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Boletim n.º 20-21 - Ano XI - 1993

A Mulher da Murtosa

Bartolomeu Conde

 

Presente na memória a minha avó marinhoa, que me criou e que todas as noites me aconchegava ao corpo a roupa da cama!...

A Câmara, em devido tempo, erigiu na Torreira um Monumento dedicado «À Mulher da Murtosa», como preito de homenagem à Mãe, à Mulher e à Lutadora! No Largo que remata a Avenida Hintze Ribeiro, – a que o povo, mui propriamente, chama o Largo da Varina – lá está uma bela estátua de bronze, em corpo inteiro, assente numa peanha cilíndrica de pedra granítica, rodeada na base por um pequeno círculo de flores.

É uma estátua que põe em evidência a murtoseira de épocas não muito recuadas, uma rapariga jovem, formosa de corpo, cintura de formiga, perna forte e torneada... ali está a noiva haurida em subconsciência, mão na canastra, a outra em equilíbrio desembaraçado – um verdadeiro ex-libris da beleza feminina marinhoa! O escultor apanhou–a como flor aberta ao sol da juventude – promessa de amor - e alindou-lhe o peito, aformoseou-lhe as ancas, deu-lhe ao braço estendido um ar gracioso de ballet! E, para que o gingar do corpo também ficasse «escrito» na escultura, marcou a cinzel três pregas oblíquas nas costas da blusa!

(Pormenor artístico bem achado!)

O escultor pensou (ou sonhou), assim, a marinhoa! Mas essa extraordinária mulher, no horizonte do seu percurso na vida, não está numa estátua: as formas esculturais do seu corpo cedem à sobreposição das recônditas riquezas de alma!

Ela é, depois de casada, a mulher de seu homem, a conformada parideira"de uma ninhada de filhos!

Companheira fiel, submissa, escrava da família: gerar e amamentar a prole, -tratar de todos, escorchar e salgar o peixe para o inverno, acudir às redes se tanto for necessário! E, se a pesca fosse farta e permitisse o comércio, lá vai ela, canastra à cabeça, vender peixe a dez ou a quinze quilómetros arredados de casa! A pé, da Torreira ao Cais do Guedes, a travessia da Ria, de barco até à Bestida, daí a butes até ao Chegado, aí nova travessia do braço da Ria e daí, finalmente, para os povoados de Sarrazola, Vilarinho, Cacia e algumas vezes até Taboeira!...

Oh mulheres d'um raio! Sempre ligeiras, saracoteando-se no seu corre-que-anda, naquela lufa lufa de chegar mais além, de vender o peixe: éh sardinha da Torrêra, do nosso mar! Ou então: éh sardinha da traineira, mas é fresquinha e boa! Eram sinceras para a freguesia e para si próprias.

Era-lhes impensável vender, como "do nosso mar", peixe que vinha das traineiras de Matosinhos!

Depois da venda feita, às vezes já com o véu da noite a adivinhar-se na serra, ali se juntavam todas à beira da Capela de S. Bartolomeu, em Sarrazola, a esperar a chegada das restantes companheiras para que o grupo se juntasse e regressasse a casa. Nessa espera, era vê-las a assar umas sardinhas numa paveia de caruma, ali mesmo ao canto da capela, no chão, e comê-las gostosamente com uma côdea de boroa ganha na permuta com peixe.

Experimente a mais pintada das nossas atletas de corta-mato, sair da Torreira com uma canastra carregada de peixe – uns quinze ou vinte quilos! – pôr aquela tralha à cabeça, fazer todo o trajecto já descrito sempre a pé, às vezes com a barriga cheia - não de vento, nem de comida, mas de um ser em gestação... –- ou até, pasma i oh gentes, com um bebé de meses, envolvido em saiotes velhos, 'a um canto da canastra! Experimentai!

Ah murtoseiras d'uma cana! Eram assim essas moiras-de-trabalho – as marinhoas de há cinquenta anos! Felizmente já acabou essa violentada maneira de viver. Muitos casos dramáticos se passaram com estas mulheres.

Lembro-me, como muita gente se há-de lembrar, da Ananor, uma dessas peixeiras que vinham a Cacia, de cabeça ao lado por deformação da carga, sempre com filhos no carrego da cabeça. Foi uma das últimas, como a ti-Francisca e a A-dos-Anjos, a deixar aquele modo de vida. Pois a Ananor, um dia, quando regressou ao lar, em vez da filhinha doente que trouxera da Torreira, ela, com lágrimas a correr no seu rosto seco, levava na canastra um cadáver para casa!

Como aconteceu, ao contrário da Ananor, com a avó do actual pároco da Torreira, marinhoa também, e também grávida, que teve uma robusta menina num ermo dos campos de percurso, e que, ali mesmo, se teve de haver com os cuidados necessários. Quando regressou a casa, rezando a Deus pelo caminho, levava de prenda, entre os panos da canastra, muito bem enroladinho, um rebento a pedir mama! Esta criança, baptizada com o nome de Belmira, teve como padrinho um farmacêutico de Cacia, o alto, magro e surdo Taborda. E foi esta criança, feita mulher, que deu à Murtosa um dos seus ilustres filhos, que no jornalismo e no sacerdócio tem vincada a sua personalidade de intelectual – o Padre Manuel Caetano Fidalgo!

Por tudo isto, e sem deixar de louvar a Arte da estátua dedicada «À Mulher da Murtosa», acho que o escultor olhou mais para a inefável beleza da murtoseira que para a riqueza das muitas virtudes que ela possui: – falta na estátua, além da característica algibeira, e ao lado da cabeça de peixe que se vê, a cabecinha duma criança a espreitar o mundo do alto da canastra!

A Mãe Murtoseira é disso credora!

Bartolomeu Conde


NOTA - Bartolomeu Conde deixou de estar fisicamente entre nós, mas continua presente nas páginas do espaço «Aveiro e Cultura», de que era colaborador. Para mais textos. usar a hiperligação ///////

 

 

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