Acesso à hierarquia superior.

Boletim n.º 20-21 - Ano XI - 1993

Influências da Ria no Folclore Ribeirinho

Severino Marques

 

1.º) O ALASTRAMENTO DAS ÁGUAS MARINHAS, EM PARTE, NAS REGIÕES HOJE DENOMINADAS DO "VALE DO VOUGA" E DO "VALE DO ÁGUEDA", E UM POUCO DA SUA HISTÓRIA.

 O Mar-Oceano, como então era conhecido nos tempos proto-históricos, estendia braços marinhos, constituindo longos esteiros que, no hoje conhecido como vale do Vouga, ao tocar nas falésias escarpadas de Almear e, ladeando as suas faldas para nascente, ainda então um dos braços ia banhar uma zona nos contrafortes do princípio das elevações, onde hoje se localiza a povoação de Macinhata e, consequentemente, ao encontro do Rio Vouga. Do mesmo modo, outro braço marinho um pouco mais para o sul, contornando a base do vértice da escarpa de Almear, estendia-se até às portas onde se situa Águeda, também ao encontro do Rio então conhecido por Alfusqueiro, hoje o Águeda. O mesmo braço marítimo alastrando por todo o vale, foi encontrar o Rio Cértima ou Cértoma, a montante da actual Pateira de Fermentelos, antiga Lagoaça como era conhecida, e na época já depois em que o local era coberto de espessos arvoredos por onde o Cértima ainda corria no seu leito, sem embaraços.

Provas concludentes constataram-se por volta de 1910, aquando das sondagens para a construção das estruturas da ponte metálica entre Travassô e Eirol, destinada ao Caminho de Ferro do Vale do Vouga. Tais sondagens, que foram a uma profundidade de 25 metros, permitiram conclusões concretas acerca da presença daqueles braços marinhos naquelas aludidas paragens, com o aparecimento em tais profundezas de seixos rolados, conchas marinhas de várias espécies e outros achados alusivos à vida marítima. O mesmo aconteceu em 1983 quando se procedia à pesquisa de águas no lugar do Paredão, entre os Rios Vouga e Águeda, junto à foz deste último, através de um furo artesiano com cerca da mesma profundidade de 25 metros, que se destinariam à Portucel, em Cacia, não esquecendo as marinhas de sal que ainda existiram em Alquerubim, S. João de Loures e Eixo nos princípios do século XI.

Também o nome de Almear terá provindo de AI-Menara (nome de origem árabe) que queria dizer "facho ou fogo para sinais ao longe"; daí o ter existido em tempos remotos, um farol ou construção com fins análogos em Almear que, com a sua luz, facilitaria o desvio de rumos à navegação durante a noite, quer para nascente através do vale do Vouga, quer para Sul através do vale do Águeda e do Cértima.

Ora, durante séculos, verificou-se o recuo dos braços marinhos do Mar-Oceano, deixando atrás de si profundos sulcos por onde as águas dos Rios Vouga, Águeda e Cértima deslizaram até ao encontro das águas salgadas, não esquecendo que na Idade Média a foz do Vouga distanciava do Oceano cerca de 20 quilómetros, isto é, deveria localizar-se precisamente por alturas de Almear, desaguando ainda no referido braço marinho, tal como devia acontecer com os Rios Águeda e Cértima, que, só com a continuidade do recuo do braço marinho e a partir daí, as águas dos últimos engrossavam as do Vouga.

 

2.º) UM PEQUENO RESUMO HISTÓRICO DA ORIGEM DA RIA

A Ria de Aveiro ou Laguna, como primeiro foi chamada, estende-se desde o Carregal, em Ovar, até às cercanias de Mira, ou seja, até ao Poço da Cruz, com uma extensão de cerca de 47 quilómetros e uma toalha de águas com uma superfície não inferior a 6.000 hectares.

Dizem-nos as enciclopédias e outras publicações compulsadas que a sua conformação estrutural apresenta diferenças marginais pelo menos desde o quaternário até aos tempos históricos, dando-nos conta de que a sua evolução foi diversa.

Presume-se que a origem da Laguna terá tido o seu início em época posterior ao século XI, altura em que o cabedelo vindo dos areais de Mira, já no século XIII chegado à Gafanha, crescia para o norte. / 12 /

Apesar destes elementos que mais ou menos nos dão conhecimentos elucidativos quanto à formação da Laguna, há geógrafos que aceitam a ideia de que o seu início tenha sido calculado rondando os 25 séculos.

Seja como for, a verdade é que as águas da Laguna provenientes do mar e dos rios, já depois do referido braço marinho ter recuado até ao Mar-Oceano, em que este investindo aqui ou acolá tanto abria roturas entrando águas como as fechava, não as deixando, portanto, sair, estagnavam provocando febres palustres e outras que dizimavam as populações ribeirinhas, levando-as a abandonar os povoados que ao longo da Ria já estavam formados, factos que aconteceram até à abertura da Barra em definitivo, a 3 de Abril de 1808. Assim, até à referida abertura da Barra, verificaram-se várias roturas nos areais conforme já aludimos, que permitiam a entrada das águas do mar, mas passados tempos eram obstruídas novamente pelas areias trazidas pelas correntes marinhas; senão vejamos:

Por volta de 1200 a barra esteve aberta na direcção da Murtosa;

Por volta de 1500 idem na direcção de S. Jacinto;

Por volta de 1584 idem na direcção da  Costa Nova;

Por volta de 1643 na direcção da Vagueira;

Por volta de 1685 na direcção da Q.ta do Inglês;

Por volta de 1756 na direcção perto de Mira.

Nesta última barra de Mira, ainda em 1750 com a entrada quase obstruída, conseguiu entrar uma embarcação e outra, a última, em 1753.

Apesar da situação irregular da barra nesta região, já em 1752 tinha sido escolhido o local para a abertura da barra nova, em frente ao farol velho, sonho que somente se concretizou em 1757 após a abertura de um regueirão, na Vagueira, para o qual forma utilizadas 80 juntas de bois e mais de 200 homens. O regueirão tinha 20 braças de largura, isto é, mais de 600 metros e demorou a romper-se 7 semanas; a barra foi aberta em Fevereiro daquele ano, para pouco tempo depois ser obstruída. Não desistindo o Capitão-Mor de Ílhavo, João de Sousa Ribeiro da Silveira, que, tal como tinha iniciado, a expensas suas continuou com o aprofundamento da vala durante mais alguns meses, o que conseguiu em Agosto do mesmo ano de 1757, mas só em 8 de Dezembro se concretizou de novo a abertura da barra, mas com altos e baixos, de modo que mais tarde se voltou a encerrar.

Deste modo, após estudos projectados pelos Eng.os Reinaldo Oudinot e Luís Gomes de Carvalho, a nova e actual Barra, depois de porfiados trabalhos, foi aberta definitivamente em 3 de Abril de 1808, com uma embocadura de 120 braças de largo e 35 palmos de profundidade e capaz de toda a navegação.

 

3.º) O RIO VOUGA E SEUS AFLUENTES A DESAGUAR NA RIA, E UM POUCO DA SUA HISTÓRIA

Depois de já nos termos espraiado em considerações acerca do braço do Mar-Oceano que penetrou no interior até às portas de Macinhata do Vouga, e para as bandas de Águeda pela parte sul, vamos ocupar-nos um pouco sobre o Rio Vouga, esse Rio por excelência português, que com tanto carinho abraça a sua Ria.

O Rio Vouga com 165 quilómetros de comprimento, desde a Serra da Lapa até à Laguna, foi em tempos, algumas décadas atrás, navegável até Pessegueiro do Vouga com barcos de grande lotação e, em tempos de antanho, também, por navios até à vila de Vouga, hoje modesta povoação da freguesia de Lamas do Vouga que foi sede de concelho desde tempos muito remotos, e extinto em 31 de Dezembro de 1853.

Em Novembro de 1778 chegou-se a averiguar a possibilidade da navegabilidade do Rio Vouga desde S. Pedro do Sul até Aveiro, quando já era navegável até Pessegueiro. Tal projecto ainda foi discutido à volta do segundo quartel do século XIX.

Na Idade Média a foz do Vouga, como já foi relatado, distava do Mar-Oceano cerca de 20 quilómetros, isto é, a sua foz deveria localizar-se na zona de Almear, onde desaguava o Rio Vouga já no mencionado braço marinho.

Os Romanos chamavam ao Rio   - Vacua

Na Idade Média «       «       «       - Vauca

No século XVI    «       «       «       - Vouca.

No século XII o Rio Vouga ainda despejava directamente no mar, considerada, portanto, barra aberta, não existindo, pensa-se, em toda a sua grandeza, a chamada Laguna de Aveiro.

O Rio Vouga tem como afluente principal o Rio Águeda, conhecido antigamente como Rio Alfusqueiro, e este tem também como afluente o Rio Cértima ou Cértoma. Foram os aluviões dos Rios Águeda e Cértima, amontoando-se na sua confluência, que represaram a corrente do último, começando assim, a formar a Lagoa hoje Pateira de Fermentelos - na curva do Rio perto da Igreja-Matriz de Requeixo e, daí, o alastramento das suas águas.

O Rio Vouga, que num passado distante corria por sulcos profundos deixados pelo braço marinho, permitia ver com dificuldade através das variantes das suas margens e da rasteira / 13 / vegetação, o gigo colocado no topo do mastro dos barcos, anunciando o peixe e o sal que transportavam para venda. Veja-se o seu leito profundo de então, hoje quase totalmente assoreado.

Além das águas do Rio Vouga e dos seus afluentes que desaguam na Ria, hoje e noutros tempos tal acontece, também, com as águas do Rio Antuã e seu afluente UI, e de algumas ribeiras e riachos como o do Boco ou Rio Salgado, ao sul de Vagos, e as ribeiras de Ovar, Pardelhas e Cabanões, ao norte.

 

4.º) O REPOVOAMENTO DOS PALHEIROS ADJACENTES À RIA, O DESBRAVAR DAS DUNAS E O APROVEITAMENTO DOS AREAIS

Com a abertura da Barra Nova – actual – em 3 de Abril de 1808, tornou-se possível uma flutuação das águas da Ria, que além de as tornar salutares, enriqueceu a Laguna com as várias espécies de peixes e a proliferação de algas (moliço), chamou de novo e com mais acuidade ainda, as populações afugentadas a formarem pequenos povoados para, através das águas da Ria, buscarem o seu sustento e, ao mesmo tempo, a comercialização dos excedentes não só nos povoados ribeirinhos, como para fora dessas zonas.

Ora, tudo terá começado precisamente num pequeno acampamento, que terá tido o seu início por volta do segundo quartel do século XVII, que veio mais tarde a denominar-se GAFANHA.

A primeira colónia de agricultores processou-se antes de 1677 e teve lugar na CHAVE, onde mais tarde foi construída a capela de N.ª S.ª da Nazaré.

Até aí seria um areal inculto e desprezado, no mesmo local – mais ou menos – onde hoje se situa a Gafanha da Nazaré, uma vila promissora que naturalmente muito se orgulha do seu passado e das suas gentes de antanho que conseguiram transformar as ubérrimas areias em pão e não só, factos que lhe deram estes foros de grandeza, de que hoje com toda a merecida galhardia tem vindo a desfrutar.

Acerca da origem do nome da GAFANHA, relata-nos o grande etnógrafo que foi, o autor da Monografia da Gafanha, P.e Vieira Resende, que o nome "Gafanha" estará na origem da GADANHA, instrumento de roçar ervas e outras vegetações que era utilizada para "gadanhar" o junco. O povo distorcendo a ortografia e os sons, dizia mais tarde, vamos gafanhar o junco, para depois dizer, vamos à gafanha ao junco. Assim, discorda o autor que a origem do nome GAFANHA venha de GAFARIA, opinião perfilhada, também, por Pinho Leal.

E foi aí, entre o mar e o cordão das areias que o Homem-Gafanhão arrasou dunas, revolveu areias, foi à Ria com o ancinho apanhar o moliço, e do fundo da Laguna com a enxada de pá larga arrancava a lama. E era com essa mistura adubada da lama com o moliço, que enxameavam as areias revolvidas, com esse estrume marinho que a enxada e mais tarde também o arado fomentavam as culturas com o melhor resultado nas colheitas, sobretudo e ao tempo com o milho, feijão e mais tarde outros produtos hortícolas que aquelas bafejadas areias sempre produziram.

O Gafanhão foi considerado homem persistente no seu querer, teimoso no trabalho e inquebrantável na fé de vencer, além de ser paciente. Isto nos relata o P.e Vieira Resende na sua Monografia da Gafanha.

Assim, a Gafanha foi considerada já no século XIX como uma grande arca nacional de pão, tendo em conta o labrego rude, que transformou as areias em pão para sustento de tantas populações, que então já do caixão do milho das Gafanhas se socorriam.

A primeira capela, bastante pobre, foi construída em 1818 na Cale da Vila (actual Gafanha da Nazaré), com adobos de barro ou misturado com conchas de berbigão ou de ostras ou felga (estes, eram chamados adobos de palhão). Como os adobos não tivessem chegado para a construção da torre sineira, não havia, portanto, sinos para o chamamento dos fiéis, a fim de assistirem às cerimónias religiosas; daí o ter havido necessidade de resolver o assunto, improvisando um SACRISTA que de manhã e à noite, subindo as dunas, utilizasse lá do alto, o chamado sino dos pobres, que consistia nos fortes sopros num enorme búzio. Mas deixai que se transcreva, por histórico e poético, o texto ditado pelo Rev.º P.e Resende:

...«Ao dealbar do dia ou à tarde ao mergulhar suave e majestoso do sol, nas águas do Oceano, conforme a convocação se fizesse para o Santo Sacrifício ou para as Orações da manhã ou da noite, um repolhudo gafanhão, improvisado de sacrista, dirigia-se para o templozinho cheio de misticismo, descalço, de cuecas a cair sobre a rótula, cingidas pelo cós com um só botão às ancas espadaúdas. De barrete pendente sobre a orelha, contas ao pescoço sobre a baeta da camisa, e de gabão velho, esburacado, deixava fustigar pelo vento da madrugada as canelas magras e nuas.

Este bom e anafado gafanhão, ia eu dizendo, assim descrito, tal qual era na / 14 / primitiva Gafanha, soprava desesperadamente num enorme búzio, cujos sons cavos, profundos e compassados, iam quebrar-se de encontro às cordilheiras solitárias das dunas ou espraiar-se pela "argentinea" superfície do Oceano infindo.»

 

5.º) O TRÁFEGO ENTRE A LAGUNA, RIO VOUGA E SEUS AFLUENTES ARRIBA

Naturalmente que, com o repovoamento da Ria, a intensificação de embarcações através da laguna, desenvolveu-se um tráfego não só bordejante, como de carácter mercantil constante e intenso, permitindo a promoção de trocas e vendas de produtos agrícolas, obrigando as populações a uma expansão negocial mais dilatada, com a sua navegabilidade mais alargada na sua rede de vendas e consequentemente de compras de géneros, que na sua lavra não existissem. Este comportamento obrigou as gentes marinheiras a sair das margens da Ria e a infiltrarem-se pelo Rio Vouga acima até Pessegueiro, derivando, também, na foz do Rio Águeda, na Ponte da Rata, para montante, até ao Cais das Laranjeiras, da já Vila de Águeda. Antes, porém, do mesmo modo, ao subir o Rio Águeda, nos subúrbios de Requeixo rumavam, também, para o Rio Cértima.

Os barqueiros de então, sabendo das necessidades mais prementes das gentes do interior, carregavam os barcos, além e sobretudo do peixe que era a sardinha e o chicharro, por vezes o berbigão e o cristalino sal das marinhas que não vendiam só às regateiras do mercado de Águeda, como saltavam do barco para venderem pelas ruas, ruelas e carreiros. As mulheres apresentavam-se com a canastra e os homens com a vara ao ombro suspendendo em cada extremidade um gigo. Obviamente que no regresso como recovagem, carregavam tudo aquilo que necessitavam e que as areias não produziam, como acendalhas que era a carqueja para acender o lume na lareira e no fogão, a lenha-achas, o carvão, o vinho e seus derivados, além de géneros que mercavam nos lugares do percurso, onde a paragem era possível mas, com mais afluência, na praça e comércio de Águeda. O certo é que a maior parte do carregamento do retorno destinava-se a ser vendido não só nos povoados ribeirinhos, sem esquecer as bandas da Murtosa, de onde a maior parte dos barcos e barqueiros eram oriundos, e na própria vila/cidade de Aveiro.

Na via directa do Vouga, isto é, até Pessegueiro, daí apenas vinha lenha, carvão e carqueja, cujos carregadoiros no rio daquela paragem serrana quase sempre se processavam junto de agrestes penhascos e pedregulhos.

O mesmo já não acontecia com os carregamentos no Cais das Laranjeiras, em Águeda. A lenha – as chamadas achas – vinha das abas serranas em carros antigos de bois, o carvão e a carqueja eram transportados por almocreves que calcorreavam, descalços, ásperos e longos caminhos serranos, trazendo para baixo aqueles carregamentos sobre os seus burricos e por vezes também às costas e, no regresso para cima, levavam a sardinha, o chicharro e o sal.

Ainda me lembro muito bem da "ti Maria Rosa" da serra e lugar das Talhadas, que saindo de madrugada de sua casa, ainda bastante escuro, em direcção a Aveiro, a pé, calcorreava caminhos ásperos através de montes e vales durante cerca de 50 quilómetros – (100 Km ida e volta) – para chegar a tempo de mercar a sardinha e o chicharro, e logo regressar ajoujada com a canastra e o peixe, serra acima; ultimamente já o seu transporte era feito às costas, pois que a sua coluna vergada pelo peso da idade não permitia que a sua cabeça enrodilhada aguentasse a carga que habitualmente transportava.

 

6.º) O INTERCÂMBIO MERCANTIL E CULTURAL

Ora, aqueles barqueiros e familiares que faziam do leito do barco moliceiro ou mercantel e da proa a sua humilde habitação, onde cozinhavam, lavavam, e dormiam, não transportavam somente sal, peixe, lenha, carqueja e cascos de vinho, mas também da Borda d'Água levavam como traziam parcelas de cultura diversificada, sobretudo danças e cantigas e por que não outras tradições que ao tempo seriam o encanto e o regalo dos nossos avoengos, nos serões, nos arraiais ou romarias, nas sachas dos campos, nas eiras, nas esplanadas, nos terreiros ou nos adros das igrejas, não esquecendo os melodiosos cânticos religiosos dessas encantadoras paragens que essa humilde e honrada gente (os barqueiros) assimilava desde a várzea à parte serrana da zona baixa do Caramulo.

Era todo o agregado que ajudava a barqueação do barco através desses percursos por vezes cansativos e penosos, onde surgia muitas vezes o desânimo, que seria suavizado pelo encanto e frescura de frondosas árvores marginais e também pelas cristalinas e puras águas doces dos rios, factos que infelizmente hoje já não se verificam.

Tempos saudosos, em que tudo era harmonia, melodia e festa, onde até na exígua proa dos barcos se dançava, cantava e tocava quando cruzavam as águas da Ria para as festas da Senhora da Saúde, na Costa Nova do Prado; Senhora das Areias, em S. Jacinto; São Paio, na Torreira... e muitas vezes subiam o Vouga / 15 / para outras festividades, nomeadamente para a Senhora da Saúde, em Fermentelos, Santos Mártires, em Travassô.

Mas não era só nos barcos que esgrimiam até ao último fôlego das suas forças com as danças; a sua actuação também tinha lugar em terra onde caldeavam coreografias do litoral salgado com as da várzea e montanha, como se fossem filhos natos da região.

Razão tinha o Dr. Jaime de Magalhães Lima quando dizia que o Baixo-Vouga, em consonância com a Ria, tinha uma veia-mãe em Ílhavo e outra na Murtosa.

E era paralelamente, com o aumento do intercâmbio mercantil, que crescia o intercâmbio cultural através do folclore entre as gentes da marinha mais notadas as das bandas da Murtosa - e os povos da várzea e da montanha, que nos seus rastos deixavam nos ouvidos os sons agudos do búzio anunciador do peixe, e levavam o sussurro das quedas de água do Vouga, em Pessegueiro, e os melodiosos gemidos das noras do Rio Águeda.

Abril de 1993

Severim Marques

 
 

DUAS COISAS NO MESMO SER

«Eu nasci em Aveiro, ao que suponho na proa de alguma bateria. Fui baptizado à mesma hora, nas águas da nossa Ria. Abriram-se-me os ouvidos ao som cadencioso dos remos no mar, ao pio estrídulo das famintas gaivotas, ao praguedo inocente dos pescadores. Encheu-se-me o peito à nascença do ar salgado da maresia. S. Francisco de Assis chamava a estas coisas irmãos, chamava a estas coisas irmãs: o irmão Vouga, o irmão luar que à noite o prateia, os irmãos peixes, as irmãs espumas, areias, estrelas.
Mas aqui há mais do que uma simples fraternidade, há mais do que a suave harmonia da natureza e da alma de Aveiro; chego a crer que há uma verdadeira encarnação, o encontro de duas coisas no mesmo ser.

Nós, os de Aveiro, somos feitos, dos pés à cabeça, de Ria, de barcos, de remos, de redes, de velas, de montinhos de sal e areia, até de naufrágios. Se nos abrissem o peito, encontrariam lá dentro um barquinho à vela, ou então uma bóia ou fateixa, ou então a Senhora dos Navegantes.

Assim plasmado de Aveiro, com os beiços a saber a salgado, a pingar gotas da Ria por todo o corpo, por toda a alma, (...) eu sou uma nesga, embora minúscula, desta deliciosa aguarela de Aveiro; eu sou um pedaço da nossa terra (...)»

D. João Evangelista de Lima Vidal
In: "Correio do Vouga", 8-11-1952, pg. 1
 

 

 

 

Página anterior

Índice Geral

Página seguinte

pp. 11-15