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Boletim n.º 10 - Ano V - 1987

Prémio literário José Estêvão

 

A semelhança dos dois últimos anos, o Conselho Directivo da Escola Secundária José Estêvão, de Aveiro, promoveu em 1987 o 3. º Prémio Literário José Estêvão, com a finalidade de homenagear o patrono da Escola. Mais uma vez apoiaram a iniciativa não apenas o Governo Civil mas também a Câmara Municipal de Aveiro.

Concorreram ao referido Prémio alunos das Escolas Secundárias de Aveiro e ainda estudantes do ensino médio e superior, residentes em Aveiro e que frequentavam qualquer estabelecimento daqueles graus de ensino, no País.

Foi proposto o tema «Aveiro e a Tradição»; todavia, poderiam ser apresentados trabalhos subordinados a outros assuntos, mas sempre relacionados com a cidade de Aveiro.

Publicamos um dos textos classificados – uma poesia com o título «AVEIRO – Terras, Gentes e Tradições» – que o autor, no concurso, subscreveu com o pseudónimo Labor vincit aerumnas.

 

AVEIRO – TERRAS, GENTES E TRADIÇÕES

 

I – TERRAS

Aveiro

Era uma vez uma terra

Chamada AVEIRO, a formosa;

Bela princesa que encerra

Sua origem misteriosa

Em berço de Talavarium

(Zona d'água pantanosa)

Também chamado Alavarium

(Sítio de terra argilosa).

 

AVEIRO não é só cidade,

É toda uma região

E cada localidade

Guarda a sua tradição:

 

Ovar

Em OVAR, o Carnaval

Tem samba, música e tudo;

Desfile tradicional

Em qu'o rei e o cabeçudo

Animam sempre o Entrudo.
 

Aradas

Em ARADAS são famosos

Azulejos e olaria,

Tratando em tons vistosos

As gentes da terra e ria

Nas fainas do dia-a-dia.

 

Verdemilho

Nasceu da Vila do Milho

A beleza das melodias

Da zona de VERDEMILHO,

Cantadas em romarias,

Festas e outras folias.

 

Vista Alegre

VISTA ALEGRE é conhecida

P'la porcelana pintada

Com tanta expressão e vida

Que parece decorada

Pela mão d'alguma fada.

 

São pois histórias e lendas

De gentes, terras e mar,

Suas tradições e sendas

Qu'eu me proponho contar.
 



II – GENTES / FIGURAS TRADICIONAIS
 

Moliceiro

A barcada do moliço

Vem da faina da folhada,

Cheia, de ventre roliço,

Vela cambada arqueada

Sob carga, mormo e viço

Rumo às docas da malhada.

 

Desde a bica até à chança

Arrais percorrem a draga,

Embalando nesta dança

A ostaga, amura e fraga

Qu'ora s'ergue, ora balança,

Ora lembra que naufraga

Quando p'la bolina avança

Em seu berço de criança.

 

Pescador

Diz-me lá para onde vais,

Barco que zarpas do cais.

Vou abraçar um arrais

Que partiu, não voltou mais.

 

É a espuma dum veleiro

Qu'arde num olhar cansado

Dum idoso marinheiro

Ao recordar o passado:

 

Ouve os sussurros do vento

Contarem velhas histórias

Das lutas c'o mar violento,

Bravas lendas e memórias

Em que heróis cheios d'alento

Arrancam às ondas glórias,

P'r'as erguerem em monumento

A Terra, Gentes e Tempo...

 

É um velho pescador

Da Vagueira, Espinho ou Mira,

Homem forte de valor

Que faz da pesca uma lira

Com que tange o seu amor

E adormece a sua dor...

 

Salineiro

O mastaréu já se avista

Sobre os cumes dos laboiros,

Vem baloiçando a crista

Cheia de c'roas de loiros

Que não são glórias, não:

São só verde e coração...

 

Mas o barco chega a Aveiro,

Com encinhadas, moliço,

Já o mestre salineiro

Entra em grande reboliço,

Pois quer ser sempre o primeiro

A ver chegar o seu viço.

 

Trabalha de sol a sol

Com ancinho, rapão e pente

E ninguém como ele bole

Montanhas tão de repente,

Feitas d'alma, de sal mole

E gotas de suor quente...

 

Emigrante

Lá longe, morrem os sonhos,

Cá dentro vive a saudade,

Pois eu sei qu'estes meus olhos

Não mais verão a cidade...

 

Debruçado sobre a amurada,

Recorta-se um emigrante,

Face à charrua lavrada

E brilho no olhar errante,

Despedindo na alvorada

Último adeus ao levante:

É toda Aveiro que brada

Por uma terra distante.

 

Diz-se qu'a sua alma erra

Pelas veias do canal

E faz chorar sobre a terra

Laboros feitos de sal,

Mas é só lenda dum cais

A que não voltou jamais...

 

Oleiro

Tu que nasceste do pó,

Arzil, argila e caulino

Com tuas mãos d'homem só

Convertes a terra em hino.

 

O oleiro passa hora dura

À luz rubra da caldeira,

Dando vida a uma figura

Que depois vende na feira,

S'acaso surgir procura,

E s'houver alguém que a queira...

Tem brilho d'olhar no estrado

E mãos unidas ao torno,

Girando um sonho vidrado,

Primeiro em coração morno,

Depois no inferno do forno.

 


Como esta figura é bela!

Mas qu'imagem é aquela?

É o Príncipe Perfeito

Ao leme da caravela!

Vai passar o cabo estreito

Rumo às terras da canela,

Mas a Benim foi primeiro

João Afonso d'Aveiro!

Desde a banda à sentinela,

Do polícia ao pescador,

Toda a história é uma aquarela

Feita d'arzil, luz e cor,

Suor, trabalho e amor...

Preservemos tal cultura

Tecida nas mãos do oleiro,

Para a geração futura

S'orgulhar de ser d'Aveiro.

 

Velhinha

Desce a calçada a velhinha

Senhora Dona Maria,

Rumo à doca tão vizinha

Quando já seu corpo esfria,

Cinza breve se adivinha...

Mas que faz ali sozinha?

Que procura ela ainda?

Chora o luto da andorinha,

Espera a vinda d'alguém

Que se partiu tão asinha

P'ra a deixar sem mais ninguém.

 

III – GENTES / VULTOS HISTÓRICOS

 

Santa Joana Princesa

Santa Joana Princesa,

Deixa o pai, príncipe herdeiro,

Abandona a realeza,

Decide entrar no mosteiro.

Fez-se grande na pobreza,

E pôs o Amor em primeiro,

Ficou a ser a Princesa

Mais querida desta Aveiro.

As novas da sua grandeza

Correram país inteiro:

Num dia fez a defesa

Dum velhote carpinteiro,

Que morria de fraqueza,

Noutra resgata um veleiro,

Acudindo à pobreza

Dalgum triste marinheiro;

Era santa, com certeza,

Dizem as gentes d'Aveiro.

João Afonso de Aveiro
 

João Afonso sulca o mar,

Rumo a terras de Benim,

Na esperança de encontrar

Reinos d'ouro e de marfim.

Percorre com seu olhar

O oceano carmesim,

Sente o vento a enfunar

Alvas velas de cetim...

 

As cartas de marear

Não diziam qu'era assim

Tão difícil de rasgar

O leito do mar sem fim:

 

Tormentas d'arrepiar,

E foi para isto qu'eu vim?

Dizei-me, ó ventos do mar,

Que será feito de mim,

Se conseguirei chegar

Antes que haja um motim.

 

Mas, apesar de bradar,

Sabe que a bruma ruim

Esconde nalgum lugar

Os tesouros de Benim.
 

 

José Estêvão Coelho de Magalhães
 

Na rua do Mercador

Nasce o insigne liberal,

Deputado e professor,

 Advogado radical

E também um orador

Como não houve outro igual.

 

Sempre com empenho e ardor,

Sua eloquência verbal

Levou mais longe o esplendor

D'Aveiro e de Portugal.

 

Fundou "O Tempo», um jornal

Democrata e defensor

Do seu mais nobre ideal

D'acabar com toda a dor,

Promover o bem social,

Paz, Fraternidade e Amor:

Por obra tão liberal,

Merece bem o louvor

Desta sua terra natal!
 


Francisco Manuel Homem Cristo

Jornalista, professor,

Deputado republicano

Nomeado por Timor,

Homem Cristo foi ufano

No cargo de protector

Contra todo e qualquer dano

Feito a Aveiro, seu amor.

 

Foi grande impulsionador

Das obras da barra e porto,

Democrata e pensador

D'ar sisudo e tão absorto

Na defesa e no louvor

Do Progresso e seu honor.
 

 

IV – TRADIÇÕES

 

Telhas com animais moldados

 

Lá no alto, junto às estrelas,

O povo ergue uns animais

Colocados sobre as telhas

Mais velhinhas dos beirais:

São leões, gatos, ovelhas,

Amuletos divinais

Que de cima do telhado

Protegem sempre os mortais

Contra todo o mau olhado:

 

«As telhas do teu telhado,

As pedrinhas do teu muro,

São as que te podem dizer

As vezes que te eu procuro». (1)

 

«As telhas do teu telhado,

Todas elas têm virtude:

Passei por elas doente,

Logo me deram saúde». (2)

 

 

A entrega dos ramos

 

Mordomos vêm entregar

Aos mais novos seu estandarte

P'ra indicar quem vai ficar

C'o encargo desta arte

De saber organizar,

(Sem nada deixar de parte),

As maiores festas do mar.

 

É esta a entrega dos ramos,

Simbólica alegoria

Celebrada todos os anos Com

om pompa e grande alegria

Pelos mordomos ufanos

Que fazem a romaria

Mais bela de toda a ria.

Festa das cavacas
 

Já no largo da capela,

Atiram doces das sacas,

Toda a gente s'atropela

Para apanhar as cavacas.

 

É a paga das promessas

Feitas a São Gonçalinho

Que dá cor a estas festas

E cavacas ao povinho...

 

Aí vem! Aí vem ela!

E logo s'erguem as sacas,

Reacende-se a querela

Na disputa das cavacas!

 

Seja com camaroeiros

E redes ou guarda-chuvas,

Querem ser sempre os primeiros

A apanhar estas doçuras.

 

Das que chovem da capela,

Das vendidas nas barracas,

Qual delas é a mais bela

De todas estas cavacas?

Não há dúvida, é aquela

Qu'é a mais doce e amarela!

 

Feira dos vinte e oito

 

A vinte e oito, cada mês

Surge sempre a maior feira

Qu'algum dia aqui se fez,

Percorrendo Aveiro e Esgueira.

 

Os altifalantes soam,

Há barulho e confusão,

Vendedores apregoam

Bons preços d'ocasião,

Palavras e brados voam

No meio da multidão:

É preciso ser afoito

Para a feira dos vinte e oito!

 

Tradições gastronómicas

 

Desde o pão de ló d'Ovar

Até às raivas da Feira,

Ninguém resiste a provar

Do melhor d'arte doceira.

Os pastéis e o folar,

Feitos de tanta maneira

Satisfazem paladar

Da gente qu'os saboreia,

Bem sabendo apreciar

Tesouros da cozinheira

Qu'assim transforma em manjar

Tanto trabalho e canseira.
 


Mas entre tantas doçuras,

Tão difíceis d'escolher,

Os ovos moles e as farturas

Terão sempre de vencer.

 

Pr'ó turista excursionista,

Não há melhor petiscada

Das muitas qu'oferece a lista,

Qu'a famosa caldeirada,

Belo prazer para a vista,

Bem espessa e temperada

Pela mão d'algum artista

Exp'riente e afortunada.

Ou toda a gente petisca

A dourada carne assada

Já que não há quem resista

 A um bom leitão à Bairrada.

 

Feira de Março
 

Em Março, vem com o vento

A feira feita de sonho,

E perdoa-se ao mau tempo,

Sauda-se o sol risonho.

 

Assim a feira de Março,

Tão antiga e sempre nova,

Acolhe no seu abraço

O tempo que se renova.

 

Há luz, cor e movimento,

Cultura com tradição,

Festa e divertimento

Qu'alegram o coração!

 

Esquece-se o dia-a-dia

No girar do carroussel,

Máquina de fantasia

Que faz do amargo, mel,

Das tristezas, alegria,

E da vida, romaria.

V – A FINALIZAR...

 

Agora, finda a abordagem

D'AVEIRO E A TRADIÇÃO,

Façamos numa paragem

Uma breve reflexão:

Pois que foi esta amostragem

Senão rápida visão,

Feita muito de passagem,

Sem qualquer outra intenção

Que não fosse a da viagem

P'lo MUNDO DA TRADIÇÃO?

 

 

Vimos um pouco de tudo:

Desde a arte do moliceiro

Até ao ventre bojudo

D'algum cântaro de oleiro.

E não parámos, contudo,

Falámos do salineiro

E do pescador barbudo

Qu'ao mar é sempre o primeiro.

Seguiu-se orador sisudo,

A princesa e o conselheiro,

Desfilaram neste Mundo

Qu'é a Cidade d'Aveiro.

 

 

Agora, a janela aberta

Sobre AVEIRO E A TRADIÇÃO

Vai-se fechando, incerta

 Desses tempos que virão.

Se não lançarmos o alerta

Contra a desaparição,

Já próxima e quase certa,

Que será da Tradição?

Façamos da nossa meta

A sua conservação!

 

Joaquim João Braamcamp de Mancelos


(1)
e (2) – Quadras tradicionais às telhas com animais moldados. – Tradição popular de Aveiro e do

                    Funchal.
 

 

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