Moliceiros
Alberto Souto
Entre os barcos mais
curiosos e expressivos de todos os tempos e de todo o mundo, um há que
pode afoitamente apontar-se e distinguir-se é o moliceiro que vive entre
nós nas águas salgadas e salobras da Ria de Aveiro, junto ao mar e ao
delta do Vouga.
Dos barcos da Ria ele é o
mais pitoresco. E os barcos da Ria têm todos formas elegantes,
características inconfundíveis. Essas formas ou são reminiscências e
adaptações do talhe bizarro de naves que no alvorecer da nossa história
por aqui passaram ou uma criação hábil e feliz de construtores artistas
que viveram e se sucederam nas margens deste estuário.
As fisionomias dos barcos da
Ria de Aveiro, apesar de diversas, como diversos são os fins a que se
destinam e os trabalhos em que se empregam, têm um ar flagrante de
família. Mas em todos eles as linhas são harmónicas, proporcionais e
delicadas. Um artista que fosse chamado para embelezar a obra do
construtor, não delinearia melhor, nada teria a corrigir, porque nestes
barcos não há que modificar, há apenas que copiar bem, sem alterar em
coisa alguma o seu perfil airoso, gracioso e cheio de carácter.
Estilizar um moliceiro?! É
um atentado contra a beleza original da forma, que é já de si uma
estilização admirável, e contra o bom gosto inato, perante o qual o
estilizador há-de sempre soçobrar!...
Tenho visto no Tejo, no
Douro, no Sado e no Mondego, nas margens da Galiza e nos abrigos do
Cantábrico, no Adour, no Sena, no Reno, nos canais da França e da
Bélgica, nos lagos suíços, embarcações de tráfego fluvial que são um
misto de formas, anódinos híbridos, vadios de mil profissões, mestiços
de cem raças diferentes e inclassificáveis.
Na Ria de Aveiro, não. Cada
profissão tem o seu tipo e os tipos são inconfundíveis: o saleiro, o
moliceiro, a bateira mercantel, a bateira marnoteira e pescadeira, a
caçadeira, não baralham as suas funções nem anarquizam a sua utilidade,
nem abastardam ou mestiçam a sua estirpe.
Mas, entre todos, o
moliceiro marca o lugar proeminente no pitoresco e na beleza das formas
e tornou-se como que o grande motivo heráldico do brasonário livre dos
povos ribeirinhos.
Veloz como nenhum outro, não
há quem à popa lhe passe avante ou quem o vença a bolinar, subindo
contra o vento em bordos inverosímeis.
A sua borda parece andar
debaixo de água; os seus tripulantes puxando à vara, empurrando com o
peito virado à ré, curvados, arqueados, quase deitados, andando da proa
à tosta, parecem caminhar sobre um destroço de naufrágio poisado nas
águas.
Quando o vento ajuda, o fundo dá e o moliço abunda, mastro arriba, vela
no topo, caça-se a escota, amura calcada, ancinhos a arrastar... e eles
aí andam aos cardumes como os peixes, aos bandos que nadassem de dorso
ao sabor do vento.
À proa e á ré, de um lado e
de outro, os painéis com espantosas cercaduras polícromas de motivos
geométricos, flores e ramalhetes pintados em cores berrantes, ingénuos
de concepção e por vezes ingenuamente maliciosos. (...)»
Alberto Souto
"Litoral", 13-11-1954
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