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Boletim n.º 15-16 - Ano VIII - 1990

"O AMERICANO"

Fausto de Matos Melo Ferreira

(À minha mulher Rosa Pinheiro Ferreira)

 

Sabem o que foi "O AMERICANO"?

Todos falam dele, houve uma rua com este nome (a actual Rua do Comandante Rocha e Cunha) mas, presentemente, poucos são os leitores que saberão explicar o que foi!...

Vou procurar esclarecer o assunto:

Em 30 de Outubro de 1873 o Presidente da Câmara de Aveiro, Agostinho Duarte Pinheiro e Silva, em sessão camarária desta data, apresentou um requerimento do eng.º Silvério Augusto Pereira da Silva, residente nesta cidade, no qual «sollicita licença para construir e explorar um caminho americano – Tramway – entre a Estação do Caminho de Ferro e o Caes desta cidade que deverá seguir pelo ramal entre esta e o Convento de Sá, continuando pelas ruas da cidade que conduzem ao cães» (hoje Praça do Dr. Joaquim de Melo Freitas).

A Câmara resolveu que o requerimento fosse remetido ao Governador Civil do Distrito a fim de a Repartição de Engenharia Distrital se pronunciar sobre o assunto.

Em reunião camarária, que se efectuava "no dia de quinta feira de cada semana ou no dia imediato se por ventura o dia de quinta feira for santificado", de 15 de Janeiro de 1874, foi presente novo pedido mas desta vez de João Tavares Avelim, proprietário, desta cidade.

Este último declarava desejar montar uma linha férrea pelo sistema americano (Tramway), de uma só via, de cerca de 1.500 metros, que partindo do Cojo, iria à Estação do Caminho de Ferro, sendo todas as despesas de montagem e de exploração por conta do requerente.

A edilidade deliberou que este também carecia do parecer da Repartição de Engenharia Distrital, para o que o remete ao Governador Civil.

Em 5 de Fevereiro do mesmo ano foi presente, à sessão de Câmara, o parecer favorável daquela Repartição de Engenharia, pelos ofícios de 23 e 31 de Janeiro último, dos requerimentos apresentados "cada um por si", de Silvério Augusto Pereira da Silva e de João Tavares Avelim, que é do seguinte teor:

"Illm.º Snr.

Em resposta ao officio de V. S.ª n.º 356 que acompanhava um requerimento de Silverio Augusto Pereira da Silva, engenheiro, sollicitando licença para assentar um caminho de ferro pelo sistema americano ("Tramway") entre o Caes da cidade e a estação da linha ferrea, a fim de se poder resolver não só a questão do caminho de ferro americano, como outras de maximo interesse para o municipio e para a Cidade, como V. S.ª sabe, cumpre-me dizer a V. .ª que attentas as excellentes condições da nova via a construir e que levando em consideração o futuro da Cidade, a salubridade e a segurança publica, o engenheiro distrital é de parecer:

1.º - Que attenta a importancia de um tão útil melhoramento deve a Camara da sua presidencia conceder a licença requerida, com a clausula de que o estabelecimento do caminho de ferro ha de ser feito sobre empedrado da nova rua a construir desde a praça, pelo Cojo, ArneIlas, até à estação e nunca pelas ruas actuais do centro da Cidade, das quaes algumas são tão estreitas que mal comportam a passagem d'um trem ordinario;

2.º - Que o concessionario deve concorrer com alguma verba para a expropriação da casa junta ao chafariz da praça não só porque no caso de uma desvantajosa concessão pelo interior da Cidade, como pretende, era obrigado a expropriações avultadissimas como porque pela nova rua obtem um encurtamento e um mais livre transito;

3.º - Que no caso de que o requerente aceite a concessão provisoria nos termos d'estas condições deve dar parte à Camara, da aceitação no praso de trinta dias para serem formuladas por esta repartição as condições da concessão definitiva relativas tanto á construção como á Camara, da aceitação no praso de trinta dias para serem formuladas por esta repartição as condições da concessão definitiva relativas tanto á construção como á exploração.

Devolvo portanto o requerimento para que obtenha o despacho de que for digno.

Deus Guarde a V. S.ª

Aveiro, 23 de Janeiro de 1874.

O Governador Civil, Manuel Jose Mendes Leite.

ILLmº Snr. Presidente da Camara d'Aveiro".

 

Ponderadas as razões apresentadas e reconhecendo a Câmara que seria um importante melhoramento para a cidade, acordou entregar a concessão, provisoriamente, a Silvério Augusto Pereira da Silva, por ter sido o primeiro a requerer, desde que o mesmo respeite as condições apresentadas por aquela Repartição de Engenharia e no pagamento da expropriação efectuada no prédio situado entre as duas pontes (Pontes dos Arcos e das Almas ou do Côjo e hoje Ponte Praça) pertencente a D. Margarida Angélica Henriques de Carvalho.

Também foi resolvido que fosse feito um levantamento do percurso entre a praça do Comércio (Praça Dr. Joaquim de Melo Freitas) até à Estação do Caminho de Ferro do Norte, com um ramal para a Fonte Nova.

Em sessão de 20 de Abril de 1874, presidida por Agostinho Duarte Pinheiro e Silva, foram apresentadas, pela Repartição de Engenharia Distrital, as seguintes condições para a concessão do caminho de ferro americano da Praça do Comércio à Estação do Caminho de Ferro do Norte.

 

SOBRE A GARANTIA DO CONTRACTO

1.º - Para garantia do perfeito cumprimento das / 50 / presentes condições depositará a concessionaria no cofre do Municipio dentro de noventa dias, a contar da data da concessão, em dinheiro ou inscripções do Governo, cota das pelo valor do mercado, a quantia de duzentos mil reis ou prestará um fiador idoneo que fique responsável para com a Camara por aquella quantia.

2.º - Depois de approvada e aberta á exploração toda a linha com o seu material fixo e circulante completos, poderá o concessionario levantar os depositos dos duzentos mil rds ou a fiança prestada, ficando considerado como deposito todo o material fixo e circulante para garantia das condições gerais do contracto, principalmente das que dizem respeito aos concertos das ruas e estradas.

 

SOBRE EXPROPRIAÇÕES

3.º - Fica obrigado o concessionario a fazer as expropriações indispensaveis para o estabelecimento de estações ou dependencias da via no caso de que julgue isso necessario.

4.º - Os terrenos necessarios para tal fim serão expropriados por utilidade publica em virtude do Decreto de 11 de Maio de 1872 e mais legislação vigente.

 

SOBRE O PROJECTO DA DIRECTRIZ

5.º - O eixo do traçado será estudado pela direita da estrada indo da Praça para a Estação do Caminho de Ferro, não sendo permitido de modo algum cortar a estrada.

6.º - Este eixo do traçado, alem de ser parallelo aos alinhamentos e curvas do empedrado da estrada, seguirá sempre os traineis e planos das ruas e estradas por onde passar.

7.º - Ficam exceptuadas das condições 6ª as curvas occasionadas pela necessidade de assentamento de linhas de desvio.

8.º - O projecto que tem de ser approvado pela Camara mediante informação da Repartição Distrital, deverá constar das seguintes peças desenhadas:

Planta Geral

Perfil longitudinal

Perfis transversais nos pontos em que convierem linhas de desvio.

 

SOBRE O MATERIAL FIXO

9.º - O typo de carris será de bom systema e ferro de boa qualidade.

Só serão admittidos carris em perfeito estado de conservação com as dimensões peculiares a estas peças.

O seu assento será feito de modo que não apresentem deformações nem disjunções que prejudiquem tanto a viação ordinaria da estrada, como a do caminho americano.

10.º - Seja qual for o systema adoptado na fixação dos carris ao pavimento da estrada, nunca os espaços da prisão poderão exceder um metro.

11.º - As agulhas nas linhas de desvio, além de serem construidas com toda a solidez e de modo que garantam toda a facilidade na mudança rápida da linha, deverão ser colocadas em pontos onde não embaracem o transito ordinario.

12.º - As curvas serão traçadas com a máxima perfeição, devendo o carril do lado da Curva de maior raio ficar alguns milimetros mais elevado que o seu parallelo.

13.º - A faxa, fora e dentro dos carris, será macadamisada com uma camada de pedra britada de 0,20m. de espessura.

Na medição da espessura do empedrado será incluido o material da fixação.

14.º - As estações, quando necessarias, serão collocadas em locaes aprovados pela Camara e onde não embaracem o transito publico, nem tão pouco prejudiquem o embellesamento desses pontos quer no presente quer no futuro.

15.º - No caso de serem necessarias deverão as estações ser construidas com solidez, elegancia e segurança apresentando os commodos indespensáveis para prehencherem o seu fim.

16-º - Os carris serão assentes ao nivel da estrada sem saliencia nem depressão, excepto nos casos previstos na condição 12.ª no lado direito do empedrado indo para a Estação do Caminho de Ferro, por forma que não embaracem o transito de passagem e de vehiculos ordinarios.

17.º - O projecto do material fixo que tem de ser approvado pela Camara mediante informação da Repartição Distrital, deverá constar das seguintes peças desenhadas:

Uma secção cotada de cada travessa, cubo de pedra d'esphalto, betom ou material que empregar para a fixação ao pavimento dos carris.

Uma secção do carril empregado com a designação do seu comprimento e peso por metro corrente.

Plantas, alçados e cortes das estações (quando necessárias).

Planta de uma agulha com a designação do systema empregado.

 

SOBRE O MATERIAL CIRCULANTE

18.º - As carruagens serão dos melhores modelos suspensas sobre molas e devidamente resguardadas.

Estas carruagens terão a numeração da ordem e a designação do numero de passageiros que comportam. Esta lotação será determinada pela Câmara e pelo Administrador do Concelho.

19.º - Os carros para os transportes de materiais serão solidamente construidos, assentes sobre molas, e não poderão occupar transversalmente uma largura superior á das carruagens.

Alem disso serão perfeitamente vedadas de modo que no transporte de sal não deixem cair sobre o pavimento da estrada a minima porção deste produto.

 

SOBRE OS ENCARGOS DO CONCESSIONÁRIO

20.º - O concessionario não tem direito a indeminisação alguma nem pelos prejuizos que na via férrea / 51 / produsir o transito ordinario, nem pelos que o estado da estrada possa causar na linha, nem pela abertura de novas vias de communicação, nem portrastornos ou interrupção de serviço motivada por medidas temporarias de ordem de policia, ou por trabalhos executados na via publica pelo Governo, pela Municipalidade, ou por empresas ou parti-culares legalmente autorizados, nem finalmente por qual-quer causa resultante do livre uso da estrada.

21.º - A Camara mandará fiscalisar, por intermedio da engenharia distrital, não só os trabalhos do assentamento dos carris da linha e suas dependencias, como a propria exploração.

22.º - Durante a execução das diffenrentes obras da linha ferrea o concessionario tomará todas as precauções para não serem prejudicadas a liberdade e segurança do transito publico.

23.º - São applicadas ao concessionario as leis, regulamentos do Governo, e os acordãos municipaes em vigor ou que de futuro se promulguem quer sobre viação publica quer sobre policia, higiene ou segurança publica.

24.º - Fica o concessionario obrigado ao prejuízo que causar nas ruas e estrada municipal não só durante a construção como durante a exploração.

25.º - É dado ao concessionario a contar da data da concessão, o praso de tres meses para apresentar os projectos mencionados n'estas condições.

26.º - Depois de approvados pela Camara todos os projectos e a contar da data da approvação dará o concessionario, dentro do praso de seis meses, principio ao assentamento dos carris.

27.º - É marcado o praso de dez mezes a contar do dia em que der principio para a total construção da linha férrea e suas dependencias desde a Praça do Comércio até á Estação do Caminho de Ferro do Norte.

28.º - No caso da falta de execução destas condições perderá o concessionario direito ao respectivo deposito mencionado na condição 11.

Ficam porem salvos os casos de força maior.

29.º - O concessionario não pode obstar a que pela Camara sejam feitas concessões d'outras quaesquer vias ferreas americanas ou d'outro qualquer systema para qualquer parte da Cidade ou para fora d'ella se as necessidades futuras ou conveniencias publicas, assim o exigirem, uma vez que as directrizes d'essas novas concessões não tenhão nada de comum com a actual.

30.º - As duvidas suscitadas entre o concessionario e a Camara sobre circunstancias imprevistas n'estas condições serão resolvidas por peritos em igual numero de parte a parte.

31.º - Quando se dê o caso de empate serão essas duvidas resolvidas nos tribunais administrativos segundo o processo ordinario marcado na lei.

32.º - O movimento das carruagens e dos carros será sempre compativel com o movimento de passageiros e de materiais.

33.º - O horario e tabella de preços em qualquer epoca ficam a arbitrio do concessionário mas não serão postos vigor sem approvação da Camara.

34.º - Depois de approvado o horario e tabella de preços propostos pelo concessionario, fica na obrigação de faser cumprir por si ou por empregados sob pena de ficar sujeito ás consequencias da transgressão.

ENCARGOS DA CAMARA

35.º - Para a expropriação de terrenos necessários para as dependencias da linha apenas a Câmara requisitará o Decreto de expropriação por utilidade publica, ficando a cargo do concessionario toda e qualquer despesa resultante da expropriação.

36.º - A Camara considerando o caminho de ferro como via publica fará applicar aos transgressores de posturas municipaes e aos malfeitores da linha ferrea as penas impostas pelos acordãos municipaes.

37.º - A Camara obriga-se a construir o lanço de estrada municipal da Praça á Estação dentro do praso de dez mezes a contar do dia da concessão.

Se porem por circunstâncias imprevistas a Camara não puder concluir o lanço n'esta epoca de tempo será / 52 / concedido ao concessionario novo praso compativel com a duração da obra.

38.º - A Camara permitte ao concessionario licença para simultaneamente assentar carris e mais dependencias durante a construção do lanço de estrada, mas de modo algum pode permitir que seja embaraçada a construção por motivo do caminho americano.

 

DIREITOS DA CAMARA

39.º - A Camara, alem dos direitos conferidos por estas condi9Óes, mandará fiscalisar a construção e exam-nar os materiaes a empregar, suas dimensões e natureza, e empregará os meios que a lei lhe faculta para que a segurança publica não seja compromettida.

40.º - A Camara reserva para si o direito de poder mandar desviar a linha ou marcar-lhe outra directriz dentro da Cidade no caso de grandes melhoramentos, quer elles consistam na abertura de novas ruas ou novos alinhamentos das actuais, quer na formação de novas praças, jardins, etc..

41.º - Finalmente, são estas condições consideradas como supplementares ás condições exaradas no offício n.º 663 enviado á Camara d'Aveiro por esta Repartição com data de 23 de Janeiro do anno corrente e assignatura do Exm.º Governador Civil d'este Distrito.

Aveiro, 10 d'Abril de 1874.

O 1.º Engenheiro, Antonio Ferreira d'Araujo e Silva.

 

A Câmara concordou com as condições apresentadas e ratificou, por escritura pública, a concessão feita a Silvério Augusto Pereira da Silva.

Em sessão de 9 de Junho de 1874 foi lido, pelo Presidente, um ofício daquele Concessionário, com data de 4 do mesmo mês e ano, no qual declara que havia feito o trespasse da concessão da linha do caminho de ferro americano – "Tramway" – a Agostinho Francisco Velho, Manuel Justino d'Azevedo, Henrique Carlos Meirelles Kendall e Maximiliano Scherech, residentes no Porto, conforme escritura de cessão e quitação lançada no livro de Notas do tabelião Thomaz Megre Restier em 25 de Abril de 1874.

A Câmara resolve aprovar o trespasse.

E assim ficámos sem "O AMERICANO"!...

Fausto Ferreira


 

 

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