Influências da Ria no
Folclore Ribeirinho
Severino Marques
1.º) O ALASTRAMENTO DAS ÁGUAS MARINHAS, EM PARTE, NAS
REGIÕES HOJE DENOMINADAS DO "VALE DO VOUGA" E DO "VALE DO ÁGUEDA", E UM
POUCO DA SUA HISTÓRIA.
O Mar-Oceano, como então era conhecido nos tempos
proto-históricos, estendia braços marinhos, constituindo longos esteiros
que, no hoje conhecido como vale do Vouga, ao tocar nas falésias
escarpadas de Almear e, ladeando as suas faldas para nascente, ainda
então um dos braços ia banhar uma zona nos contrafortes do princípio das
elevações, onde hoje se localiza a povoação de Macinhata e,
consequentemente, ao encontro do Rio Vouga. Do mesmo modo, outro braço
marinho um pouco mais para o sul, contornando a base do vértice da
escarpa de Almear, estendia-se até às portas onde se situa Águeda,
também ao encontro do Rio então conhecido por Alfusqueiro, hoje o
Águeda. O mesmo braço marítimo alastrando por todo o vale, foi encontrar
o Rio Cértima ou Cértoma, a montante da actual Pateira de Fermentelos,
antiga Lagoaça como era conhecida, e na época já depois em que o local
era coberto de espessos arvoredos por onde o Cértima ainda corria no seu
leito, sem embaraços.
Provas concludentes constataram-se por volta de 1910,
aquando das sondagens para a construção das estruturas da ponte metálica
entre Travassô e Eirol, destinada ao Caminho de Ferro do Vale do Vouga.
Tais sondagens, que foram a uma profundidade de 25 metros, permitiram
conclusões concretas acerca da presença daqueles braços marinhos
naquelas aludidas paragens, com o aparecimento em tais profundezas de
seixos rolados, conchas marinhas de várias espécies e outros achados
alusivos à vida marítima. O mesmo aconteceu em 1983 quando se procedia à
pesquisa de águas no lugar do Paredão, entre os Rios Vouga e Águeda,
junto à foz deste último, através de um furo artesiano com cerca da
mesma profundidade de 25 metros, que se destinariam à Portucel, em
Cacia, não esquecendo as marinhas de sal que ainda existiram em
Alquerubim, S. João de Loures e Eixo nos princípios do século XI.
Também o nome de Almear terá provindo de AI-Menara (nome
de origem árabe) que queria dizer "facho ou fogo para sinais ao longe";
daí o ter existido em tempos remotos, um farol ou construção com fins
análogos em Almear que, com a sua luz, facilitaria o desvio de rumos à
navegação durante a noite, quer para nascente através do vale do Vouga,
quer para Sul através do vale do Águeda e do Cértima.
Ora, durante séculos, verificou-se o recuo dos braços
marinhos do Mar-Oceano, deixando atrás de si profundos sulcos por onde
as águas dos Rios Vouga, Águeda e Cértima deslizaram até ao encontro das
águas salgadas, não esquecendo que na Idade Média a foz do Vouga
distanciava do Oceano cerca de 20 quilómetros, isto é, deveria
localizar-se precisamente por alturas de Almear, desaguando ainda no
referido braço marinho, tal como devia acontecer com os Rios Águeda e
Cértima, que, só com a continuidade do recuo do braço marinho e a partir
daí, as águas dos últimos engrossavam as do Vouga.
2.º) UM PEQUENO RESUMO HISTÓRICO DA ORIGEM DA RIA
A Ria de Aveiro ou Laguna, como primeiro foi chamada,
estende-se desde o Carregal, em Ovar, até às cercanias de Mira, ou seja,
até ao Poço da Cruz, com uma extensão de cerca de 47 quilómetros e uma
toalha de águas com uma superfície não inferior a 6.000 hectares.
Dizem-nos as enciclopédias e outras publicações
compulsadas que a sua conformação estrutural apresenta diferenças
marginais pelo menos desde o quaternário até aos tempos históricos,
dando-nos conta de que a sua evolução foi diversa.
Presume-se que a origem da Laguna terá tido o seu início
em época posterior ao século XI, altura em que o cabedelo vindo dos
areais de Mira, já no século XIII chegado à Gafanha, crescia para o
norte.
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Apesar destes elementos que mais ou menos nos dão
conhecimentos elucidativos quanto à formação da Laguna, há geógrafos que
aceitam a ideia de que o seu início tenha sido calculado rondando os 25
séculos.
Seja como for, a verdade é que as águas da Laguna
provenientes do mar e dos rios, já depois do referido braço marinho ter
recuado até ao Mar-Oceano, em que este investindo aqui ou acolá tanto
abria roturas entrando águas como as fechava, não as deixando, portanto,
sair, estagnavam provocando febres palustres e outras que dizimavam as
populações ribeirinhas, levando-as a abandonar os povoados que ao longo
da Ria já estavam formados, factos que aconteceram até à abertura da
Barra em definitivo, a 3 de Abril de 1808. Assim, até à referida
abertura da Barra, verificaram-se várias roturas nos areais conforme já
aludimos, que permitiam a entrada das águas do mar, mas passados tempos
eram obstruídas novamente pelas areias trazidas pelas correntes
marinhas; senão vejamos:
Por volta de 1200 a barra esteve aberta na direcção da
Murtosa;
Por volta de 1500 idem na direcção de S. Jacinto;
Por volta de 1584 idem na direcção da Costa Nova;
Por volta de 1643 na direcção da Vagueira;
Por volta de 1685 na direcção da Q.ta do
Inglês;
Por volta de 1756 na direcção perto de Mira.
Nesta última barra de Mira, ainda em 1750 com a entrada
quase obstruída, conseguiu entrar uma embarcação e outra, a última, em
1753.
Apesar da situação irregular da barra nesta região, já em
1752 tinha sido escolhido o local para a abertura da barra nova, em
frente ao farol velho, sonho que somente se concretizou em 1757 após a
abertura de um regueirão, na Vagueira, para o qual forma utilizadas 80
juntas de bois e mais de 200 homens. O regueirão tinha 20 braças de
largura, isto é, mais de 600 metros e demorou a romper-se 7 semanas; a
barra foi aberta em Fevereiro daquele ano, para pouco tempo depois ser
obstruída. Não desistindo o Capitão-Mor de Ílhavo, João de Sousa Ribeiro
da Silveira, que, tal como tinha iniciado, a expensas suas continuou com
o aprofundamento da vala durante mais alguns meses, o que conseguiu em
Agosto do mesmo ano de 1757, mas só em 8 de Dezembro se concretizou de
novo a abertura da barra, mas com altos e baixos, de modo que mais tarde
se voltou a encerrar.
Deste modo, após estudos projectados pelos Eng.os
Reinaldo Oudinot e Luís Gomes de Carvalho, a nova e actual Barra, depois
de porfiados trabalhos, foi aberta definitivamente em 3 de Abril de
1808, com uma embocadura de 120 braças de largo e 35 palmos de
profundidade e capaz de toda a navegação.
3.º) O RIO VOUGA E SEUS AFLUENTES A DESAGUAR NA RIA, E UM
POUCO DA SUA HISTÓRIA
Depois de já nos termos espraiado em considerações acerca
do braço do Mar-Oceano que penetrou no interior até às portas de
Macinhata do Vouga, e para as bandas de Águeda pela parte sul, vamos
ocupar-nos um pouco sobre o Rio Vouga, esse Rio por excelência
português, que com tanto carinho abraça a sua Ria.
O Rio Vouga com 165 quilómetros de comprimento, desde a
Serra da Lapa até à Laguna, foi em tempos, algumas décadas atrás,
navegável até Pessegueiro do Vouga com barcos de grande lotação e, em
tempos de antanho, também, por navios até à vila de Vouga, hoje modesta
povoação da freguesia de Lamas do Vouga que foi sede de concelho desde
tempos muito remotos, e extinto em 31 de Dezembro de 1853.
Em Novembro de 1778 chegou-se a averiguar a possibilidade
da navegabilidade do Rio Vouga desde S. Pedro do Sul até Aveiro, quando
já era navegável até Pessegueiro. Tal projecto ainda foi discutido à
volta do segundo quartel do século XIX.
Na Idade Média a foz do Vouga, como já foi relatado,
distava do Mar-Oceano cerca de 20 quilómetros, isto é, a sua foz deveria
localizar-se na zona de Almear, onde desaguava o Rio Vouga já no
mencionado braço marinho.
Os Romanos chamavam ao Rio - Vacua
Na Idade Média « « « - Vauca
No século XVI « « « - Vouca.
No século XII o Rio Vouga ainda despejava directamente no
mar, considerada, portanto, barra aberta, não existindo, pensa-se, em
toda a sua grandeza, a chamada Laguna de Aveiro.
O Rio Vouga tem como afluente principal o Rio Águeda,
conhecido antigamente como Rio Alfusqueiro, e este tem também como
afluente o Rio Cértima ou Cértoma. Foram os aluviões dos Rios Águeda e
Cértima, amontoando-se na sua confluência, que represaram a corrente do
último, começando assim, a formar a Lagoa hoje Pateira de Fermentelos -
na curva do Rio perto da Igreja-Matriz de Requeixo e, daí, o
alastramento das suas águas.
O Rio Vouga, que num passado distante corria por sulcos
profundos deixados pelo braço marinho, permitia ver com dificuldade
através das variantes das suas margens e da rasteira
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vegetação, o gigo colocado no topo do mastro dos barcos, anunciando o
peixe e o sal que transportavam para venda. Veja-se o seu leito profundo
de então, hoje quase totalmente assoreado.
Além das águas do Rio Vouga e dos seus afluentes que
desaguam na Ria, hoje e noutros tempos tal acontece, também, com as
águas do Rio Antuã e seu afluente UI, e de algumas ribeiras e riachos
como o do Boco ou Rio Salgado, ao sul de Vagos, e as ribeiras de Ovar,
Pardelhas e Cabanões, ao norte.
4.º) O REPOVOAMENTO DOS PALHEIROS ADJACENTES À RIA, O
DESBRAVAR DAS DUNAS E O APROVEITAMENTO DOS AREAIS
Com a abertura da Barra Nova – actual – em 3 de Abril de
1808, tornou-se possível uma flutuação das águas da Ria, que além de as
tornar salutares, enriqueceu a Laguna com as várias espécies de peixes e
a proliferação de algas (moliço), chamou de novo e com mais acuidade
ainda, as populações afugentadas a formarem pequenos povoados para,
através das águas da Ria, buscarem o seu sustento e, ao mesmo tempo, a
comercialização dos excedentes não só nos povoados ribeirinhos, como
para fora dessas zonas.
Ora, tudo terá começado precisamente num pequeno
acampamento, que terá tido o seu início por volta do segundo quartel do
século XVII, que veio mais tarde a denominar-se GAFANHA.
A primeira colónia de agricultores processou-se antes de
1677 e teve lugar na CHAVE, onde mais tarde foi construída a capela de
N.ª S.ª da Nazaré.
Até aí seria um areal inculto e desprezado, no mesmo
local – mais ou menos – onde hoje se situa a Gafanha da Nazaré, uma vila
promissora que naturalmente muito se orgulha do seu passado e das suas
gentes de antanho que conseguiram transformar as ubérrimas areias em pão
e não só, factos que lhe deram estes foros de grandeza, de que hoje com
toda a merecida galhardia tem vindo a desfrutar.
Acerca da origem do nome da GAFANHA, relata-nos o grande
etnógrafo que foi, o autor da Monografia da Gafanha, P.e
Vieira Resende, que o nome "Gafanha" estará na origem da GADANHA,
instrumento de roçar ervas e outras vegetações que era utilizada para
"gadanhar" o junco. O povo distorcendo a ortografia e os sons, dizia
mais tarde, vamos gafanhar o junco, para depois dizer, vamos à gafanha
ao junco. Assim, discorda o autor que a origem do nome GAFANHA venha de
GAFARIA, opinião perfilhada, também, por Pinho Leal.
E foi aí, entre o mar e o cordão das areias que o
Homem-Gafanhão arrasou dunas, revolveu areias, foi à Ria com o ancinho
apanhar o moliço, e do fundo da Laguna com a enxada de pá larga
arrancava a lama. E era com essa mistura adubada da lama com o moliço,
que enxameavam as areias revolvidas, com esse estrume marinho que a
enxada e mais tarde também o arado fomentavam as culturas com o melhor
resultado nas colheitas, sobretudo e ao tempo com o milho, feijão e mais
tarde outros produtos hortícolas que aquelas bafejadas areias sempre
produziram.
O Gafanhão foi considerado homem persistente no seu
querer, teimoso no trabalho e inquebrantável na fé de vencer, além de
ser paciente. Isto nos relata o P.e Vieira Resende na sua
Monografia da Gafanha.
Assim, a Gafanha foi considerada já no século XIX como
uma grande arca nacional de pão, tendo em conta o labrego rude, que
transformou as areias em pão para sustento de tantas populações, que
então já do caixão do milho das Gafanhas se socorriam.
A primeira capela, bastante pobre, foi construída em 1818
na Cale da Vila (actual Gafanha da Nazaré), com adobos de barro ou
misturado com conchas de berbigão ou de ostras ou felga (estes, eram
chamados adobos de palhão). Como os adobos não tivessem chegado para a
construção da torre sineira, não havia, portanto, sinos para o
chamamento dos fiéis, a fim de assistirem às cerimónias religiosas; daí
o ter havido necessidade de resolver o assunto, improvisando um SACRISTA
que de manhã e à noite, subindo as dunas, utilizasse lá do alto, o
chamado sino dos pobres, que consistia nos fortes sopros num enorme
búzio. Mas deixai que se transcreva, por histórico e poético, o texto
ditado pelo Rev.º P.e Resende:
...«Ao dealbar do dia ou à tarde ao mergulhar suave e
majestoso do sol, nas águas do Oceano, conforme a convocação se fizesse
para o Santo Sacrifício ou para as Orações da manhã ou da noite, um
repolhudo gafanhão, improvisado de sacrista, dirigia-se para o
templozinho cheio de misticismo, descalço, de cuecas a cair sobre a
rótula, cingidas pelo cós com um só botão às ancas espadaúdas. De
barrete pendente sobre a orelha, contas ao pescoço sobre a baeta da
camisa, e de gabão velho, esburacado, deixava fustigar pelo vento da
madrugada as canelas magras e nuas.
Este bom e anafado gafanhão, ia eu dizendo, assim
descrito, tal qual era na
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primitiva Gafanha, soprava desesperadamente num enorme búzio, cujos sons
cavos, profundos e compassados, iam quebrar-se de encontro às
cordilheiras solitárias das dunas ou espraiar-se pela "argentinea"
superfície do Oceano infindo.»
5.º) O TRÁFEGO ENTRE A LAGUNA, RIO VOUGA E SEUS AFLUENTES
ARRIBA
Naturalmente que, com o repovoamento da Ria, a
intensificação de embarcações através da laguna, desenvolveu-se um
tráfego não só bordejante, como de carácter mercantil constante e
intenso, permitindo a promoção de trocas e vendas de produtos agrícolas,
obrigando as populações a uma expansão negocial mais dilatada, com a sua
navegabilidade mais alargada na sua rede de vendas e consequentemente de
compras de géneros, que na sua lavra não existissem. Este comportamento
obrigou as gentes marinheiras a sair das margens da Ria e a
infiltrarem-se pelo Rio Vouga acima até Pessegueiro, derivando, também,
na foz do Rio Águeda, na Ponte da Rata, para montante, até ao Cais das
Laranjeiras, da já Vila de Águeda. Antes, porém, do mesmo modo, ao subir
o Rio Águeda, nos subúrbios de Requeixo rumavam, também, para o Rio
Cértima.
Os barqueiros de então, sabendo das necessidades mais
prementes das gentes do interior, carregavam os barcos, além e sobretudo
do peixe que era a sardinha e o chicharro, por vezes o berbigão e o
cristalino sal das marinhas que não vendiam só às regateiras do mercado
de Águeda, como saltavam do barco para venderem pelas ruas, ruelas e
carreiros. As mulheres apresentavam-se com a canastra e os homens com a
vara ao ombro suspendendo em cada extremidade um gigo. Obviamente que no
regresso como recovagem, carregavam tudo aquilo que necessitavam e que
as areias não produziam, como acendalhas que era a carqueja para acender
o lume na lareira e no fogão, a lenha-achas, o carvão, o vinho e seus
derivados, além de géneros que mercavam nos lugares do percurso, onde a
paragem era possível mas, com mais afluência, na praça e comércio de
Águeda. O certo é que a maior parte do carregamento do retorno
destinava-se a ser vendido não só nos povoados ribeirinhos, sem esquecer
as bandas da Murtosa, de onde a maior parte dos barcos e barqueiros eram
oriundos, e na própria vila/cidade de Aveiro.
Na via directa do Vouga, isto é, até Pessegueiro, daí
apenas vinha lenha, carvão e carqueja, cujos carregadoiros no rio
daquela paragem serrana quase sempre se processavam junto de agrestes
penhascos e pedregulhos.
O mesmo já não acontecia com os carregamentos no Cais das
Laranjeiras, em Águeda. A lenha – as chamadas achas – vinha das abas
serranas em carros antigos de bois, o carvão e a carqueja eram
transportados por almocreves que calcorreavam, descalços, ásperos e
longos caminhos serranos, trazendo para baixo aqueles carregamentos
sobre os seus burricos e por vezes também às costas e, no regresso para
cima, levavam a sardinha, o chicharro e o sal.
Ainda me lembro muito bem da "ti Maria Rosa" da serra e
lugar das Talhadas, que saindo de madrugada de sua casa, ainda bastante
escuro, em direcção a Aveiro, a pé, calcorreava caminhos ásperos através
de montes e vales durante cerca de 50 quilómetros – (100 Km ida e volta)
– para chegar a tempo de mercar a sardinha e o chicharro, e logo
regressar ajoujada com a canastra e o peixe, serra acima; ultimamente já
o seu transporte era feito às costas, pois que a sua coluna vergada pelo
peso da idade não permitia que a sua cabeça enrodilhada aguentasse a
carga que habitualmente transportava.
6.º) O INTERCÂMBIO MERCANTIL E CULTURAL
Ora, aqueles barqueiros e familiares que faziam do leito
do barco moliceiro ou mercantel e da proa a sua humilde habitação, onde
cozinhavam, lavavam, e dormiam, não transportavam somente sal, peixe,
lenha, carqueja e cascos de vinho, mas também da Borda d'Água levavam
como traziam parcelas de cultura diversificada, sobretudo danças e
cantigas e por que não outras tradições que ao tempo seriam o encanto e
o regalo dos nossos avoengos, nos serões, nos arraiais ou romarias, nas
sachas dos campos, nas eiras, nas esplanadas, nos terreiros ou nos adros
das igrejas, não esquecendo os melodiosos cânticos religiosos dessas
encantadoras paragens que essa humilde e honrada gente (os barqueiros)
assimilava desde a várzea à parte serrana da zona baixa do Caramulo.
Era todo o agregado que ajudava a barqueação do barco
através desses percursos por vezes cansativos e penosos, onde surgia
muitas vezes o desânimo, que seria suavizado pelo encanto e frescura de
frondosas árvores marginais e também pelas cristalinas e puras águas
doces dos rios, factos que infelizmente hoje já não se verificam.
Tempos saudosos, em que tudo era harmonia, melodia e
festa, onde até na exígua proa dos barcos se dançava, cantava e tocava
quando cruzavam as águas da Ria para as festas da Senhora da Saúde, na
Costa Nova do Prado; Senhora das Areias, em S. Jacinto; São Paio, na
Torreira... e muitas vezes subiam o Vouga
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para outras festividades, nomeadamente para a Senhora da Saúde, em
Fermentelos, Santos Mártires, em Travassô.
Mas não era só nos barcos que esgrimiam até ao último
fôlego das suas forças com as danças; a sua actuação também tinha lugar
em terra onde caldeavam coreografias do litoral salgado com as da várzea
e montanha, como se fossem filhos natos da região.
Razão tinha o Dr. Jaime de Magalhães Lima quando dizia
que o Baixo-Vouga, em consonância com a Ria, tinha uma veia-mãe em
Ílhavo e outra na Murtosa.
E era paralelamente, com o aumento do intercâmbio
mercantil, que crescia o intercâmbio cultural através do folclore entre
as gentes da marinha
–
mais notadas as das bandas da Murtosa - e os povos da várzea e da
montanha, que nos seus rastos deixavam nos ouvidos os sons agudos do
búzio anunciador do peixe, e levavam o sussurro das quedas de água do
Vouga, em Pessegueiro, e os melodiosos gemidos das noras do Rio Águeda.
Abril de 1993
Severim Marques
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DUAS COISAS NO MESMO SER
«Eu nasci em Aveiro,
ao que suponho na proa de alguma bateria. Fui baptizado à mesma
hora, nas águas da nossa Ria. Abriram-se-me os ouvidos ao som
cadencioso dos remos no mar, ao pio estrídulo das famintas
gaivotas, ao praguedo inocente dos pescadores. Encheu-se-me o
peito à nascença do ar salgado da maresia. S. Francisco de Assis
chamava a estas coisas irmãos, chamava a estas coisas irmãs: o
irmão Vouga, o irmão luar que à noite o prateia, os irmãos
peixes, as irmãs espumas, areias, estrelas.
Mas aqui há mais do que uma simples fraternidade, há mais do que
a suave harmonia da natureza e da alma de Aveiro; chego a crer
que há uma verdadeira encarnação, o encontro de duas coisas no
mesmo ser.
Nós, os de Aveiro,
somos feitos, dos pés à cabeça, de Ria, de barcos, de remos, de
redes, de velas, de montinhos de sal e areia, até de naufrágios.
Se nos abrissem o peito, encontrariam lá dentro um barquinho à
vela, ou então uma bóia ou fateixa, ou então a Senhora dos
Navegantes.
Assim plasmado de
Aveiro, com os beiços a saber a salgado, a pingar gotas da Ria
por todo o corpo, por toda a alma, (...) eu sou uma nesga,
embora minúscula, desta deliciosa aguarela de Aveiro; eu sou um
pedaço da nossa terra (...)»
D. João
Evangelista de Lima Vidal
In: "Correio do Vouga", 8-11-1952, pg. 1
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