"O AMERICANO"
Fausto de Matos Melo
Ferreira
(À minha mulher Rosa Pinheiro
Ferreira)
Sabem o que foi "O AMERICANO"?
Todos falam dele, houve uma rua com este nome (a actual
Rua do Comandante Rocha e Cunha) mas, presentemente, poucos são os
leitores que saberão explicar o que foi!...
Vou procurar esclarecer o assunto:
Em 30 de Outubro de 1873 o Presidente da Câmara de
Aveiro, Agostinho Duarte Pinheiro e Silva, em sessão camarária desta
data, apresentou um requerimento do eng.º Silvério Augusto Pereira da
Silva, residente nesta cidade, no qual «sollicita licença para construir
e explorar um caminho americano – Tramway – entre a Estação do Caminho
de Ferro e o Caes desta cidade que deverá seguir pelo ramal entre esta e
o Convento de Sá, continuando pelas ruas da cidade que conduzem ao cães»
(hoje Praça do Dr. Joaquim de Melo Freitas).
A Câmara resolveu que o requerimento fosse remetido ao
Governador Civil do Distrito a fim de a Repartição de Engenharia
Distrital se pronunciar sobre o assunto.
Em reunião camarária, que se efectuava "no dia de quinta
feira de cada semana ou no dia imediato se por ventura o dia de quinta
feira for santificado", de 15 de Janeiro de 1874, foi presente novo
pedido mas desta vez de João Tavares Avelim, proprietário, desta cidade.
Este último declarava desejar montar uma linha férrea
pelo sistema americano (Tramway), de uma só via, de cerca de 1.500
metros, que partindo do Cojo, iria à Estação do Caminho de Ferro, sendo
todas as despesas de montagem e de exploração por conta do requerente.
A edilidade deliberou que este também carecia do parecer
da Repartição de Engenharia Distrital, para o que o remete ao Governador
Civil.
Em 5 de Fevereiro do mesmo ano foi presente, à sessão de
Câmara, o parecer favorável daquela Repartição de Engenharia, pelos
ofícios de 23 e 31 de Janeiro último, dos requerimentos apresentados
"cada um por si", de Silvério Augusto Pereira da Silva e de João Tavares
Avelim, que é do seguinte teor:
"Illm.º Snr.
Em resposta ao officio de V. S.ª n.º 356 que acompanhava
um requerimento de Silverio Augusto Pereira da Silva, engenheiro,
sollicitando licença para assentar um caminho de ferro pelo sistema
americano ("Tramway") entre o Caes da cidade e a estação da linha ferrea,
a fim de se poder resolver não só a questão do caminho de ferro
americano, como outras de maximo interesse para o municipio e para a
Cidade, como V. S.ª sabe, cumpre-me dizer a V. .ª que attentas as
excellentes condições da nova via a construir e que levando em
consideração o futuro da Cidade, a salubridade e a segurança publica, o
engenheiro distrital é de parecer:
1.º - Que attenta a importancia de um tão útil
melhoramento deve a Camara da sua presidencia conceder a licença
requerida, com a clausula de que o estabelecimento do caminho de ferro
ha de ser feito sobre empedrado da nova rua a construir desde a praça,
pelo Cojo, ArneIlas, até à estação e nunca pelas ruas actuais do centro
da Cidade, das quaes algumas são tão estreitas que mal comportam a
passagem d'um trem ordinario;
2.º - Que o concessionario deve concorrer com alguma
verba para a expropriação da casa junta ao chafariz da praça não só
porque no caso de uma desvantajosa concessão pelo interior da Cidade,
como pretende, era obrigado a expropriações avultadissimas como porque
pela nova rua obtem um encurtamento e um mais livre transito;
3.º - Que no caso de que o requerente aceite a concessão
provisoria nos termos d'estas condições deve dar parte à Camara, da
aceitação no praso de trinta dias para serem formuladas por esta
repartição as condições da concessão definitiva relativas tanto á
construção como á Camara, da aceitação no praso de trinta dias para
serem formuladas por esta repartição as condições da concessão
definitiva relativas tanto á construção como á exploração.
Devolvo portanto o requerimento para que obtenha o
despacho de que for digno.
Deus Guarde a V. S.ª
Aveiro, 23 de Janeiro de 1874.
O Governador Civil, Manuel Jose Mendes Leite.
ILLmº Snr. Presidente da Camara d'Aveiro".
Ponderadas as razões apresentadas e reconhecendo a Câmara
que seria um importante melhoramento para a cidade, acordou entregar a
concessão, provisoriamente, a Silvério Augusto Pereira da Silva, por ter
sido o primeiro a requerer, desde que o mesmo respeite as condições
apresentadas por aquela Repartição de Engenharia e no pagamento da
expropriação efectuada no prédio situado entre as duas pontes (Pontes
dos Arcos e das Almas ou do Côjo e hoje Ponte Praça) pertencente a D.
Margarida Angélica Henriques de Carvalho.
Também foi resolvido que fosse feito um levantamento do
percurso entre a praça do Comércio (Praça Dr. Joaquim de Melo Freitas)
até à Estação do Caminho de Ferro do Norte, com um ramal para a Fonte
Nova.
Em sessão de 20 de Abril de 1874, presidida por Agostinho
Duarte Pinheiro e Silva, foram apresentadas, pela Repartição de
Engenharia Distrital, as seguintes condições para a concessão do caminho
de ferro americano da Praça do Comércio à Estação do Caminho de Ferro do
Norte.
SOBRE A GARANTIA DO CONTRACTO
1.º - Para garantia do perfeito cumprimento das
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presentes condições depositará a concessionaria no cofre do Municipio
dentro de noventa dias, a contar da data da concessão, em dinheiro ou
inscripções do Governo, cota das pelo valor do mercado, a quantia de
duzentos mil reis ou prestará um fiador idoneo que fique responsável
para com a Camara por aquella quantia.
2.º - Depois de approvada e aberta á exploração toda a
linha com o seu material fixo e circulante completos, poderá o
concessionario levantar os depositos dos duzentos mil rds ou a fiança
prestada, ficando considerado como deposito todo o material fixo e
circulante para garantia das condições gerais do contracto,
principalmente das que dizem respeito aos concertos das ruas e estradas.
SOBRE EXPROPRIAÇÕES
3.º - Fica obrigado o concessionario a fazer as
expropriações indispensaveis para o estabelecimento de estações ou
dependencias da via no caso de que julgue isso necessario.
4.º - Os terrenos necessarios para tal fim serão
expropriados por utilidade publica em virtude do Decreto de 11 de Maio
de 1872 e mais legislação vigente.
SOBRE O PROJECTO DA DIRECTRIZ
5.º - O eixo do traçado será estudado pela direita da
estrada indo da Praça para a Estação do Caminho de Ferro, não sendo
permitido de modo algum cortar a estrada.
6.º - Este eixo do traçado, alem de ser parallelo aos
alinhamentos e curvas do empedrado da estrada, seguirá sempre os
traineis e planos das ruas e estradas por onde passar.
7.º - Ficam exceptuadas das condições 6ª as curvas
occasionadas pela necessidade de assentamento de linhas de desvio.
8.º - O projecto que tem de ser approvado pela Camara
mediante informação da Repartição Distrital, deverá constar das
seguintes peças desenhadas:
Planta Geral
Perfil longitudinal
Perfis transversais nos pontos em que convierem linhas de
desvio.
SOBRE O MATERIAL FIXO
9.º - O typo de carris será de bom systema e ferro de boa
qualidade.
Só serão admittidos carris em perfeito estado de
conservação com as dimensões peculiares a estas peças.
O seu assento será feito de modo que não apresentem
deformações nem disjunções que prejudiquem tanto a viação ordinaria da
estrada, como a do caminho americano.
10.º - Seja qual for o systema adoptado na fixação dos
carris ao pavimento da estrada, nunca os espaços da prisão poderão
exceder um metro.
11.º - As agulhas nas linhas de desvio, além de serem
construidas com toda a solidez e de modo que garantam toda a facilidade
na mudança rápida da linha, deverão ser colocadas em pontos onde não
embaracem o transito ordinario.
12.º - As curvas serão traçadas com a máxima perfeição,
devendo o carril do lado da Curva de maior raio ficar alguns milimetros
mais elevado que o seu parallelo.
13.º - A faxa, fora e dentro dos carris, será
macadamisada com uma camada de pedra britada de 0,20m. de espessura.
Na medição da espessura do empedrado será incluido o
material da fixação.
14.º - As estações, quando necessarias, serão collocadas
em locaes aprovados pela Camara e onde não embaracem o transito publico,
nem tão pouco prejudiquem o embellesamento desses pontos quer no
presente quer no futuro.
15.º - No caso de serem necessarias deverão as estações
ser construidas com solidez, elegancia e segurança apresentando os
commodos indespensáveis para prehencherem o seu fim.
16-º - Os carris serão assentes ao nivel da estrada sem
saliencia nem depressão, excepto nos casos previstos na condição 12.ª no
lado direito do empedrado indo para a Estação do Caminho de Ferro, por
forma que não embaracem o transito de passagem e de vehiculos ordinarios.
17.º - O projecto do material fixo que tem de ser
approvado pela Camara mediante informação da Repartição Distrital,
deverá constar das seguintes peças desenhadas:
Uma secção cotada de cada travessa, cubo de pedra
d'esphalto, betom ou material que empregar para a fixação ao pavimento
dos carris.
Uma secção do carril empregado com a designação do seu
comprimento e peso por metro corrente.
Plantas, alçados e cortes das estações (quando
necessárias).
Planta de uma agulha com a designação do systema
empregado.
SOBRE O MATERIAL CIRCULANTE
18.º - As carruagens serão dos melhores modelos suspensas
sobre molas e devidamente resguardadas.
Estas carruagens terão a numeração da ordem e a
designação do numero de passageiros que comportam. Esta lotação será
determinada pela Câmara e pelo Administrador do Concelho.
19.º - Os carros para os transportes de materiais serão
solidamente construidos, assentes sobre molas, e não poderão occupar
transversalmente uma largura superior á das carruagens.
Alem disso serão perfeitamente vedadas de modo que no
transporte de sal não deixem cair sobre o pavimento da estrada a minima
porção deste produto.
SOBRE OS ENCARGOS DO CONCESSIONÁRIO
20.º - O concessionario não tem direito a indeminisação
alguma nem pelos prejuizos que na via férrea
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produsir o transito ordinario, nem pelos que o estado da estrada possa
causar na linha, nem pela abertura de novas vias de communicação, nem
portrastornos ou interrupção de serviço motivada por medidas temporarias
de ordem de policia, ou por trabalhos executados na via publica pelo
Governo, pela Municipalidade, ou por empresas ou parti-culares
legalmente autorizados, nem finalmente por qual-quer causa resultante do
livre uso da estrada.
21.º - A Camara mandará fiscalisar, por intermedio da
engenharia distrital, não só os trabalhos do assentamento dos carris da
linha e suas dependencias, como a propria exploração.
22.º - Durante a execução das diffenrentes obras da linha
ferrea o concessionario tomará todas as precauções para não serem
prejudicadas a liberdade e segurança do transito publico.
23.º - São applicadas ao concessionario as leis,
regulamentos do Governo, e os acordãos municipaes em vigor ou que de
futuro se promulguem quer sobre viação publica quer sobre policia,
higiene ou segurança publica.
24.º - Fica o concessionario obrigado ao prejuízo que
causar nas ruas e estrada municipal não só durante a construção como
durante a exploração.
25.º - É dado ao concessionario a contar da data da
concessão, o praso de tres meses para apresentar os projectos
mencionados n'estas condições.
26.º - Depois de approvados pela Camara todos os
projectos e a contar da data da approvação dará o concessionario, dentro
do praso de seis meses, principio ao assentamento dos carris.
27.º - É marcado o praso de dez mezes a contar do dia em
que der principio para a total construção da linha férrea e suas
dependencias desde a Praça do Comércio até á Estação do Caminho de Ferro
do Norte.
28.º - No caso da falta de execução destas condições
perderá o concessionario direito ao respectivo deposito mencionado na
condição 11.
Ficam porem salvos os casos de força maior.
29.º - O concessionario não pode obstar a que pela Camara
sejam feitas concessões d'outras quaesquer vias ferreas americanas ou
d'outro qualquer systema para qualquer parte da Cidade ou para fora
d'ella se as necessidades futuras ou conveniencias publicas, assim o
exigirem, uma vez que as directrizes d'essas novas concessões não tenhão
nada de comum com a actual.
30.º - As duvidas suscitadas entre o concessionario e a
Camara sobre circunstancias imprevistas n'estas condições serão
resolvidas por peritos em igual numero de parte a parte.
31.º - Quando se dê o caso de empate serão essas duvidas
resolvidas nos tribunais administrativos segundo o processo ordinario
marcado na lei.
32.º - O movimento das carruagens e dos carros será
sempre compativel com o movimento de passageiros e de materiais.
33.º - O horario e tabella de preços em qualquer epoca
ficam a arbitrio do concessionário mas não serão postos vigor sem
approvação da Camara.
34.º - Depois de approvado o horario e tabella de preços
propostos pelo concessionario, fica na obrigação de faser cumprir por si
ou por empregados sob pena de ficar sujeito ás consequencias da
transgressão.
ENCARGOS DA CAMARA
35.º - Para a expropriação de terrenos necessários para
as dependencias da linha apenas a Câmara requisitará o Decreto de
expropriação por utilidade publica, ficando a cargo do concessionario
toda e qualquer despesa resultante da expropriação.
36.º - A Camara considerando o caminho de ferro como via
publica fará applicar aos transgressores de posturas municipaes e aos
malfeitores da linha ferrea as penas impostas pelos acordãos municipaes.
37.º - A Camara obriga-se a construir o lanço de estrada
municipal da Praça á Estação dentro do praso de dez mezes a contar do
dia da concessão.
Se porem por circunstâncias imprevistas a Camara não
puder concluir o lanço n'esta epoca de tempo será
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concedido ao concessionario novo praso compativel com a duração da obra.
38.º - A Camara permitte ao concessionario licença para
simultaneamente assentar carris e mais dependencias durante a construção
do lanço de estrada, mas de modo algum pode permitir que seja embaraçada
a construção por motivo do caminho americano.
DIREITOS DA CAMARA
39.º - A Camara, alem dos direitos conferidos por estas
condi9Óes, mandará fiscalisar a construção e exam-nar os materiaes a
empregar, suas dimensões e natureza, e empregará os meios que a lei lhe
faculta para que a segurança publica não seja compromettida.
40.º - A Camara reserva para si o direito de poder mandar
desviar a linha ou marcar-lhe outra directriz dentro da Cidade no caso
de grandes melhoramentos, quer elles consistam na abertura de novas ruas
ou novos alinhamentos das actuais, quer na formação de novas praças,
jardins, etc..
41.º - Finalmente, são estas condições consideradas como
supplementares ás condições exaradas no offício n.º 663 enviado á Camara
d'Aveiro por esta Repartição com data de 23 de Janeiro do anno corrente
e assignatura do Exm.º Governador Civil d'este Distrito.
Aveiro, 10 d'Abril de 1874.
O 1.º Engenheiro, Antonio Ferreira d'Araujo e Silva.
A Câmara concordou com as condições apresentadas e
ratificou, por escritura pública, a concessão feita a Silvério Augusto
Pereira da Silva.
Em sessão de 9 de Junho de 1874 foi lido, pelo
Presidente, um ofício daquele Concessionário, com data de 4 do mesmo mês
e ano, no qual declara que havia feito o trespasse da concessão da linha
do caminho de ferro americano – "Tramway" – a Agostinho Francisco Velho,
Manuel Justino d'Azevedo, Henrique Carlos Meirelles Kendall e
Maximiliano Scherech, residentes no Porto, conforme escritura de cessão
e quitação lançada no livro de Notas do tabelião Thomaz Megre Restier em
25 de Abril de 1874.
A Câmara resolve aprovar o trespasse.
E assim ficámos sem "O AMERICANO"!...
Fausto Ferreira
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