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Boletim n.º 10 - Ano V - 1987

Dr. José Pereira Tavares

 

– No centenário do seu nascimento
 

Em 30 de Janeiro de 1987, completou-se o primeiro centenário do nascimento do Dr. José Pereira Tavares, venerando cidadão, falecido em 1983, que exornou Aveiro e, sobretudo, a Escola onde exerceu as funções de professor e de reitor. O Dr. António Capão, escrevendo no semanário aveirense "Correio do Vouga» (18-3-1977), defini-lo-ia como «português de lei, que se aquilata por um labor intenso na defesa da Língua Portuguesa ao longo de toda a sua vida, durante a qual produziu um considerável número de obras, activo impulsionador e colaborador de congressos do ensino liceal...».

O Conselho Directivo da Escola Secundária José Estêvão – o velho Liceu que entranhadamente amou – decidiu comemorar a efeméride; era um acto de justiça. Organizou uma sessão evocativa, de cujo programa se salientou a primorosa palestra do Dr. Raul Vaz e uma exposição biobibliográfica, onde se puderam ver as condecorações e as mercês com que o honraram, admirar as muitas publicações de que foi autor ou em que colaborou, e ainda recordar, na fotografia ou no retrato, tantos e tantos episódios da sua longa vida.

O "Boletim Municipal de Aveiro" não quer esquecer que o Dr. José Pereira Tavares, estudioso mestre da Língua e da Literatura Portuguesa, é uma figura destacada em Aveiro, nos dois primeiros terços deste século; por isso, desejando preitear a sua memória, publica as judiciosas palavras que o Dr. Raul Vaz então proferiu.
 

Evocar José Pereira Tavares no centenário do seu nascimento representa para os que tiveram a iniciativa da mesma evocação e para todos os que nela se envolveram, para além de elementar justiça à memória, à obra e à figura do Mestre, uma cumplicidade e um compromisso. Cumplicidade porque os admiradores ficam ligados na própria admiração, e compromisso, porque um comportamento humano, ético, profissional e cultural duma exemplaridade definitiva, compromete e condiciona aqueles que receberam a lição e tiveram conhecimento mais ou menos íntimo dessa vivência singular.

Mas evocar a personalidade multifacetada de José Tavares, do ensino ao teatro, do pensamento, da linguística e da cultura, à convivência austera, fraternal e lúdica, tem muito que se lhe diga.

Vou apenas lembrar, embora superficialmente, com a dose de ternura com que desde sempre envolvi a figura do Mestre, alguns aspectos da obra e da lição que nos deixou como homem, como pedagogo, como humanista e como amigo.

Nasceu José Pereira Tavares de família humilde, – e orgulhava-se das origens, – na freguesia de Pinheiro da Bemposta, concelho de Oliveira de Azeméis, a 30 de Janeiro de 1887, filho de António de Oliveira Tavares e de Antónia Pereira Março. Em 1901 fez exame de instrução primária no Liceu de Aveiro, matriculando-se a seguir no mesmo Liceu, onde completou a 5: classe, em 1907. Frequentou a 6.ª e 7.ª classes de Ciências no Liceu Alexandre Herculano e, tendo entretanto resolvido ingressar na carreira do Magistério Liceal Humanístico, faz, em 1910, / 52 / o exame da 7.ª classe respectivo, no Liceu D. Manuel II (actual Rodrigues de Freitas), e, em 1915, acaba o Curso de Letras no então chamado Curso Superior de Letras, em que pontificavam Teófilo Braga e Adolfo Coelho e durante o qual foi aluno de José Maria Rodrigues, David Lopes e José Leite de Vasconcelos. O mesmo Curso Superior de Letras que frequentaram Cesário e Pessoa, na velha Academia de Ciências, e onde José Tavares teve como condiscípula a escritora Adelaide Félix, que era a única aluna do Curso, como o documenta a fotografia que faz parte da exposição bíblio-iconográfica que a seguir vai ser inaugurada.

Em Janeiro de 1916, é nomeado professor agregado do 1.º grupo do Liceu de Viseu e a partir de Novembro do mesmo ano veio para o Liceu de Aveiro na mesma qualidade. Em Março de 1917 é nomeado professor efectivo do Liceu de Angra do Heroísmo e em Agosto do de Portalegre, não chegando a leccionar nestes dois últimos, por ter sido colocado, por permuta, professor efectivo no Liceu de Aveiro a partir de 17 de Outubro de 1917.

Exerceu o cargo de Reitor Interino entre Janeiro e Março de 1925 e passou a Reitor Efectivo do mesmo ano até Julho de 1931, data em que pediu a exoneração do cargo. Em Outubro de 1940 foi convidado para exercer o mesmo cargo de Reitor, vindo depois a ocupá-lo ininterruptamente até atingir o limite de idade, em 30 de Janeiro de 1957. O nome de José Pereira Tavares confunde-se com o próprio Liceu de Aveiro, onde ele foi Mestre durante 40 anos e trabalhador da cultura como um sacerdote atento e crítico.

Sempre ligado ao Teatro Académico, organizou e dirigiu em 1919 e 1920 o 1.º grupo cénico de alunas e alunos do Liceu de Aveiro. O primeiro espectáculo precedido de uma palestra sua sobre «Gil Vicente e a origem do Teatro», que posteriormente publicou, foi constituído pelo Monólogo do Vaqueiro e Exportação da Guerra, pela terceira jornada do Fidalgo Aprendiz, de D. Francisco Manuel de Melo, e uma comédia ligeira.

Continuou durante muitos anos a dirigir e a orientar representações idênticas, levando à cena peças de Gil Vicente, D. Francisco Manuel de Melo, Camões (EI-Rei Seleuco), Castilho, Júlio Dinis, Correia Garção, Garrett, na celebração de cujo centenário fez representar uma comédia e cenas de Filipa de Vilhena, Alfageme de Santarém e Frei Luís de Sousa. Foi notável a récita em que o professor Salgado Júnior apresentou uma fantasia intitulada «Uma Lição de Gil Vicente», precedida de palestra denominada arrazoado sobre Gil Vicente.

O gosto perseverante de José Tavares em fazer representar a farsa e o burlesco evidencia porventura a faceta mais humana, mais íntima, mais fascinante e mais oculta, da sua personalidade. A sua acção no contexto do teatro académico pode ser considerada, com verdade, precursora dessa outra gigantesca realizada na Universidade de Coimbra pelo Prof. Paulo Quintela, outro eminente homem da cultura, recentemente desaparecido. E ao comentar exaustivamente os dois volumes publicados de Teatro de Amadores, António Capão, um dos seus discípulos, refere: «Afinal o Dr. José Tavares, se através de algumas peças se revela o culto humanista, noutras nos dá a conhecer a maleabilidade e a comunicabilidade do pedagogo, para ainda noutras nos dar, complementarmente, o homem que ama a terra e as suas gentes, os seus usos e tradições, a sua língua e a sua história; o linguista e o etnógrafo estão aí vivos e presentes, saídos do sopro telúrico que estigmatiza os homens e os obriga a uma comunhão profunda e íntima com a região donde saíram».

Na acção pedagógica de José Tavares, que extrapolou o Liceu e a própria cidade, para se tornar de âmbito verdadeiramente nacional, e na prática de uma política de intercâmbio cultural, destacam-se e são de sua iniciativa uma série de conferências de intelectuais e de professores do próprio Liceu.

O 1.º conferente, em 1922, foi o Prof. Fidelino de Figueiredo, amigo fraterno de José Tavares, seguindo-se, em vários anos, Hernâni Cidade, Jaime de Magalhães Lima, Joaquim de Carvalho, Bento Carqueja (fundador de "O Comércio do Porto"), Luís Carriço e João Gaspar Simões, recentemente falecido, criador da crítica literária em Portugal e que magistralmente exerceu durante mais de meio século.

Gaspar Simões que, anos depois, escreveria, em carta a José Tavares, que a publicação de Como se Devem Ler os Clássicos tinha sido «um tiro de pólvora seca à pardalada literária», como dizia Aquilino.

Ao dinamizar os Congressos de Ensino Liceal de Aveiro, Viseu, Braga, Évora e Coimbra, ao promover celebrações dos centenários de Guerra Junqueiro, Eça de Queirós e Gomes Leal, ao conseguir a designação de Liceu José Estêvão, satisfazendo uma velha aspiração da cidade; ao realizar a obra de gramático e filólogo de todos conhecida, – José Tavares evidenciou-se na sua condição mais determinada de fazedor de cultura.

/ 53 / Do linguista escreveu em tempos Telmo Verdelho: «Foi gramático e filólogo, fez a ligação entre os dois domínios e podemos mesmo referenciá-lo como um ponto de encontro entre os vários estudiosos da Língua Portuguesa até à última década.   

Nas revistas que fundou e dirigiu, sobretudo na "Labor", encontra-se, entre a sua biografia, notícia de quase todos os nomes de filólogos e gramáticos que foram seus contemporâneos ou que o precederam. Não se pode fazer a história do estudo da língua em Portugal, nos últimos 100 anos, sem conhecer esse testemunho.

Na edição de textos clássicos (Gil Vicente, Francisco Manuel de Melo, Rodrigues Lobo, Diniz da Cruz e Silva, Filinto Elísio), dos textos escolares portugueses e latinos, e dos manuais de gramática, encontra-se o mais importante contributo do Dr. José Tavares para o estudo e, sobretudo, para o ensino da Língua Portuguesa. De certo modo todos os Portugueses que frequentámos o ensino secundário, nas últimas 4 ou 5 décadas, fomos seus alunos e a ele devemos um pouco da nossa formação linguística e literária. Justo é que o lembremos e que lhe testemunhemos a nossa gratidão. Esta será a melhor das homenagens».

De facto, foi na 1.ª e 2.ª série da revista referida por Verdelho, a “Labor”, que José Tavares realizou um trabalho insano, deu o melhor do seu indiscutível talento e criou um espaço cultural que definitivamente o consagrou como autêntico divulgador da cultura. Ao conseguir a colaboração de individualidades tão díspares como José Leite de Vasconcelos (n.º 1 da "Labor", e, noutros números), e Agostinho de Campos, Fidelino de Figueiredo, Joaquim de Carvalho, Rómulo de Carvalho (António Gedeão), Adelaide Félix, Rodrigues Lapa, António Capão, José Joaquim Nunes, Orlando de Oliveira, Óscar Lopes, José de Melo, Orlando Ribeiro, Francisco Ferreira Neves, Salgado Júnior, Álvaro Sampaio, Agostinho da Silva, Aurélio Quintanilha, Costa Pimpão, Feliciano Ramos e tantos outros, José Tavares demonstrou o seu enorme poder congregador e a capacidade de reconhecer e respeitar o talento de colegas e intelectuais que por vezes não comungavam dos seus critérios estéticos.

Ao fazer publicar estudos e artigos de homens das mais variadas correntes do pensamento afirmou-se um espírito criativo, lúcido e universalista.

Falcão Machado, que organizou os índices da revista relativos à primeira e segunda séries, escreveu em carta a José Tavares: «A “Labor” foi um consciente e denodado defensor da dignidade e dos interesses da Classe – professorado liceal – como nenhum outro em Portugal». Mais adiante refere Falcão Machado que a revista constituiu um foco de divulgação de cultura pedagógica em que os homens nervosos e vibrantes ou calmos e lúcidos colaboraram a par de alguns nomes grandes da nossa cultura.

O ex-libris Decus in Labore (Dignidade no Trabalho) da Lello, onde publicou vários livros, bem lhe poderia servir de divisa e não foi por acaso que a revista que fundou e dirigiu se chamou "Labor". Todos sabemos que José Tavares tinha o seu ex-libris cartesiano: Dubito ut intelligam.

Da obra publicada de José Tavares destacam-se, sem dúvida, O Método Elementar de Latim, que em todo o País serviu gerações e gerações de alunos durante décadas e o clássico Como se Devem Ler os Clássicos, que encerra curiosamente com a integração dos nomes de Aquilino Ribeiro e Miguel Torga, o que na década de 1940 poderia parecer um verdadeiro escândalo. É que José Pereira Tavares, que conhecia a língua Portuguesa e as expressões estéticas dos Clássicos, para além de ser leitor de Gil Vicente, / 54 / de Camões, de Vieira e de Bernardes, conseguia, tal como Eliot, que curiosamente nasceu um ano depois dele e foi prémio Nobel em 1948, ter o mesmo conceito irreverente e inovador de clássico, aquele para que o mesmo Eliot aponta em What is a Classic? Em 1940, escrevia José Tavares: «Clássicos modernos? Sim. Clássico em sentido lato, será todo o escritor que nos possa solicitar a atenção, quer pelas ideias generosas e humanas que expendeu, quer pelo vernaculismo e arte que soube imprimir aos seus escritos. E assim tão clássico poderá ser considerado um Camões, ou um Sá de Miranda, como um Castilho, um Herculano, um Ramalho, um Eça, um Antero de Quental, um Trindade de Coelho, um Machado de Assis, um Aquilino Ribeiro, um Miguel Torga, – se nos é lícito fechar o capítulo com a citação do mais laureado prosador da actualidade e com o pseudónimo usado pelo admirável prosador dos Bichos, certamente dos mais ilustres artistas da nova geração».

Outras publicações de José Pereira Tavares todos teremos ocasião de as rever dentro de momentos, na exposição bibliográfica. Mas não prescindo de acrescentar que, para além de fundador, em 1925, com Álvaro Sampaio, da revista pedagógica "Labor", José Tavares foi igualmente fundador, em 1935, com Francisco Ferreira Neves e António Gomes da Rocha Madaíl, da revista "Arquivo do Distrito de Aveiro". Não quero deixar de referir a sua colaboração nas referidas revistas e também na "Revista de Filologia Portuguesa", de S. Paulo (Brasil), na História da Literatura Portuguesa Ilustrada, da direcção de Albino Forjaz de Sampaio, na revista "Brasília" e na Série A da "Revista de Portugal".

Esta é uma síntese da obra do Pedagogo e do Mestre, que nos deixou um exemplo de verticalidade, de dignidade cívica, de firmeza, de compreensão e também de ternura, ainda que por vezes disfarçada em palavras quase frias, quase duras.

Tenho imagens remotas de José Tavares, reais ou fantasmagóricas? Em situações de crise, houve sempre situações de crise, rompendo entre os alunos, em atitude corajosa e firme, para lhes dar com a sua presença testemunho de solidariedade e exemplo de moderação. Recordo José Tavares nos longos anos do seu Magistério, a conviver com os alunos, os mais díspares, de todos os quadrantes da vida e do pensamento, dos alunos que eram e continuaram a ser, dos mais bem comportados aos marginais, ou quase marginais, numa atitude ética incomparável.

Numa época em que a juventude consumia majoritariamente literatura medíocre, o mau policial, o Western, o romance de espionagem e de guerra, José Tavares, que tinha um sentido educacional inato, levou os jovens para um mundo intelectual cativante e culturalmente mais rico.

Foi com ele que muitos dos nós aprendemos a ler e a ler Gil Vicente, Camões, Eurípedes, Molière, Lorca, Tchecov, Zola, Eça, Camilo, Unamuno, Faulkner, Régio, Pascoaes, etc. Foi com José Tavares que muitos de nós aprendemos a pensar. Porque José Tavares lia, José Tavares pensava. Apesar de pensar ter sido sempre, como disse mais tarde Michel Foucault, um acto perigoso.

José Tavares esteve na vida, sob o aspecto ético, estético, e mesmo formal, sob todos os aspectos, para além do poder, ou mesmo anti-poder, aquando do 1.º Congresso Republicano de Aveiro.

O poder macula. E o poder é, como refere Deleuse, «o elemento informal que passa entre as formas do saber ou por debaixo delas».

José Tavares sabia, José Tavares era imaculado. Nada do que era humano lhe era alheio. Na sua vertical e límpida simplicidade, era um desmistificador da prosápia e da retórica, cada conversa uma lição inesquecível. Era um conversador inigualável, e gostava muito de conversar. Lembro, a propósito, ele citar essa personagem «subversiva» que é o mendigo de Joracy Camargo, o qual, quando lhe referiram a desgraça irremediável e trágica dos cegos, respondeu:  – Lembre-se dos mudos...

Recordo José Tavares a descer a Avenida, a caminho da Livraria Vieira da Cunha, na agonia de Mário Sacramento, um dos seus discípulos mais queridos e mais notáveis, que morreria no dia seguinte, a parafrasear, amargurado, Manuel Laranjeira em carta a Unamuno (cito de cor): «neste malfadado País tudo o que é nobre suicida-se ou morre; o que é medíocre triunfa». Isto, apesar de uma das suas facetas humanísticas mais importantes ter sido o seu olhar optimista / 55 / sobre o mundo, os indivíduos e as coisas e a sua clara contribuição para que os outros tivessem análoga percepção existencial.

Recordo José Tavares na última década de vida, direito como um fuso, ainda na Livraria Vieira da Cunha, a escrever em papel de embrulho, tal como fazia Teófilo, seu Mestre, a própria resenha biográfica que deixaria manuscrita a um discípulo dilecto.


Lembro José Tavares aos 88 anos, plantado no meio da Avenida, direito, duro, exactamente moldado no lema de Bogart: «Se não fosse duro não estava vivo, se não fosse terno não merecia estar vivo», quando um antigo aluno lhe disse que ia visitar o João Balão, Balão de alcunha, a recomendar: – Dá-lhe um abraço. E disse o nome completo do rapaz da Beira-Mar que tinha sido aluno do Liceu havia trinta anos.

Recordo José Pereira Tavares numa tarde de Verão, em Caldelas, onde o Mestre durante anos passou férias e fez tratamento termal, a conversar com o Prof. Teixeira Ribeiro, quando se aproximou Miguel Torga, aquista habitual. Torga cumprimentou o Mestre com deferência, perguntou-lhe pela saúde, pelo resultado do tratamento, ao que José Tavares respondeu, irónico: – «Olhe, quanto a isso estou como o homem do seu Diário; – Quando comecei a vir para cá as moscas picavam-me nas pernas; hoje só não me picam na careca porque tenho algum cabelo e uso chapéu...»

Estou a ver José Tavares, quase com noventa anos, a safar-se lesto do tráfego da Avenida, ele que tinha conhecido toda a largueza de Aveiro sem um carro, a citar frequentemente Teixeira de Pascoaes de quem tanto gostava; o verso do poeta quando lhe rasgaram o Marão: «lá em baixo na estrada passam belos automóveis sem ninguém». Recordo a atitude carinhosa de José Tavares quando, numa manhã chuvosa e fria de um Inverno de há quase meio século, ao ver chegar um aluno humilde ao velho Liceu de José Estêvão de sapatos rotos e pés encharcados, meteu na mão desse mesmo aluno um jornal amontoado na Reitoria, para forrar os sapatos, aquecendo-lhe os pés e a alma. Disse há anos publicamente esse antigo condiscípulo, hoje um fino psicólogo e cidadão comum, que o gesto de ternura de José Tavares, disfarçado de aparente frieza, teria eventualmente contribuído para o livrar da marginalidade.

Recordo José Tavares em convívio simultaneamente austero e fraterno com os alunos, porque José Tavares tinha, para além do gosto de comunicar, o sentido lúdico da vida. Recordo José Tavares na cena contada pelo advogado Alfredo Sousa e Melo, seu contemporâneo.

Sousa e Meio encontrava-se na Reitoria em conversa com o Mestre, quando bateram à porta, pediram licença. José Tavares mandou entrar. Era o Dr. Assis Maia, esse homem bom, professor incomparável. Assis Maia tinha sido aluno de José Tavares, era secretário do Liceu, tratava o Reitor com a máxima deferência.

José Tavares tinha mandado entrar e recitou, na presença de Sousa e Melo, o poema de Manuel Bandeira, que cito de memória:

Irene preta

Irene boa

Irene sempre de bom humor.

Imagine Irene entrando no Céu.

Licença meu branco?

E São Pedro bonacheirão:

Entre Irene,

Você não precisa nunca

De pedir licença.

 Recordo José Tavares a repreender severamente a equipa comandada pelo bravo capitão da areia de há 40 anos que era o Aguinaldo, na presença do velho contínuo Estimado, queixoso duma tremenda bolada. José Tavares, austero, pisca o olho ao capitão, diz a Estimado: Quando vir os rapazes no campo, fuja, vá para casa...

 / 56 / Ao outro dia Aguinaldo forma o team, entra no campo. José Tavares precisa do velho contínuo, manda-o chamar. Estimado tinha fugido, tinha ido para casa.

Recordo José Tavares, culto, lúcido, tolerante, terno, duma ternura que ficou para além dos 96 anos da sua vida singular.

– Vai-te lá embora, tem juízo...

– Grande Reitor, – dizia a rapaziada, livre e alodial, aliviada a consciência numa promessa íntima de emenda raramente cumprida.

Mas um dia a maroteira deu brado, o chefe da polícia aparece no Liceu, pede para interrogar os suspeitos. O Reitor opõe-se, terminante.

Quem vai interrogar os rapazes é ele, é mais fácil a confissão; no caso de estarem culpados, é a expulsão.

O polícia espera. O Reitor sabia quem tinha, sabia que estavam culpados, manda chamar os rapazes e, na intimidade do gabinete, começa por referir a gravidade da acusação, a sua incredibilidade no cometimento da façanha.

– Mas vocês vão ser interrogados (não no Liceu estava claro, mas poderiam vir a ser interrogados, poderia ele ficar por eles, poderia garantir?..)

– Pode garantir.

José Tavares garantiu, o polícia abalou, o caso morreu.

Mas, ao deixarem o gabinete do Reitor, como se tivessem nascido naquela hora, um dos rapazes, hoje uma alta individualidade que escreveu uma carta tão terna e tão íntima que seria uma profanação lê-la publicamente e que só não está aqui porque se encontra no estrangeiro, disse num acto de contrição dessa vez e para sempre cumprido: – Somos uns sacanas...

Recordo o chefe de família exemplar, o homem vertical, o pedagogo, o Mestre de cultura universal.

Todos lhe somos devedores, quero-o dizer nesta hora de singela evocação do seu centenário. Todos nos sentimos infinitamente saudosos, da Saudade, como a definiu Leonardo Coimbra «dirigida para diante e para cima, para o futuro e não para o passado».

José Tavares deixou uma grande obra. E aqui cabe citar o poema: «As grandes obras, nem por serem perfeitas e acabadas como a morte, deixam de ser uma fonte eterna de vida».

E a sua vida, que foi um acto constante de pedagogia cívica e natural, ficará para sempre irremediavelmente ligada ao Liceu de Aveiro. A semente que aí plantou frutificou, porque José Tavares não morreu, José Tavares está vivo, definitivamente vivo, nos nossos pensamentos e nos nossos corações.

Tenho dito.

Raul Vaz

 

 

EVOCANDO AINDA MENDES LEITE

«AINDA ESTOU A VER A ANIMAÇÃO DAQUELA HORA DEBAIXO DOS ARCOS. A PORTA DO SR. BARBOSA QUE MORREU, NO LUGAR DO COSTUME, NA PONTA DO BANCO, MENDES LEITE RECORDAVA, CANTAVA. JÁ PENDIA PARA O CHÃO, COMO UM LÍRIO QUE NÃO TEM SEIVA; MAS, AINDA ASSIM, NÃO SEI QUE ESPÍRITO INEXAURÍVEL DE MOCIDADE IRRADIAVA DAQUELE VELHO, DE POLAINAS NAS BOTAS, DE FATOS CLAROS, DE IDEIAS PRONTAS, CERCADO DE OUVINTES».

JOÃO EVANGELISTA DE LIMA VIDAL (1874-1958)

         – Em Lições da Natureza e dos Homens, pg. 200.

 

 

 

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