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Boletim n.º 20-21 - Ano XI - 1993

O Gabão de Aveiro

DA FOZ DO VOUGA À FOZ DO MONDEGO

Dr. Manuel dos Santos Oliveiros

 

«... é uma peça de grande carácter, que sabemos ter irradiado da região da Ria para todo o país...»
A. G. da Rocha Madahil
 

NOTA PRELIMINAR

O que adiante se escreve é o resultado de uma exploração e pesquisa feita no terreno, em contacto com as gentes e muito especialmente junto dos velhos pescadores de Buarcos, essa vila piscatória medieval, junta à Foz do Mondego.

Serviram de apoio a este pequeno estudo, que mais não é do que um passatempo dos dias de praia, as publicações do Dr. A. G. Rocha Madahil "Alguns Aspectos do Traje Popular da Beira Litoral", ed. de 1941, e do Dr. Amadeu Eurípedes Cachim, Os ílhavos, o Mar e a Ria, reedição da Câmara Municipal de Ílhavo, 1988.

O tema, como não podia deixar de ser, é "o típico Gabão de Aveiro".

Alertado, desde há vários anos, pelo Ti Luís Lila, velho pescador da Praia de Mira, e também pelo meu velho amigo dos tempos do Liceu de Aveiro, um "Ílhavo", que tem no corpo a voz do mar e na alma a luz da Ria, "O Cachim", de seu nome completo Amadeu Eurípedes Cachim, filho, neto e pai de destemidos "Capitães do Mar", vim até Buarcos, velha vila medieval, tornada vila piscatória a partir da data em que lá arribaram nas suas "enviadas" os "ílhavos", e depois também os murtoseiros e os vareiros.

E, pelas suas estreitas ruas, de casario térreo, onde habitam os velhos e os novos pescadores de agora, deambulei de dia e também de noite, percorrendo tascas e tasquinhas, onde me parecia fácil encontrar aqueles homens, que fazem da luta com o mar a sua vida e labuta quotidiana, em busca do peixe, cuja venda há-de contribuir para a sobrevivência da família.

Assim aconteceu durante duas semanas – já nos finais da época estival em que por lá vagueei, à procura de quem me contasse histórias, que me dissessem alguma coisa da vestimenta que foi tradicional em Buarcos, desde os tempos em que os ílhavos ali se fixaram na enseada, estendendo-se, mais para o sul, até à Costa de Lavos e tendo já passado pelos Palheiros de Quiaios.

Para ali levaram o uso do seu costumado agasalho de burel, o qual, desde os tempos primordiais da fundação da Vila Maruja, nasceu nos povoados, à volta da Laguna da Foz do Vouga e que foi adoptado como protecção contra o frio e a humidade do ar marítimo.

Estou a referir-me a essa vestimenta de "grande carácter", como a classifica J. S. Franco, citado por A. G. Rocha Madahil em "Alguns Aspectos do Trajo Popular da Beira Litoral" que foi conhecido, em todo o país, pelo nome de "Gabão de Aveiro". / 54 /
 

Usado por pobres; remediados e ricos, pescadores, camponeses e burgueses, ainda antes da fundação da nossa nacionalidade, acabou por ser destronado com a chegada da moda francesa do sobretudo, cerca dos anos vinte, e também pelo uso mais cómodo da "samarra".

Estamos na Beira-Litoral, região que se estende desde Ovar até Porto de Mós e desde o litoral até Aguiar da Beira, considerando o máximo das suas extensões norte-sul e este-oeste. Pois bem, o "Gabão de Aveiro" é a réplica da Beira-Litoral ao Nordeste Transmontano, com a sua "Honricas" – a Capa de Honras – de Miranda do Douro, e sempre foi usado, como protecção, fim moral e estético, de grande significado social.

Muitos anos se passaram, a partir da época em que o gabão de Aveiro entrou em desuso, e, se em páginas dos nossos melhores escritores, encontramos referências ao uso do gabão, (como em Viagens na Minha Terra de Almeida Garrett, em Os Maias de Eça de Queirós, em Lisboa Galante de Fialho de Almeida, em Olho de Vidro de Camilo Castelo Branco, em Os Pescadores de Raul Brandão e em de António Nobre), para além de muitos outros, em publicações, revistas e jornais, também tem sido relativamente fácil saber notícias do seu uso, através de histórias transmitidas de geração em geração.

Antes de escrever as histórias, que os pescadores me contaram, deverei descrever o que foi e o que ainda é essa peça de vestuário, usada como traje de gala da Confraria dos Enófilos da Bairrada, como traje de cerimónia da Associação Cultural Confraria Gastronómica de S. Gonçalo (de Aveiro) e como traje académico dos estudantes da Universidade de Aveiro.

Facilitará a sua compreensão ter presente a imagem de "O Homem do Gabão" desse mago da aguarela, que se chama Zé Penicheiro, um Figueirense, por adopção, e um enamorado da Ria de Aveiro e dos seus moliceiros.


"O GABÃO DE AVEIRO" é uma mistura feliz de veste monástica – reparai no hábito de estamenha dos frades franciscanos – e do traje civil medieval, a capa com mangas e capuz que se usou durante a Idade Média, em toda a Europa.

É uma "peça de grande carácter", como já referi, que durante muitos e longos anos foi usada por todos os povos que vivem e labutam em redor da Laguna que originou a Ria de Aveiro, especialmente pelos povos varinos", isto é, pelas gentes da beira-mar.
É uma capa bastante ampla e rodada, descendo quase até aos tornozelos, com farta romeira ou cabeção recortado, mangas muito largas e capuz em bico.

Aberto à frente, de alto a baixo, o gabão é aconchegado ao pescoço por um colchete de metal ou por um alamar, qualquer deles terminado por uma cadeia. Os ricos usavam este fecho de prata.

De cor castanha, feito de burel ou surrobeco, o gabão de trabalho, foi a veste mais característica das gentes dos povoados piscatórios da beira-mar e também dos camponeses, não só de toda a Bairrada, como de algumas terras da Região da Gândara, como já tive ocasião de verificar, nas minhas andanças em busca do seu passado, não muito distante.

Há também o gabão preto, feito de boa fazenda de lã acetinada, de "moscou" ou de merino, estes os gabões dos ricos e dos janotas de todas estas regiões e até de Lisboa, onde constituíram um elegante agasalho.

Foi traje domingueiro, traje de festas e romarias, traje de ir à Missa e traje de casamento, obrigatório, em algumas freguesias.

O GABÃO E OS PESCADORES

Chegou o momento de ouvir as histórias dos pescadores de Buarcos.

Estamos na praça principal de Buarcos, dominada pela presença da estátua de uma figura típica: – A Peixeira.

Ouço o Ti-Cação, velho pescador de 76 anos, que, já há algum tempo, deixou as lides do mar.

"É verdade que o gabão foi aqui muito usado em tempos idos e creio que ainda haverá pescadores que os têm guardados, já velhinhos e rotos, atrás das portas.

Foi muito vulgar o gabão castanho, de burel, que levávamos para as fainas do mar, cintado com uma corda, para nos deixar livres, os movimentos.

Assim o usei quando era rapazito.

Depois, apareceu a "samarra", que, por curta e mais cómoda nos trabalhos de pesca, foi substituindo o gabão, até este deixar de ser usado.

Agora, apenas está na nossa lembrança.

Aqui, nunca foi conhecido pelo nome de "varino" ou por "gabão de Aveiro", apenas por "gabão".

Posso dizer que os pescadores de Quiaios e da Costa de Lavos também usaram muito o gabão como agasalho."

Assim falou o velho Ti-Cação.

E, chegou a vez de ouvir o Ti-João.

Junto ao paredão de Buarcos, dois velhos pescadores, facilmente reconhecíveis como tais, enfeitiçados, olham o mar, neste fim de tarde, e afirmam ser ele diferente em cada momento que passa.

Ti-João, 65 anos, tisnado pelo ar do mar, quando perguntado, conta-me:

"O gabão foi aqui muito usado, no tempo / 55 / do meu pai. Eu já não usei gabão, mas sei que, quando ainda era menino, meu pai levava-me para o mar, dentro de um cesto (a que nós chamamos canastra) tapado com o seu velho gabão, para permitir que a "velhinha" – a minha mãe – ficasse sossegada a tratar da vida da casa.

Mas, não foi só em Buarcos. Se for à Costa de Lavos, verá que também lá foi muito usado em tempos antigos. Dizem que foram os pescadores de Ílhavo que para lá os levaram.

Se lá for, ainda hoje lá ouvirá o "falar dos ílhavos".

Bem o afirma no seu livro, Os ílhavos, o Mar e a Ria o Amadeu Cachim: «... os homens de Ílhavo (...) tendo aí fundado colónias, que mantiveram, e ainda mantêm, os nomes, os costumes, e o sotaque da gente de Ílhavo.»

E agora, só mais outro velho pescador de Buarcos, entretido a consertar redes de pesca, junto à muralha do antigo forte, em frente da capela de N.ª Sr.ª da Conceição.

Chama-se Lúcio, o Ti-Lúcio!...

«Sabe, meu senhor, já há muito que não vou para o mar, mas tenho grandes saudades desse tempo.

São os meus oitenta anos de vida dura: – comecei aos 12 anos, quando ainda não tinha idade para tirar a cédula, e lá ia com essa idade para o mar, embrulhado no gabão do meu pai, pois nem roupas tinha e por vezes fazia muito frio.»

Estava a ouvi-lo e a pensar em Raúl Brandão, que no seu livro Os Pescadores nos relata:

– Olhão. Agosto de 1922. «Nesta arte (a da pesca) ia ao mar quem queria – os pequenos, os humildes e os fracos – TODOS DE VARINO E POR BAIXO, NUS.»

E o Ti-Lúcio a terminar:

«Meu pai sim, sempre o conheci de gabão, que para nós era, além de um agasalho, o nosso luxo.»

COSTA DE LAVOS E QUIAIOS;

TERRAS DA FIGUEIRA DA FOZ

Corri à Costa de Lavos e aos Palheiros de Quiaios.

Na Costa de Lavos, não encontrei ninguém com quem falar. A época do ano não era propícia a encontros. Estava parada a faina do mar.

Na praia, varado no areal, parecendo esquecido, só, um "meia-lua" por apetrechar" ouvia o mar a murmurar e a chamá-lo docemente.

Foi tudo.

Na praia de Quiaios, ninguém!

Mas, eu vou contar a história que sei e que há muito me foi contada pelo Ti-Luís, quando, numa tarde de sol, sentados na areia, à beira-mar da Praia de Mira, me disse, depois de ter afirmado que tinha usado o gabão no dia do seu casamento:

– O uso do gabão foi muito vulgar entre os pescadores de Quiaios, que a todos conheci, e que habitualmente vinham em romaria à festa da Senhora da Saúde, à Costa Nova do Prado, trazendo, cada um dos pescadores da Companha do Belmiro, o seu gabão de luxo, cintado com faixa negra ou encarnada.

Regressei a Buarcos. Aqui, aconteceu ouvir a última e a mais comovente história do uso do gabão.


QUINTA-FEIRA DE ENDOENÇAS

Vou tentar dar expressão verdadeira uma história, que me foi contada por uma senhora de Buarcos, oriunda de uma família antiga de pescadores, mestres e arrais, nascida logo no princípio deste século e cujo nome é menos conhecido do que o apelido que usa e foi herdado de seu avô.

Se bem ouvi e se bem fixei, a história reza assim, entre o real e o imaginário:

"Aqui, há cerca de setenta anos, quando eu era ainda menina, nas noites de Quinta-Feira Santa ou Quinta-Feira de Endoenças, em que desde há séculos se comemoram as Dores da Paixão de Cristo, um grande número de mulheres de Buarcos, "as penitentes", procedia a uma solene, aparatosa e impressionante "via-sacra" pedindo ao Senhor a protecção e as indulgências para os "seus homens": pais, filhos, avós, irmãos, maridos e namorados, que a cada hora vão labutar p'ró mar, pelo pão nosso de cada dia.

Pela calada da noite, mas a horas apropriadas, ao chamamento do som de um búzio do mar, abriam as portas das suas casas térreas e deslizavam como sombras, silenciosas, à luz das candeias, pelas ruas estreitas e desertas da vila, rumo ao Largo do Pelourinho, local escolhido para o ajuntamento.

ENGABOADAS E ENCAPUZADAS nos gabões dos seus familiares, percorriam, agora, em conjunto, e de novo em silêncio, os caminhos das igrejas e capelas da povoação, para, no adro ou à porta dos templos, cantarem, em gregoriano, num clamor:

"– Subiu Cristo à Cidade com grande peso da Cruz..." a que o coro de penitentes respondia, modelando a voz:

"– Oh!... Oh!... Oh!... Ô... ôôôôu Jesus..."

No final deste cântico, erguiam os braços para os céus e exclamavam:

"– Senhor!... somos as mulheres dos pescadores!..."

Esta cerimónia, que foi trazida para Buarcos / 56 / pelos ílhavos que para ali foram fundar uma colónia de pescadores, era já hábito muito antigo das mulheres do bairro piscatório de Aveiro.

Recolhidas todas estas anotações no fim do Verão de 1991, fui convidado para ir a Aveiro, à Universidade, praticar uma "Acção" visando a história do Gabão de Aveiro e alegar as razões que justifiquem o seu uso como traje académico dos universitários.

Assim aconteceu no mês de Dezembro, em que falei ao Curso de Gestão e Planeamento Turístico, ministrado na Universidade.

Ao fazer uma ligeira referência ao facto de alguns velhos pescadores de Buarcos ainda terem o seu gabão guardado atrás da porta de suas casas, um dos estudantes presentes (1), pediu para falar e disse:

– Sou de Buarcos e vivo na povoação de Vais.

– Sou neto de um pescador.

– O meu avô ainda tem guardado atrás da porta, como relíquia, o seu velho gabão de burel castanho.

Resta dizer que o Gabão de Aveiro foi levado para Buarcos, em tempos idos, não só pelos ílhavos, como também pelos Mutoseiros e Vareiros.

Santos Oliveiros

(1) – Rafael Alexandre Lé Catulo

 

 

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