A Mulher da Murtosa
Bartolomeu Conde
Presente na memória a minha avó
marinhoa, que me criou e que todas as noites me aconchegava ao corpo a
roupa da cama!...
A Câmara, em devido tempo,
erigiu na Torreira um Monumento dedicado «À Mulher da Murtosa», como
preito de homenagem à Mãe, à Mulher e à Lutadora! No Largo que remata a
Avenida Hintze Ribeiro, – a que o povo, mui propriamente, chama o Largo
da Varina – lá está uma bela estátua de bronze, em corpo inteiro,
assente numa peanha cilíndrica de pedra granítica, rodeada na base por
um pequeno círculo de flores.
É uma estátua que põe em
evidência a murtoseira de épocas não muito recuadas, uma rapariga jovem,
formosa de corpo, cintura de formiga, perna forte e torneada... ali está
a noiva haurida em subconsciência, mão na canastra, a outra em
equilíbrio desembaraçado – um verdadeiro ex-libris da beleza feminina
marinhoa! O escultor apanhou–a como flor aberta ao sol da juventude –
promessa de amor - e alindou-lhe o peito, aformoseou-lhe as ancas,
deu-lhe ao braço estendido um ar gracioso de ballet! E, para que o
gingar do corpo também ficasse «escrito» na escultura, marcou a cinzel
três pregas oblíquas nas costas da blusa!
(Pormenor artístico bem
achado!)
O escultor pensou (ou
sonhou), assim, a marinhoa! Mas essa extraordinária mulher, no horizonte
do seu percurso na vida, não está numa estátua: as formas esculturais do
seu corpo cedem à sobreposição das recônditas riquezas de alma!
Ela é, depois de casada, a
mulher de seu homem, a conformada parideira"de uma ninhada de filhos!
Companheira fiel, submissa,
escrava da família: gerar e amamentar a prole, -tratar de todos,
escorchar e salgar o peixe para o inverno, acudir às redes se tanto for
necessário! E, se a pesca fosse farta e permitisse o comércio, lá vai
ela, canastra à cabeça, vender peixe a dez ou a quinze quilómetros
arredados de casa! A pé, da Torreira ao Cais do Guedes, a travessia da
Ria, de barco até à Bestida, daí a butes até ao Chegado, aí nova
travessia do braço da Ria e daí, finalmente, para os povoados de
Sarrazola, Vilarinho, Cacia e algumas vezes até Taboeira!...
Oh mulheres d'um raio!
Sempre ligeiras, saracoteando-se no seu corre-que-anda, naquela lufa
lufa de chegar mais além, de vender o peixe: éh sardinha da Torrêra, do
nosso mar! Ou então: éh sardinha da traineira, mas é fresquinha e boa!
Eram sinceras para a freguesia e para si próprias.
Era-lhes impensável vender,
como "do nosso mar", peixe que vinha das traineiras de Matosinhos!
Depois da venda feita, às
vezes já com o véu da noite a adivinhar-se na serra, ali se juntavam
todas à beira da Capela de S. Bartolomeu, em Sarrazola, a esperar a
chegada das restantes companheiras para que o grupo se juntasse e
regressasse a casa. Nessa espera, era vê-las a assar umas sardinhas numa
paveia de caruma, ali mesmo ao canto da capela, no chão, e comê-las
gostosamente com uma côdea de boroa ganha na permuta com peixe.
Experimente a mais pintada
das nossas atletas de corta-mato, sair da Torreira com uma canastra
carregada de peixe – uns quinze ou vinte quilos! – pôr aquela tralha à
cabeça, fazer todo o trajecto já descrito sempre a pé, às vezes com a
barriga cheia - não de vento, nem de comida, mas de um ser em
gestação... –- ou até, pasma i oh gentes, com um bebé de meses,
envolvido em saiotes velhos, 'a um canto da canastra! Experimentai!
Ah murtoseiras d'uma cana!
Eram assim essas moiras-de-trabalho – as marinhoas de há cinquenta anos!
Felizmente já acabou essa violentada maneira de viver. Muitos casos
dramáticos se passaram com estas mulheres.
Lembro-me, como muita gente
se há-de lembrar, da Ananor, uma dessas peixeiras que vinham a Cacia, de
cabeça ao lado por deformação da carga, sempre com filhos no carrego da
cabeça. Foi uma das últimas, como a ti-Francisca e a A-dos-Anjos, a
deixar aquele modo de vida. Pois a Ananor, um dia, quando regressou ao
lar, em vez da filhinha doente que trouxera da Torreira, ela, com
lágrimas a correr no seu rosto seco, levava na canastra um cadáver para
casa!
Como aconteceu, ao contrário
da Ananor, com a avó do actual pároco da Torreira, marinhoa também, e
também grávida, que teve uma robusta menina num ermo dos campos de
percurso, e que, ali mesmo, se teve de haver com os cuidados
necessários. Quando regressou a casa, rezando a Deus pelo caminho,
levava de prenda, entre os panos da canastra, muito bem enroladinho, um
rebento a pedir mama! Esta criança, baptizada com o nome de Belmira,
teve como padrinho um farmacêutico de Cacia, o alto, magro e surdo
Taborda. E foi esta criança, feita mulher, que deu à Murtosa um dos seus
ilustres filhos, que no jornalismo e no sacerdócio tem vincada a sua
personalidade de intelectual – o Padre Manuel Caetano Fidalgo!
Por tudo isto, e sem deixar
de louvar a Arte da estátua dedicada «À Mulher da Murtosa», acho que o
escultor olhou mais para a inefável beleza da murtoseira que para a
riqueza das muitas virtudes que ela possui: – falta na estátua, além da
característica algibeira, e ao lado da cabeça de peixe que se vê, a
cabecinha duma criança a espreitar o mundo do alto da canastra!
A Mãe Murtoseira é
disso credora!
Bartolomeu Conde
NOTA - Bartolomeu Conde
deixou de estar fisicamente entre nós, mas continua presente nas páginas
do espaço «Aveiro e Cultura», de que era colaborador.
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