«/.../ para a vida dos homens teremos de interrogar o passado no que dele dura ou se renova no presente. É quanto nos resta. Só pelo que do passado em nós persiste e revive, só por esse remanescente activo e visível poderemos conceber ou suspeitar as formas e os modos de ser daquilo que passou. /.../» (Jaime de Magalhães lima, in «Os Povos do Baixo Vouga»)

uma

CERTEZA ARQUEOLÓGICA

numa

INCÓGNITA HISTÓRICA

POR DAVID CRISTO *

ACHADOS REVELADORES

Pelo ano de 1561, o erudito Gaspar Barreiros, admitindo que a tão famosa e discutida Talábriga se situava nos chãos da actual Cacia, referiu a existência, ali, de vestígios de recuadas civilizações, designadamente restos de navios e âncoras.

 

Textualmente:

«Na qual villa & igreja de sanct. luliã nas ribeiras de Vouga situadas, se acham vestigios antigos . s . os fundamëtos de hüa torre que na memoria dos homes inda staua quasi inteira, onde em outro tepo segundo ficou fama de hüs em outros chegauam navios da foz do mar, porque inda ali se acharam pedaços d'elles & anchoras iuncto da dicta torre em hüa lagoa Afora muitos vestigios & ruinas d'argamassa que dentro em seu ambito cõprehende hua milha pouco mais ou menos».(1)

Alberto Souto, em 1930, dá-nos conta de que, numa das suas reiteradas visitas a Cacia – no que era impulsionado, além doutras motivações, pelas referências do corógrafo quinhentista Barreiros –, tendo subido a uma pequena elevação rasada, a poente da igreja de S. Julião, se lhe deparou um monte de pedras de granito «de velhas construções e absolutamente estranhas à geologia local, que só fornece quartzo, em calhaus rolados do cretácico, ou talvez do terciário, aparecendo o xisto do paleozóico e o grés vermelho do triássico na margem direita do rio ou a grande distância dali». E prossegue, referindo que, continuando a palmilhar a / 16 / pequena encosta, se lhe depararam «restos de tejolaria de vetusto aspecto e, logo após, as tegulae imbrices» mais finas, restos cerâmicos de fisionomia romana, com pedaços de mós manuarias». E, neste passo, o saudoso e notável aveirógrafo conclui:

«Se a antiguidade romana das ruínas do local da egreja de Cacia não ficava provada, ela era já muito verosimil, mas o que desta feita ficava demonstrada e por uma forma incontroversa, era a edade romana do cabeço fronteiro e proximo, que constituía uma estação arqueologica luso-romana até aí não identificada, embora indicada, nas margens do baixo Vouga. Os restos de olaria esparsos no terreno não admitiam duvidas. A civilisação romana passara por ali e por ali deixara vestigios indeleveis.»(2)

Alberto Souto diz, ainda, que, examinando o corte das pedreiras abertas, verificou «que uma camada de cacos e destroços de habitações se estendia por todo o terreno, a um metro, pouco menos, da superficie do solo aravel e cultivado, e que nessa camada abundavam os fragmentos de louça e as pedras, de granito e chisto, de construções demolidas.» /.../ «Surgiu-me – prossegue – ceramica domestica de qualidade e forma varia, mas alguns pedaços de colo de anfora, misturados com tegulae, imbrices e tejolo, restos de cozinha, ossos de caça, cascas de moluscos, e uma grande extensão de cinzas e carvão, mostraram-me que ali existira um povoado importante e não apenas uma vila». Diz ainda que – tendo procedido ao exame topográfico do local e após um inquérito – chegou a esta conclusão: «O sitio chamava-se a Torre e dali se teem desenterrado ha muitos anos louça, ancoras, ferragens, moedas de ouro, prata e cobre, mós, fornos, restos de esqueletos humanos, ossos, etc.»(3) E o ilustrado investigador e polígrafo aveirense assevera que, na Torre, estava o «ubi de um castrum ou de um oppidum dos tempos romanos, possivelmente vindo da epoca lusa, posteriormente romanisado e mais tarde destruido, cujos escassos restos o destino poupou e com que o acaso, esse grande protector dos investigadores», premiara a sua «perseverança».(4)


O ACASO

Ora, foi também o acaso a trazer ao conhecimento do modesto compilador destas notas que – quando, há cerca de um lustro, se procedia a dragagens, na Ria de Aveiro, junto às Pirâmides e ao Porto Comercial – começaram a surgir, denvolta com os Iodos, numerosas olarias. Recolhidas e examinadas e confrontadas, poder-se-ia chegar à convicção de que tais cerâmicas teriam sido ali deixadas por imposição selectiva de qualquer regimento de oleiros; mas, por outro lado, algumas peças, porque completas e relativamente perfeitas, não justificariam a drástica medida de expurgá-las compulsivamente dos mercados. O que, porém, mais impressiona é a flagrante semelhança – quer na forma, quer no específico e evidente fim utilitário, quer no teor das argilas, quer na aparente vetustez – de algumas das espécies, arrancadas aos fundos da laguna, com certas que Alberto Souto recolheu em Cacia e trouxe para o Museu de Aveiro, que tão proficientemente dirigiu: só as cerâmicas (e outros objectos, de diverso material, mas não menos significativos, foram recolhidos pelo inesquecível aveirense – tais como vidros e parte de uma âncora) constituem um acervo que compreende, além do mais, uma lucerna atribuída ao séc. III d. C., tegulae, ânforas, uma anforeta e pesos de tear. E registe-se que uma anforeta detectada nas dragagens parece de feitura mais antiga do que aquela, oriunda de Cacia, que hoje enriquece o património arqueológico-histórico do Museu de Aveiro. Dir-se-á, em suma, ser lícito aventar que, à chamada Estação Arqueológica de Cacia (a qual revela ter existido ali, em recuados séculos, um povoado com relevante e civilizada vivência) podem não ser de todo estranhas (ou, pelo menos, seriam úteis em prospectivas comparações) as cerâmicas há pouco provindas das funduras líquidas; e quem sabe se, aceitando estas premissas, as diligências arqueológicas / 17 / já encetadas (e que, obviamente, devem prosseguir) derrogariam muitas incertezas (ou, pelo menos, as atenuariam) sobre as civilizações de antanho que frequentaram as zonas mais chegadas ao Baixo Vouga e à Ria ou nelas se fixaram. E nem se diga – para objectar a qualquer liame entre Cacia e as ribas (aliás próximas dali) da área hoje adjacente à cidade-capital do distrito – que, enquanto as espécies arqueológicas da margem sul do Vouga foram achadas sobre chão firme, ou dele desentranhadas, as cerâmicas há pouco recolhidas em Aveiro, estas provieram de fundos subaquáticos. Então, e quanto a este último acervo, teríamos de admitir: ou que, pela motivação já aqui precedentemente referida, ou por necessidades de alívio de carga, deliberadamente se sepultaram nas águas artefactos utilizáveis, ou que tais objectos iam no bojo de qualquer embarcação que no local se afundou.

É certo que, em muitos pontos do actual half aveirense, foi, antes, terreiro firme – e que, em certos outros, que hoje são água, foi chão(5); é certo, ainda, que se ignoram as primícias temporais, tanto como a rigorosa evolução morfológica, da Ria, não passando de conjecturas o que, a propósito, se tem escrito.(6) Mas há bons fundamentos para aceitar que, na zona (a que precedentemente aludimos) onde se efectuaram as recentes dragagens, antes fosse mar e não solo firme. E, então, – dada a averiguada importância da foz do Vouga (embora ainda não se tenha detectado a sua exacta localização, admitindo-se, porém, que não fosse longe da actual Cacia), não repugna aceitar que as cerâmicas há poucos anos exumadas fossem procedentes do velho povoado caciense. Mas importa não esquecer que as oscilações orográficas e hidrográficas explicam, tanto a fixação, como a deserção, de importantes aglomerados populacionais de zonas ribeirinhas. Assim – e a título meramente exemplificativo: Rocha Madahil(7) refere ter existido, na Malhada de Ílhavo, uma povoação quase lacustre; em Esgueira, e até tempos recentes, desenvolveu-se, desde recuadas eras, grande actividade marítima, sendo que, nos entulhos da sua Ribeira, foi descoberto cavername de navios (e o mesmo se teria verificado sob a ponte de Vagos); também a matriz de Esgueira (como a de Aradas) se situava junto do esteiro – e anote-se, a propósito, que até nas armas da antiga vila figurava um navio envergado sobre ondas azuis.

Gravura acima: ANFORETA – Um dos mais significativos restos cerâmicos recolhidos em Cacia]

Sem embargo de quanto antecedentemente referimos deixamos de remissa a eventualidade de determinantes ocasionais, até agora ignoradas, justificarem a existência subaquática das olarias em causa – e, assim, estas, eventualmente sem qualquer correlação com os artefactos recolhidos em Cacia. / 18 /


E... ONDE TALABRIGA?

Cacia, para muitos e autorizados autores, soterrou Talábriga (ou Talábrica, se preferirmos); outros, não menos autorizados, situam o tão controverso povoado pré-romano, ou luso-romano, mesmo em Aveiro, que não naquela próxima freguesia, hoje integrada no âmbito administrativo do concelho.

Sabe-se que a estrada romana passava por Talábriga; mas parece incontestável que os estrategas da época evitariam construir os seus oppida ou castra em baixios – casos de Cacia e de Aveiro; teriam, sim, procurado, para o efeito, alturas dotadas duma orografia que lhes servisse de natural escudo defensivo.

Não obstante, a localização da(s) Talábriga(s) na Península Ibérica (e posta de parte a conjectura de que em Estorões – a duas léguas de Ponte de Lima – se situasse uma qualquer delas, ou a única em solos da Lusitânia), Cacia e Aveiro foram apontadas como velhos chãos talabrigences (talabricences, noutra aceitável grafia). Assim, além do já referido quinhentista Gaspar Barreiros, Duarte Nunes do Leão escreveu que «Talabrica foi junto com Aveiro na ribeira do Vouga onde agora ha um lugarinho que se chama Cacia na parte onde 'stá a igreja de sam lulião de que não ha mais que esta memoria» (8); e outros, precisando ou não Cacia (ou admitindo esta hipótese, como o fez o prolígero historiógrafo Marques Gomes, que afirmou que «Talabrica /.../ foi fundada pelos celtas» (9), localizam-na em Aveiro ou no aro circunjacente, que também engloba Cacia(10) – o que foi opinião dominante até quase ao termo da primeira década da decorrente centúria.

Félix Alves Pereira, em bem fundamentado e exaustivo estudo, dado à estampa em 1907(11), afastou, com boas razões, a hipótese de que Talábriga (pré-romana ou proto-histórica, romana ou histórica, a de Appiano e Décio Juno Bruto, ou a da época imperial
e do Itinerário) tivesse poiso por Aveiro ou Cacia; e, na cola de Alves Pereira, outros têm trazido a lume o intrigante problema, mas de todo afastando o velho preconceito de que a velha Talábriga se situou em zonas litorâneas planas e paludosas; duma maneira geral, porém, aceitam que Talábriga se houvesse implantado no que é hoje o rectângulo distrital aveirense, mais presumivelmente para as bandas de Albergaria (12).


DÚVIDAS QUE EXALTAM

A exclusão de Cacia (como a de Aveiro) de ancestrais solos talabrigenses não minimiza os méritos históricos, étnicos, económicos, culturais, populacionais – ou outros – destas paragens. Pelo contrário: releva-lhes os merecimentos – já que, chamadas elas à colação num tão controvertido problema, é porque se lhes reconhece a valia de sólidos supostos para remotas, mas importantes, civilizações.

Mas será que Cacia e Aveiro não ultrapassam mesmo (ou na Pré-História, ou na Proto-História, ou na História) as honras com que se tem exornado, e o interesse que tem suscitado, uma qualquer Talábriga?... – Cremos que sim!
 

O QUE IMPORTA...

...é persistir nas tentativas de iluminar a alma ancestral de civilizações ainda ocultas nas trevas dum passado remoto – prospectando luzes esclarecedoras nos subsolos, nos solos e nos leitos hoje (ou ainda) cobertos pela linfa; interrogando específicas etnias; aclarando o significado rigoroso de velhos étimos e topónimos (v. g. «Alavario» e, quanto a Cacia, «Campo da Matança» e «Torre»); escorgitando as determinantes na eleição de oragos; procurando o fundamento de lendas; estudando e comparando fósseis, valvas de defuntos moluscos, barros cozidos, ferros trabalhados, pedras afeiçoadas ou meramente utilizadas em edificações, ainda que hoje só ruínas, – em suma, procurando nos restos o que foi o todo.

E convém não esquecer que os mais seguros rumos, para as hipóteses de ontem, devem sempre partir das realidades de hoje – até porque, hoje, o acaso nos pode favorecer com elementos que esclareçam as hipóteses de ontem.

DAVID CRISTO

____________________________

* Advogado, jornalista, investigador.

NOTAS


1. «Chorographia de alguns logares /.../», p. 48 e segs.
2. Cf. in «A Estação Arqueologica de Cacia», p. 8.
3. Cf. ibidem, p. 9.
4. Cf. lbldem, p 10.
5. «Em muitas partes agora he mar onde ja foi terra. E o que agora he terra foi ja mar.» (Duarte Nunes do Leão, in «Descrição do Reino de Portugal», 1.ª Ed., – 1610 –, f. 12 e v.).
6. Consultar sobre este tema: «Geografia Física de Portugal» e «A Bacia do Vouga», de Aristides de Amorim Girão; «A Bacia Hidrográfica do Vouga», de António do Nascimento Leitão; «A Ria de Aveiro», de Luiz Shwalbach Lucci; «Resumen fisiografico de Ia Peninsula», de J. Dantin Cereceda – e demais pertinente bibliografia registada por Alberto Souto, a p. 5 e 6 do seu trabalho «Origens da Ria de Aveiro», necessariamente tomando este como base de um genérico esclarecimento sobre a matéria.
7. ln «llliabum /.../».
8. Ob. cit., f. 13.
9. Cf. em «O Districto de Aveiro», 1897, p. 162 e 163.
10. Ler «Os portos marítimos de Portugal», de Adolfo Loureiro; «Oppida restituta», de Borges de Figueiredo; «Mapa breve da Lusitania antiga», de Francisco do Nascimento Silveira.
11.  In «O Archeologo Português», vol. XII, n.ºs 5 a 8, p. 130 e segs.
12. Além do já tão citado Alberto Souto, convém ler, para genérica e específica elucidação sobre o apaixonante assunto, trabalhos de sua filha, Dulce Emília Alves Souto «Subsídios para uma carta arqueológica do distrito de Aveiro», 1958; e, no «Arquivo do Distrito de Aveiro», estudos de A. de Amorim Girão (vol. I, P. 9 e segs.), do P.e Miguel A. de Oliveira (vol. IV, p. 117 e segs., e vol. IX, p. 45 e segs.), de Augusto Soares de Sousa Baptista (vol. XIV, P. 214 e segs e vol. XVI, P. 81 e segs. e de Francisco Ferreira Neves (vol. XV, P. 39 e segs.).

 

 

Página anterior

Índice Página seguinte