do mais contámos, também, à
partida com a nossa própria e directa intervenção nessa acção, ínfima
quota-parte de contributo que lhe dispensámos na experiência vivida,
cuja recordação temos ainda bem presente.
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A exegese das condicionantes, necessárias e
obrigatórias, requeridas à instalação desta unidade industrial
encontraram plena viabilidade nesta linda e privilegiada região do Baixo
Vouga, escolhida entre outras após complexos e morosos estudos.
Embora carecida de infra-estruturas ideais,
à preferência dada não foi alheia, fundamentalmente, a sua inserção na
periferia da rica área florestal do centro do País, predominantemente
povoada de pinus maritima, matéria-prima básica, essencial à
indústria de celulose.
Outros factores, porém, não menos
importantes, influenciaram na determinação da construção da fábrica em
Cacia.
Imperativos absolutos, portanto, de
conveniência técnica e económica, aconselharam a sua localização na
margem esquerda e a jusante do Rio Vouga, pela consequente conjugação,
vital, de possibilitar, simultaneamente, a captação dos grandes volumes
de água necessários à sua laboração e de permitir, ainda, o
aproveitamento do último troço do rio para o lançamento do efluente, às
vistas do Atlântico.
Outro aspecto preferencial recaiu, também,
no facto de a área das instalações ficar servida, sem grandes dispêndios
na construção de acessos, por duas vias de comunicação indispensáveis: a
linha principal da rede ferroviária e a estrada n.º 8, de ligação fácil
a toda a rede rodoviária, principalmente à nacional de Porto-Lisboa.
Esta circunstância, intencionalmente
previsível, teve em mente dois outros aspectos de real importância: à
fase de montagem, o transporte rápido da grande e pesada maquinaria,
muita dela adquirida ao abrigo
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/ do plano Marshall; e, após a
sua entrada em laboração normal, no futuro – já comprovado –, o
escoamento dos seus produtos, explorando a vantagem económica oferecida
pela proximidade do porto de Leixões e, também, o da certeza de vir a
usufruir do inevitável desenvolvimento do porto de Aveiro, através do
qual a exportação é mais rentável.
A ponderação, criteriosa de todos estes
componentes capitais, acabaria por pesar seriamente na resolução final,
superiormente aceite, e fez convergir, felizmente, a sua fixação para o
concelho de Aveiro.
No entanto, já a determinação governamental
de 1947, que considerou a celulose indústria-base – que consubstanciou a
genial ideia dos seus dois grandes empreendedores – , abria
definitivamente o caminho à concretização do tão desejado e ambicioso
projecto.
E foi a partir dessa decisão, de grande
alcance, que se encetaram as diligências com vista à organização do
processo para a aquisição dos terrenos destinados às actuais
instalações.
Não foi fácil a sua elaboração, como
naturalmente se pode depreender e conforme o comprova a carta
topográfica então levantada da área cobiçada, depois de ter sido
submetida aos requisitos subservientes da agrimensura.
Técnico estrangeiro, qualificado, procedeu
aos trabalhos preliminares de campo, durante os quais algumas peripécias
curiosas redundaram o grotesco.
E, ao falar-se deste assunto, é inevitável a
alusão a um interveniente que, já desaparecido do nosso convívio, foi
pedra basilar no desfiar do emaranhado de acções consequentes e
intrincadas, e que, por via disso, foi intérprete de muitas situações
imprevisíveis que ainda agora nos fazem sorrir de muita saudade –
Manuel Rodrigues Gomes.
Boa figura e alma simples de caciense, por
nascimento, era muito apresentável e simpático. Educado e inteligente,
mas iletrado, teve algumas vezes de carregar aos ombros – qual «besta
humana» como na prefiguração do título da obra de Zola – , descalço,
calça puxada a meio da perna,
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/ em camisa e mangas
arregaçadas, o técnico suíço que, para tirar cotas, achar áreas e anotar
as convenientes confrontações das muitas parcelas de terreno que invadiu
com pruridos de sujidade, não queria conspurcar as botas, sempre
impecavelmente limpas, ao atravessar as praias de arroz e junco ou de
estrume.
Mas não foi por isso que Manuel Gomes foi
«notável». Dotado de uma memória extraordinária, revelou-se
prodigiosamente útil na relacionação e conhecimento exactos da
identificação dos legítimos proprietários das 269 parcelas de terreno
inventariadas, quase tantas quantas no final do processo das
expropriações, acabaram por constituir a área total abrangida pela
Celulose.
Paralelamente à execução dos trabalhos
decorrentes de campo, se foram elaborando as fichas mater daquelas
parcelas que, refeitas por mais de uma vez, continham todos os dados
necessários à consecução do acto de compra.
Contudo, dificuldades de toda a ordem
obstaram, muitas vezes, à correcta feitura dessas fichas. Imprecisões na
colheita de elementos essenciais impediram, por sua vez, atempadamente,
a dinamização das acções com vista à celebração dos respectivos
contratos.
Muitas parcelas, conhecidas na origem por
designações que acidentes orográficos baptizaram, com o decorrer dos
tempos e a intervenção do homem foram sendo subtilmente alteradas.
Assim se toparam mutações temporais, não
registadas, cujo conhecimento popular se estribou tantas vezes, e por
forma genérica, em apelidos de remotos locatários que as gerações
consagraram.
Daí acontecer, frequentemente, que uma mesma
parcela de terreno com a mesma localização era denominada, na freguesia,
por mais de um nome, quando documentos oficiais se lhe referiam com
identificação diferente.
Muitas destas situações, que se detectaram
durante o levantamento do processo, perturbaram imenso os sequentes
trâmites burocráticos, inevitáveis, que forçosamente tiveram de ocorrer.
Na conjugação destes trabalhos, e nos
advenientes de preparação das acções de expropriação, esteve João
António de Moraes Sarmento – ao tempo escrivão de direito no
Tribunal Judicial de Aveiro – que foi intermediário valioso na
liderança, quase diária, dos contactos com as repartições públicas para
a obtenção dos exigentes e indispensáveis documentos.
Apesar de, por parte da Celulose, assistir
sempre às negociações o melhor espírito de conciliação e boa vontade,
com vista a uma mais correcta e justa compensação na compra dos
terrenos, alguns dos proprietários compeliram a cedência dos mesmos
somente por meio de acção judicial.
Sua condescendência foi muito para além
dessa compensação justa,
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/ pois mereceu a promessa –
cumprida – de dispensar todo o apoio moral aos expropriados. Assim,
garantiu-se a muitos, e até seus familiares, o seu ingresso na Empresa,
o que se verificou no decorrer da fase de construção e na iminência do
arranque da Fábrica.
Entretanto a atoarda generalizada, a
princípio, de considerar antecipadamente a fama da Celulose – mesmo
antes dela ainda se ter erguido nos seus alicerces – como sendo uma
«grande empresa» e a tomada de consciência – despertada após isso – pelo
conhecimento do baixo valor matricial porque estavam registadas a quase
totalidade das terras a expropriar, foram as principais razões que
moveram muitos lavradores a recorrer a tribunal.
Porém, de toda aquela quantidade de terras
expropriadas, poucas foram aquelas que acabaram por vir a ser adquiridas
compulsivamente.
Em qualquer dos casos, essas acções foram
bastante trabalhosas de empreender.
E à medida que se obtinham as necessárias
certidões, se pagavam as sisas, a numerosa papelada foi sendo compilada
para a consecução do último acta da acção, que culminava com a
celebração das respectivas escrituras.
Foi assim que, enquanto se executava esse
insano trabalho, no decorrer do qual foi necessário redigir dezenas de
requerimentos; passar para centenas de folhas de papel selado as
memórias descritivas de cada uma das parcelas de terra; pagar os
milhares de escudos de custas e preparos; fazer inúmeros registos nas
Conservatórias, se desenrolou o extenso processo geral da compra dos
terrenos que, iniciado antes de 1949, há 25 anos ainda não estava
completamente concluído.
A primeira escritura – amigável – foi
celebrada em Aveiro a 20 de Janeiro daquele ano, e incluía a compra de
cinco parcelas diferentes de terreno. A última, deste tipo de escritura,
foi firmada a 10 de Março de 1952.
As restantes, pronunciadas por sentença,
foram sendo mais espaçadamente efectuadas, dada a morosidade da matéria
processual e, em 1953, ainda algumas estavam no notário por lavrar.
A complexidade destas acções, muitas das
quais foram accionadas por inventários orfanológicos, e até de maiores,
justificaram plenamente a demora prolongada na execução das
expropriações, cujo valor ultrapassou os 6 300 contos.
Uma parte da geografia desta zona do Baixo
Vouga, que abrange uma área de pouco mais de 40 hectares (405 708
m2), era disseminada por baixios e terras alagadiças, sujeitas a
inundações temporais; outra parte, porém, estava repartida por vários
lugarejos referenciados, entre outros, como Agra, Arinho, Gralheira,
Lagoas, Parrachas, Poças, Quebrada, Ribas, Vale Diogo, Vale Godinho,
Viela do Ribeiro e, mais predominantemente – à maior extensão de terras
–, por Marinha Baixa, denominação que perdurou por muito tempo para
precisar as instalações fabris da CELULOSE, antes de se lhe apegar, na
generalidade, a hoje mundialmente reconhecida como de CACIA.
Nesta área, essencialmente agrícola,
desenvolvia-se uma agricultura atrasada, de subsistência de
caracterização exemplarmente minifundiária, que o acendrado amor à terra
não deixou de entristecer muitas das gentes desalojadas.
Aqui, nestas terras de lavoura outrora
férteis, de tudo um pouco se produzia, inclusive gado. E, a esta
aparente abundância, não faltavam também o mato e o pinhal, as árvores
de fruto e as parreiras, o gramão e os pastos, as praias de arroz e de
estrume, que os aterros e as terraplanagens, iniciadas em Outubro de
1950, subverteram e afogaram ao peso do cascalho, donde emergiram as
construções e assentaram os fixes para apoio das máquinas sofisticadas
desta indústria.
Um outro aspecto que tinha bastante
interesse conhecer seria o de se saber quais os comportamentos humanos e
sócio-económicos dos rendeiros e proprietários do tempo se, através do
caderno geral dos registos das parcelas de terreno, que integraram o
processo das expropriações, alguém, com paciência, se predispusesse a
fazer a sua análise pormenorizada com os dados e elementos que o mesmo
inscreve.
É de salientar que alguns desses
proprietários nem sequer residentes eram em Cacia e outros, ainda, se
radicavam em África e nas Américas.
O certo é que, se agora se pode lamentar a
perda da riqueza desta área que uma crosta imposta impede de brotar, e
que hiberna, não se pode olvidar também a outra muito maior ainda que
flui do seu solo urbanizado e que, com muito mais forte incidência se
faz sentir na valorização da comunidade de toda a região, assume foros
de grande relevância na panorâmica da economia nacional.
E, para finalizar o descolorido deste já
longo e maçador apontamento das expropriações dos terrenos que a
Celulose executou sob a orientação atenta do Eng.º Eduardo Rodrigues
de Carvalho que, em vida, sempre ansiou instantemente por vê-los
congregados sob registo de um só número de artigo de matriz,
permita-se-nos revelar que, antes do número do artigo referido neste
título, os mesmos terrenos – parte deles, e por fases – estiveram
também, inicialmente, descritos na Conservatória de Aveiro sob o artigo
de matriz número 1270 que, por sua vez, foi substituído,
posteriormente, pelo número 1414.
Muitos anos após este arrumo de registos
naquela Conservatória, outras parcelas de terreno foram sendo adquiridas
pela Empresa, numa previsão de futura expansão que o artigo 1529 da
matriz predial, presentemente, não alberga.
EVANGELISTA DE MORAES SARMENTO
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* Chefe da Secretaria Geral do Centro – CACIA
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