A Procissão de Cinza em
Aveiro
Descrição de andores e vida
de santos
Mons. Aníbal Ramos
Aveiro deixou de ser uma
cidade orgulhosa das procissões que realiza, embora estas vão diminuindo
em número e esplendor.
D. João Evangelista pintou,
em tela admirável, os homens da beira-mar na sua faina, «de ceroulas
arregaçadas, de peito ao léu, cheios de escamas, gritando a todo o
pulmão" e depois, na procissão, "irrepreensivelmente" bem postos, de
fato preto, de calçado a luzir, de gravata branca e de
luvas brancas, de opa de seda com cordão e borlas d'ouro.»
(1)
Como é óbvio, há pormenores
que variam, de procissão para procissão. Cada uma delas tem a sua
própria identidade, as suas insígnias, as suas vestes, a sua cadência, o
seu espírito.
Assim, a procissão dos
Passos não se confunde com a de Cinza, nem a do Santíssimo Sacramento,
no outrora designado Corpo de Deus, com a de Santa Joana, Princesa de
Portugal e Padroeira de Aveiro.
Eduardo Cerqueira,
observador atento e cronista-mor das gentes e terras de Aveiro, dizia-me
certa ocasião que distinguia ao longe cada uma das procissões desta
cidade pelo som cadenciado do compasso. E tinha razão.
A Procissão de Cinza era
inconfundível pelo número e a imponência dos seus 13 andores, pelos
hábitos escuros dos terceiros, pela figuração das cenas bíblicas, pelo
grande itinerário que percorria, subindo a Avenida de Lourenço Peixinho
e cortando para a Rua do Carmo, onde se impunha e cumpria uma estação
para descanso dos pés fatigados e refresco das gargantas por demais
sequiosas.
Com a decadência espiritual
da Ordem Terceira de S. Francisco e a progressiva falta de irmãos, a
Procissão começou a ter dificuldade em vir para a rua, sem perder a
indispensável dignidade. Ultimamente, para que os andores pudessem ser
levados aos ombros, os mesários viram-se na necessidade de recorrer aos
soldados do Regimento de Infantaria N.º 10, vizinho da igreja de S.
Francisco, onde se organizava e donde saía a Procissão. A devoção a S.
Francisco e o amor à tradição não foram capazes de evitar o inevitável.
Nestas circunstâncias, não chega a surpreender que a Mesa da
Fraternidade da Ordem Terceira de S. Francisco, após séria reflexão
sobre o modo como se vinha fazendo a Procissão nos
últimos anos, tenha decidido suspender a realização deste acto
litúrgico. (2) E
a Procissão deixou de sair, com grande mágoa de todos, quer da cidade
quer dos arredores, que na Quarta-Feira de Cinzas enchiam Aveiro de cor
e movimento e lhe davam um certo ar penitencial que marcava
efectivamente o fim do Carnaval e o início da Quaresma.
Nem tudo desapareceu,
felizmente. Ainda há quem venha nesse dia a Aveiro, mesmo sem haver
Procissão; ainda há quem evoque esse acontecimento religioso com
saudade; ainda há até quem pense em restaurar a Procissão sem irmãos
terceiros... ou mesmo com eles, após a restauração da Ordem Terceira.
Diziam os antigos romanos
que as palavras voam e os escritos permanecem: verba volant, scripta
manent.
Saiu a público em 1900, na
Tipografia do "Campeão das Províncias", um precioso opúsculo intitulado
A Procissão de Cinza em Aveiro. Segundo informação fidedigna, é da
autoria de Marques Gomes e contém uma descrição completa da ordem da
Procissão, incluindo, além disso, um resumo da vida dos santos de cada
andor.
Posso testemunhar que esta
narração poderia ser feita, sem mudar uma vírgula, em meados deste
século ou mesmo depois, pois correspondia inteiramente à Procissão que
era "imponente não só pelo merecimento artístico da maior parte das
imagens que nela vão, como pela compostura com que se apresentam todos
os irmãos", como afirmou o mesmo Marques Gomes nas suas
Memórias de Aveiro. (3)
Ler Marques Gomes na
reprodução que agora se oferece aos leitores, é ver desfilar diante de
si essa interminável e impressionante Procissão de Cinza, onde a
pregação maior se fazia através das imagens de grande porte, que calavam
fundo no coração dos crentes e se impunham sem esforço à veneração de
todos.
A. Ramos
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(1) – Lições da
Natureza e dos Homens, Coimbra, F. França Amado, 1914, pp. 37-38.
(2) – "Correio do
Vouga", 30 de Janeiro de 1970. A última Procissão realizou-se no dia 19
de Fevereiro de 1969.
(3) – Tipografia
Comercial, Aveiro, 1875, p. 147.
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