evocação de cacia
(NAS COMEMORAÇÕES DAS BODAS DE PRATA DA SUA
FÁBRICA DE CELULOSE)
POR DR. FREDERICO DE MOURA *
Aqui a dois passos da cidade de Aveiro,
Cacia foi durante muitos anos – e, ainda o é, apesar da transmutação de
gostos e valores que hoje originou nova pauta – o passeio escolhido onde
o citadino ia regalar o sensório e amaciar as córneas arranhadas de
encontro à paisagem lírica onde o Vouga fazia recortes caprichosos e
insinuava canais entre verdura aprazível e calmante.
Quem estivesse precisado de um contacto
ambiencial sedante; quem desejasse um repouso almofadado de luz e de
cor, macio e sem gritos agressivos; quem não fosse obtuso para a beleza
que se patenteia prodigamente sem ser procurada, tomava um carro – um
carro tirado a cavalos no
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/ princípio do século, um
automóvel já próximo de nós – e rompia, sofregamente, a aproveitar os
momentos de ócio esquadrinhando um recesso fresco para escutar a ocarina
suave do marulho das águas, para fartar de verde as pupilas escoriadas e
para mastigar, regaladamente, o farnel que, ao lado, no cesto de vime,
rescendia perfumes estimulantes.
Sorte de refúgio para citadinos saturados do
ar confinado dos escritórios e das repartições a tresandar bafio, ou da
intoxicação dos dias em regime celular na clausura da oficina; tapete de
verdura fresca para pés de bem nascidos resvalarem da homogeneidade das
alcatifas para o chão arroteado pelo suor dos rústicos, Cacia, aqui ao
lado de Aveiro, serenamente e sem contar o tempo, lavrava os seus
campos, onde se atolava até às virilhas e apascentava as suas vacas,
nédias e mansas que, deliciadamente, tosavam a erva tenra que se
remirava no espelho dos canais e dos charcos que abriam lacunas no campo
cultivado.
Para além disso, Cacia tinha as suas cãs
prateadas de velhice e, como avó complacente, estendia o seu regaço
generoso a quem, procurando sossego, se abeirava dela.
Vinha de longe a sua anciania!
De longe porque metia as raízes, fundamente,
no oppidum que deixara os seus vestígios no cabeço em frente da
sua igreja de S. Julião, à beira do Vouga, local onde os arqueólogos e
os curiosos encontraram esperanças para contentar a sua gulodice sôfrega
de coca-bichinhos.
Afanosamente se catou no seu chão e dele
surgiram cerâmicas romanas e de quando em quando, o seu objecto de
bronze e a sua moeda cunhada.
Já o geógrafo quinhentista Gaspar Barreiros
pusera o dedo na ferida, referindo testemunhos variados que o levaram a
aventar, um pouco temerariamente, a hipótese de ali ser a sepultura da
velha Eminium Cale. Houve mesmo quem lhe pressentisse nas
entranhas as ruínas da celebrada Talábriga que, durante muito tempo, foi
tido como a tetravó da cidade de Aveiro, conjectura que não resistiu a
uns sujeitos miudinhos que, com base no Itinerário de Antonino e munida
de padrões de medida, vistos e aferidos, se deram a contar milhas, para
norte e para sul, até desfazer a legenda doirada que lhe enriquecia o
subsolo de uma prenhez preciosa.
Mas, mesmo assim, com todos os rigorismos
científicos e com todas as minúcias de rato de biblioteca, não
conseguiram borrar-lhe as barbas brancas de sua velhice honrada anulando
a progénie romana que a enobrece.
E, ainda que o tivessem conseguido, mesmo
assim, lhe ficavam no escrínio dos seus pergaminhos para mostrar com
ufania, a doação que o Conde D. Henrique e a sua mulher D. Tareja dela
fizeram ao Mosteiro de Lorvão, a servir-lhe de assento de baptismo e a
localizar-lhe a origem temporal, pelo menos, no Condado Portucalense.
Mas o tempo corre vertiginosamente e, com
essa corrida, sucedem-se as mutações.
Amar o passado não significa fechar os
ferrolhos ao futuro; amar a história não quer dizer trancar as portas da
renovação. Aliás a própria futurologia arranca de raízes enterradas no
húmus dessa história hoje tão postergada pelos superficiais.
E, assim, há vinte e cinco anos, o progresso
– esse deus omnipotente do nosso tempo – arroteou o chão dos seus passos
abrindo caminhos prospectivos não se compadecendo com reminiscências
evocativas. E, do chão raso e verdejante, à beira das margens líricas do
Vouga, o pragmatismo cinzento ergueu para o céu uma unidade industrial
com suas chaminés agressivas viradas para o azul. Ao oppidum
luso-romano de antanho sucedeu o cortiço de gente que, afanosamente,
ganha o pão de cada dia confinada na clausura da oficina a abastecer
caldeiras vorazes e insaciáveis; ao suor da fronte rorejante do rústico
que amanhava a terra sucedeu o espasmo muscular do operário que
transforma o lenho cheiroso das árvores em pasta de papel. E,
subitamente, operou-se uma transfiguração da paisagem natural e da
paisagem humana que, de cenário propício a uma écloga de líricos
pastores, se viu dominado por uma unidade industrial tentacular, que lhe
marcou a fisionomia de traços incisivos que avultam e se recortam num
fundo vegetal em que o verde domina e amacia.
Vagos, 12 de Junho de 1978.
FREDERICO DE MOURA
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* Médico, Escritor, Director do Museu de Ílhavo
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