O Gabão de Aveiro
DA FOZ DO VOUGA À FOZ DO
MONDEGO
Dr. Manuel dos Santos
Oliveiros
«... é uma peça de grande
carácter, que sabemos ter irradiado da região da Ria para todo o
país...»
A. G. da Rocha Madahil
NOTA PRELIMINAR
O que adiante se escreve é o resultado de uma exploração e pesquisa
feita no terreno, em contacto com as gentes e muito especialmente junto
dos velhos pescadores de Buarcos, essa vila piscatória medieval, junta à
Foz do Mondego.
Serviram de apoio a este
pequeno estudo, que mais não é do que um passatempo dos dias de praia,
as publicações do Dr. A. G. Rocha Madahil "Alguns Aspectos do Traje
Popular da Beira Litoral", ed. de 1941, e do Dr. Amadeu Eurípedes Cachim,
Os ílhavos, o Mar e a Ria, reedição da Câmara Municipal de
Ílhavo, 1988.
O tema, como não podia
deixar de ser, é "o típico Gabão de Aveiro".
Alertado, desde há vários
anos, pelo Ti Luís Lila, velho pescador da Praia de Mira, e também pelo
meu velho amigo dos tempos do Liceu de Aveiro, um "Ílhavo", que tem no
corpo a voz do mar e na alma a luz da Ria, "O Cachim", de seu nome
completo Amadeu Eurípedes Cachim, filho, neto e pai de destemidos
"Capitães do Mar", vim até Buarcos, velha vila medieval, tornada vila
piscatória a partir da data em que lá arribaram nas suas "enviadas" os "ílhavos",
e depois também os murtoseiros e os vareiros.
E, pelas suas estreitas
ruas, de casario térreo, onde habitam os velhos e os novos pescadores de
agora, deambulei de dia e também de noite, percorrendo tascas e
tasquinhas, onde me parecia fácil encontrar aqueles homens, que fazem da
luta com o mar a sua vida e labuta quotidiana, em busca do peixe, cuja
venda há-de contribuir para a sobrevivência da família.
Assim
aconteceu durante duas semanas – já nos finais da época estival em que
por lá vagueei, à procura de quem me contasse histórias, que me
dissessem alguma coisa da vestimenta que foi tradicional em Buarcos,
desde os tempos em que os ílhavos ali se fixaram na enseada,
estendendo-se, mais para o sul, até à Costa de Lavos e tendo já passado
pelos Palheiros de Quiaios.
Para ali levaram o uso do
seu costumado agasalho de burel, o qual, desde os tempos primordiais da
fundação da Vila Maruja, nasceu nos povoados, à volta da Laguna da Foz
do Vouga e que foi adoptado como protecção contra o frio e a humidade do
ar marítimo.
Estou a referir-me a essa
vestimenta de "grande carácter", como a classifica J. S. Franco, citado
por A. G. Rocha Madahil em "Alguns Aspectos do Trajo Popular da Beira
Litoral" que foi conhecido, em todo o país, pelo nome de "Gabão de
Aveiro".
/ 54 /
Usado por pobres; remediados
e ricos, pescadores, camponeses e burgueses, ainda antes da fundação da
nossa nacionalidade, acabou por ser destronado com a chegada da moda
francesa do sobretudo, cerca dos anos vinte, e também pelo uso mais
cómodo da "samarra".
Estamos na Beira-Litoral,
região que se estende desde Ovar até Porto de Mós e desde o litoral até
Aguiar da Beira, considerando o máximo das suas extensões norte-sul e
este-oeste. Pois bem, o "Gabão de Aveiro" é a réplica da Beira-Litoral
ao Nordeste Transmontano, com a sua "Honricas" – a Capa de Honras – de
Miranda do Douro, e sempre foi usado, como protecção, fim moral e
estético, de grande significado social.
Muitos anos se passaram, a
partir da época em que o gabão de Aveiro entrou em desuso, e, se em
páginas dos nossos melhores escritores, encontramos referências ao uso
do gabão, (como em Viagens na Minha Terra de Almeida Garrett, em
Os Maias de Eça de Queirós, em Lisboa Galante de Fialho de
Almeida, em Olho de Vidro de Camilo Castelo Branco, em Os
Pescadores de Raul Brandão e em Só de António Nobre), para
além de muitos outros, em publicações, revistas e jornais, também tem
sido relativamente fácil saber notícias do seu uso, através de histórias
transmitidas de geração em geração.
Antes de escrever as
histórias, que os pescadores me contaram, deverei descrever o que foi e
o que ainda é essa peça de vestuário, usada como traje de gala da
Confraria dos Enófilos da Bairrada, como traje de cerimónia da
Associação Cultural Confraria Gastronómica de S. Gonçalo (de Aveiro) e
como traje académico dos estudantes da Universidade de Aveiro.
Facilitará a sua compreensão
ter presente a imagem de "O Homem do Gabão" desse mago da aguarela, que
se chama Zé Penicheiro, um Figueirense, por adopção, e um enamorado da
Ria de Aveiro e dos seus moliceiros.
"O GABÃO DE AVEIRO" é uma mistura feliz de veste monástica –
reparai no hábito de estamenha dos frades franciscanos – e do traje
civil medieval, a capa com mangas e capuz que se usou durante a Idade
Média, em toda a Europa.
É uma "peça de grande
carácter", como já referi, que durante muitos e longos anos foi usada
por todos os povos que vivem e labutam em redor da Laguna que originou a
Ria de Aveiro, especialmente pelos povos varinos", isto é, pelas gentes
da beira-mar.
É uma capa bastante ampla e rodada, descendo quase até aos tornozelos,
com farta romeira ou cabeção recortado, mangas muito largas e capuz em
bico.
Aberto à frente, de alto a
baixo, o gabão é aconchegado ao pescoço por um colchete de metal ou por
um alamar, qualquer deles terminado por uma cadeia. Os ricos usavam este
fecho de prata.
De cor castanha, feito de
burel ou surrobeco, o gabão de trabalho, foi a veste mais característica
das gentes dos povoados piscatórios da beira-mar e também dos
camponeses, não só de toda a Bairrada, como de algumas terras da Região
da Gândara, como já tive ocasião de verificar, nas minhas andanças em
busca do seu passado, não muito distante.
Há também o gabão preto,
feito de boa fazenda de lã acetinada, de "moscou" ou de merino, estes os
gabões dos ricos e dos janotas de todas estas regiões e até de Lisboa,
onde constituíram um elegante agasalho.
Foi traje domingueiro, traje
de festas e romarias, traje de ir à Missa e traje de casamento,
obrigatório, em algumas freguesias.
O GABÃO E OS PESCADORES
Chegou o momento de ouvir as histórias dos pescadores de Buarcos.
Estamos na praça principal
de Buarcos, dominada pela presença da estátua de uma figura típica: – A
Peixeira.
Ouço o Ti-Cação, velho
pescador de 76 anos, que, já há algum tempo, deixou as lides do mar.
"É verdade que o gabão foi
aqui muito usado em tempos idos e creio que ainda haverá pescadores que
os têm guardados, já velhinhos e rotos, atrás das portas.
Foi muito vulgar o gabão
castanho, de burel, que levávamos para as fainas do mar, cintado com uma
corda, para nos deixar livres, os movimentos.
Assim o usei quando era
rapazito.
Depois, apareceu a
"samarra", que, por curta e mais cómoda nos trabalhos de pesca, foi
substituindo o gabão, até este deixar de ser usado.
Agora, apenas está na nossa
lembrança.
Aqui, nunca foi conhecido
pelo nome de "varino" ou por "gabão de Aveiro", apenas por "gabão".
Posso dizer que os
pescadores de Quiaios e da Costa de Lavos também usaram muito o gabão
como agasalho."
Assim falou o velho Ti-Cação.
E, chegou a vez de ouvir o
Ti-João.
Junto ao paredão de Buarcos,
dois velhos pescadores, facilmente reconhecíveis como tais,
enfeitiçados, olham o mar, neste fim de tarde, e afirmam ser ele
diferente em cada momento que passa.
Ti-João, 65 anos, tisnado
pelo ar do mar, quando perguntado, conta-me:
"O gabão foi aqui muito
usado, no tempo
/ 55 /
do meu pai. Eu já não usei gabão, mas sei que, quando ainda era menino,
meu pai levava-me para o mar, dentro de um cesto (a que nós chamamos
canastra) tapado com o seu velho gabão, para permitir que a "velhinha" –
a minha mãe – ficasse sossegada a tratar da vida da casa.
Mas, não foi só em Buarcos.
Se for à Costa de Lavos, verá que também lá foi muito usado em tempos
antigos. Dizem que foram os pescadores de Ílhavo que para lá os levaram.
Se lá for, ainda hoje lá
ouvirá o "falar dos ílhavos".
Bem o afirma no seu livro,
Os ílhavos, o Mar e a Ria o Amadeu Cachim: «... os homens de
Ílhavo (...) tendo aí fundado colónias, que mantiveram, e ainda mantêm,
os nomes, os costumes, e o sotaque da gente de Ílhavo.»
E agora, só mais outro velho
pescador de Buarcos, entretido a consertar redes de pesca, junto à
muralha do antigo forte, em frente da capela de N.ª Sr.ª da Conceição.
Chama-se Lúcio, o Ti-Lúcio!...
«Sabe, meu senhor, já há
muito que não vou para o mar, mas tenho grandes saudades desse tempo.
São os meus oitenta anos de
vida dura: – comecei aos 12 anos, quando ainda não tinha idade para
tirar a cédula, e lá ia com essa idade para o mar, embrulhado no gabão
do meu pai, pois nem roupas tinha e por vezes fazia muito frio.»
Estava a ouvi-lo e a pensar
em Raúl Brandão, que no seu livro Os Pescadores nos relata:
– Olhão. Agosto de 1922.
«Nesta arte (a da pesca) ia ao mar quem queria – os pequenos, os
humildes e os fracos – TODOS DE VARINO E POR BAIXO, NUS.»
E o Ti-Lúcio a terminar:
«Meu pai sim, sempre o
conheci de gabão, que para nós era, além de um agasalho, o nosso luxo.»
COSTA DE LAVOS E QUIAIOS;
TERRAS DA FIGUEIRA DA FOZ
Corri à Costa de Lavos e aos Palheiros de Quiaios.
Na Costa de Lavos, não
encontrei ninguém com quem falar. A época do ano não era propícia a
encontros. Estava parada a faina do mar.
Na praia, varado no areal,
parecendo esquecido, só, um "meia-lua" por apetrechar" ouvia o mar a
murmurar e a chamá-lo docemente.
Foi tudo.
Na praia de Quiaios,
ninguém!
Mas, eu vou contar a
história que sei e que há muito me foi contada pelo Ti-Luís, quando,
numa tarde de sol, sentados na areia, à beira-mar da Praia de Mira, me
disse, depois de ter afirmado que tinha usado o gabão no dia do seu
casamento:
– O uso do gabão foi muito
vulgar entre os pescadores de Quiaios, que a todos conheci, e que
habitualmente vinham em romaria à festa da Senhora da Saúde, à Costa
Nova do Prado, trazendo, cada um dos pescadores da Companha do Belmiro,
o seu gabão de luxo, cintado com faixa negra ou encarnada.
Regressei a Buarcos. Aqui,
aconteceu ouvir a última e a mais comovente história do uso do gabão.
QUINTA-FEIRA DE ENDOENÇAS
Vou tentar dar expressão verdadeira uma história, que me foi contada por
uma senhora de Buarcos, oriunda de uma família antiga de pescadores,
mestres e arrais, nascida logo no princípio deste século e cujo nome é
menos conhecido do que o apelido que usa e foi herdado de seu avô.
Se bem ouvi e se bem fixei,
a história reza assim, entre o real e o imaginário:
"Aqui, há cerca de setenta
anos, quando eu era ainda menina, nas noites de Quinta-Feira Santa ou
Quinta-Feira de Endoenças, em que desde há séculos se comemoram as Dores
da Paixão de Cristo, um grande número de mulheres de Buarcos, "as
penitentes", procedia a uma solene, aparatosa e impressionante
"via-sacra" pedindo ao Senhor a protecção e as indulgências para os
"seus homens": pais, filhos, avós, irmãos, maridos e namorados, que a
cada hora vão labutar p'ró mar, pelo pão nosso de cada dia.
Pela calada da noite, mas a
horas apropriadas, ao chamamento do som de um búzio do mar, abriam as
portas das suas casas térreas e deslizavam como sombras, silenciosas, à
luz das candeias, pelas ruas estreitas e desertas da vila, rumo ao Largo
do Pelourinho, local escolhido para o ajuntamento.
ENGABOADAS E ENCAPUZADAS nos
gabões dos seus familiares, percorriam, agora, em conjunto, e de novo em
silêncio, os caminhos das igrejas e capelas da povoação, para, no adro
ou à porta dos templos, cantarem, em gregoriano, num clamor:
"– Subiu Cristo à Cidade com
grande peso da Cruz..." a que o coro de penitentes respondia, modelando
a voz:
"– Oh!... Oh!... Oh!... Ô...
ôôôôu Jesus..."
No final deste cântico,
erguiam os braços para os céus e exclamavam:
"– Senhor!... somos as
mulheres dos pescadores!..."
Esta cerimónia, que foi
trazida para Buarcos
/ 56 /
pelos ílhavos que para ali foram fundar uma colónia de pescadores, era
já hábito muito antigo das mulheres do bairro piscatório de Aveiro.
Recolhidas todas estas
anotações no fim do Verão de 1991, fui convidado para ir a Aveiro, à
Universidade, praticar uma "Acção" visando a história do Gabão de Aveiro
e alegar as razões que justifiquem o seu uso como traje académico dos
universitários.
Assim aconteceu no mês de
Dezembro, em que falei ao Curso de Gestão e Planeamento Turístico,
ministrado na Universidade.
Ao fazer uma ligeira
referência ao facto de alguns velhos pescadores de Buarcos ainda terem o
seu gabão guardado atrás da porta de suas casas, um dos estudantes
presentes (1), pediu para falar e disse:
– Sou de Buarcos e vivo na
povoação de Vais.
– Sou neto de um pescador.
– O meu avô ainda tem
guardado atrás da porta, como relíquia, o seu velho gabão de burel
castanho.
Resta dizer que o Gabão de
Aveiro foi levado para Buarcos, em tempos idos, não só pelos ílhavos,
como também pelos Mutoseiros e Vareiros.
Santos Oliveiros
(1) – Rafael
Alexandre Lé Catulo
|