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Boletim n.º 20-21 - Ano XI - 1993

A Procissão de Cinza em Aveiro

Descrição de andores e vida de santos

Mons. Aníbal Ramos

 

Aveiro deixou de ser uma cidade orgulhosa das procissões que realiza, embora estas vão diminuindo em número e esplendor.

D. João Evangelista pintou, em tela admirável, os homens da beira-mar na sua faina, «de ceroulas arregaçadas, de peito ao léu, cheios de escamas, gritando a todo o pulmão" e depois, na procissão, "irrepreensivelmente" bem postos, de fato preto, de calçado a luzir, de gravata branca e de luvas brancas, de opa de seda com cordão e borlas d'ouro.» (1)

Como é óbvio, há pormenores que variam, de procissão para procissão. Cada uma delas tem a sua própria identidade, as suas insígnias, as suas vestes, a sua cadência, o seu espírito.

Assim, a procissão dos Passos não se confunde com a de Cinza, nem a do Santíssimo Sacramento, no outrora designado Corpo de Deus, com a de Santa Joana, Princesa de Portugal e Padroeira de Aveiro.

Eduardo Cerqueira, observador atento e cronista-mor das gentes e terras de Aveiro, dizia-me certa ocasião que distinguia ao longe cada uma das procissões desta cidade pelo som cadenciado do compasso. E tinha razão.

A Procissão de Cinza era inconfundível pelo número e a imponência dos seus 13 andores, pelos hábitos escuros dos terceiros, pela figuração das cenas bíblicas, pelo grande itinerário que percorria, subindo a Avenida de Lourenço Peixinho e cortando para a Rua do Carmo, onde se impunha e cumpria uma estação para descanso dos pés fatigados e refresco das gargantas por demais sequiosas.

Com a decadência espiritual da Ordem Terceira de S. Francisco e a progressiva falta de irmãos, a Procissão começou a ter dificuldade em vir para a rua, sem perder a indispensável dignidade. Ultimamente, para que os andores pudessem ser levados aos ombros, os mesários viram-se na necessidade de recorrer aos soldados do Regimento de Infantaria N.º 10, vizinho da igreja de S. Francisco, onde se organizava e donde saía a Procissão. A devoção a S. Francisco e o amor à tradição não foram capazes de evitar o inevitável. Nestas circunstâncias, não chega a surpreender que a Mesa da Fraternidade da Ordem Terceira de S. Francisco, após séria reflexão sobre o modo como se vinha fazendo a Procissão nos últimos anos, tenha decidido suspender a realização deste acto litúrgico. (2) E a Procissão deixou de sair, com grande mágoa de todos, quer da cidade quer dos arredores, que na Quarta-Feira de Cinzas enchiam Aveiro de cor e movimento e lhe davam um certo ar penitencial que marcava efectivamente o fim do Carnaval e o início da Quaresma.

Nem tudo desapareceu, felizmente. Ainda há quem venha nesse dia a Aveiro, mesmo sem haver Procissão; ainda há quem evoque esse acontecimento religioso com saudade; ainda há até quem pense em restaurar a Procissão sem irmãos terceiros... ou mesmo com eles, após a restauração da Ordem Terceira.

Diziam os antigos romanos que as palavras voam e os escritos permanecem: verba volant, scripta manent.

Saiu a público em 1900, na Tipografia do "Campeão das Províncias", um precioso opúsculo intitulado A Procissão de Cinza em Aveiro. Segundo informação fidedigna, é da autoria de Marques Gomes e contém uma descrição completa da ordem da Procissão, incluindo, além disso, um resumo da vida dos santos de cada andor.

Posso testemunhar que esta narração poderia ser feita, sem mudar uma vírgula, em meados deste século ou mesmo depois, pois correspondia inteiramente à Procissão que era "imponente não só pelo merecimento artístico da maior parte das imagens que nela vão, como pela compostura com que se apresentam todos os irmãos", como afirmou o mesmo Marques Gomes nas suas Memórias de Aveiro. (3)

Ler Marques Gomes na reprodução que agora se oferece aos leitores, é ver desfilar diante de si essa interminável e impressionante Procissão de Cinza, onde a pregação maior se fazia através das imagens de grande porte, que calavam fundo no coração dos crentes e se impunham sem esforço à veneração de todos.

A. Ramos

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(1) – Lições da Natureza e dos Homens, Coimbra, F. França Amado, 1914, pp. 37-38.

(2) – "Correio do Vouga", 30 de Janeiro de 1970. A última Procissão realizou-se no dia 19 de Fevereiro de 1969.

(3) – Tipografia Comercial, Aveiro, 1875, p. 147.

 

 

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