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Boletim n.º 10 - Ano V - 1987

Mendes Leite e a sua época

 

  «Nós fomos do berço para as prisões e para a guerra

 

Esta frase de Rodrigues Sampaio, enquadra perfeitamente o que foi a vida de Manuel José Mendes Leite; senão, vejamos:

Nasceu em Aveiro em 1809, na viragem do século, momento em que, no dizer de Albert Silbert, «se não há crise social grave, adivinham-se sinais de tensão cultural e política, alimentados pelas teorias dos filósofos iluministas e pelas revoluções do final de Setecentos.»

Vivia-se na época um atraso económico, técnico, social e mental, devido a rotinas ancestrais, encontrando-se a economia baseada em actividades primárias, onde imperava o senhorialismo e o poder de homens e instituições da Igreja.

Mais tarde, a situação foi agravada não só com a guerra peninsular, com a ausência do Rei, mas também com a dominação inglesa e com a consequente abertura dos portos brasileiros. Foi esta medida, que despertou a burguesia para a realidade, já que viu desmoronar-se o circuito comercial luso-brasileiro.

Por outro lado, difundiram-se os ideais maçónicos influenciados pelas correntes iluministas. Constituíram-se sociedades de intelectuais onde pontificavam ideais humanitários, de tolerância, do culto da razão, de virtude, de liberdade, à margem de preconceitos anti-clericais. Chegavam mesmo a criticar com veemência «o trono e o altar», elogiando o modelo francês.

Considerados uma ameaça, esses intelectuais iam ser perseguidos e obrigados ao exílio. Alguns desses exilados voltariam à sua terra, depois das campanhas napoleónicas, tornando-se dirigentes políticos ou de influência de todos aqueles que protestavam contra o regime absolutista. É o caso do General Gomes Freire, que liderou o movimento revolucionário, o qual culminou com a execução daquele em 1817. Estas e outras execuções fomentaram o pronunciamento militar que deflagrou em 1820, o que veio iniciar um novo período da nossa história – a implantação do Liberalismo.

Com ele nasceu um governo que organizou as eleições para as Cortes. Nelas se lançou uma primeira arremetida contra a Nobreza e a Igreja, que não ficaram indiferentes a esta situação. Por outro lado, a independência do Brasil infligiu golpe mortal às Cortes Liberais, pois cortou a aspiração daqueles que desejavam o regresso do Brasil à condição de colónia. A impopularidade que este facto trouxe para os liberais acresce ainda a recusa da rainha D. Carlota Joaquina e do seu filho D. Miguel em jurar a Constituição, o que lhes irá valer grande popularidade, reforçar os ânimos absolutistas e abalar em definitivo os dos liberais.

Esta situação permitiu que se iniciassem no Norte movimentos de revolta de cariz absolutista, liderados pelo Conde de Amarante que, derrotado pelas tropas liberais, se refugiou em Espanha. Em Aveiro, tal acontecimento não abalou os partidários do absolutismo, pois, no dizer de Marques Gomes, «pretendiam levar a cidade para o partido da revolução que se planeava». Assim é que, aclamado D. João VI como rei absoluto, davam-se vivas ao Rei, à Rainha e foi anunciada a abolição da Constituição. É neste momento que surge pela primeira vez o nome de Mendes Leite na vida política, apondo a sua assinatura ao auto de aclamação absolutista.

Em 1824, Mendes Leite entrou na Universidade.

Seguir-se-ia um novo período conturbado, onde se confrontaram os adeptos de D. João VI, mais brando com os ideais liberais, e os miguelistas que os desejavam erradicar por completo.

D. João VI morreu em Março de 1826. D. Pedro, que estava no Brasil, é aclamado Rei. Ali outorgou a Carta Constitucional e abdicou na sua filha D. Maria da Glória.

Com a abertura das Cortes era restaurado o Regime Constitucional. Aos absolutistas esta situação não agradava; traduzia-se no regresso a um período não muito longínquo, que, para além de esgrimirem toda a espécie de razões na tentativa / 48 / de provar que a coroa não pertencia a D. Pedro, utilizaram as armas para tentar impor os seus direitos. Os exilados miguelistas, com o auxílio espanhol, invadiram o país. A esta agressão responderam os exércitos liberais, que os derrotaram. Em Coimbra e por esta altura, formaram-se os Batalhões de Voluntários Académicos, nos quais se alistou Mendes Leite.

Com esta atitude parece-nos que Mendes Leite abraçou os ideais liberais, a que não será estranho o ambiente revolucionário estudantil e a ausência da casa paterna onde possivelmente pontificavam os ideais miguelistas.

O regresso de D. Miguel a Portugal, em 1828, não foi recebido com entusiasmo em Aveiro. Como em ocasiões semelhantes de grande solenidade não houve Te-Deum, nem sessão extraordinária da Câmara. Aqui e apesar do partido absolutista contar com numerosos adeptos provenientes do clero secular e regular, da nobreza, do regimento de milícias e do povo, era o partido liberal o mais aguerrido, embora em menor número. A ele pertenciam alguns frades dominicanos, alguma burguesia, artistas, universitários, funcionários e a totalidade do Batalhão de Caçadores 10.

Em 25 de Abril desse ano, o Senado da Câmara proclamou D. Miguel como rei absoluto.

À restauração do absolutismo responderam os liberais com a revolta. Iniciada em Aveiro no dia 16 de Maio pela acção de Joaquim José de Queirós e de outros elementos liberais, contou com a imediata adesão do Batalhão de Caçadores 10. Convocado o povo para a Câmara, ali foram dadas vivas à Rainha D. Maria, substituídos os vereadores e elaborado o respectivo auto, não constando nele a assinatura de Mendes Leite.

Nessa mesma noite revoltaram-se as tropas do Porto, às quais foram aderindo sucessivamente guarnições militares estacionadas em diversas localidades do norte e centro do país.

Organizados de novo os Batalhões Académicos, Mendes Leite alistou-se. Não iremos descrever toda a acção militar. Há que referir porém a Batalha da Cruz de Moroiços, onde, apesar de não haver vencedor nem vencido, e após a precipitação da Junta do Porto, então em Coimbra, em mandar retirar as tropas, estas, sempre acossadas pelas forças miguelistas, chegaram ao Porto onde já se encontrava Mendes Leite que, entretanto, tinha sido incumbido de levar para aquela cidade um oficial absolutista, aprisionado num dos combates.

Derrotados os exércitos constitucionais, Mendes Leite irá integrar os milhares de homens que partiram para o exílio em Inglaterra. Ali não conheceu as dificuldades dos outros exilados. Instalado numa casa alugada, pôde fugir ao célebre barracão de Plymouth. Contudo e apesar do auxílio pecuniário do pai, teve que trabalhar nos barcos atracados naquele porto.

Aos que não conseguiram a fuga a repressão miguelista não perdoou. Aveiro pagou bem caro ter levantado o grito da revolta.

No exílio, os liberais continuaram a trabalhar para derrubar o governo.

Em 1830, sob a chefia de Palmela, constituía-se na Ilha Terceira uma regência liberal. No ano seguinte, no Brasil, D. Pedro abdicava no seu filho e partiu para a Europa onde encabeçou e organizou a luta contra o irmão.

Reunidos os apoios financeiros e políticos necessários, dirigiu-se para os Açores e dali, com um exército de 7.500 homens, para Portugal.

Desembarcou no Mindelo e quatro dias depois, sem oposição, entrava no Porto. A reacção dos exércitos miguelistas não se fez esperar. A desorientação inicial reorganizaram-se e bateram-se com as tropas comandadas por D. Pedro, a quem, depois da derrota em Ponte de Ferreira, só restaria a acção defensiva... e cercou o Porto com uma linha de trincheiras e fortificações.

Mendes Leite teve conhecimento do desembarque e de imediato alugou um barco e, com outros exilados, partiu para o Porto. Só agora conseguiu unir-se aos seus amigos de exílio, já que todas as tentativas anteriores para acompanhar e integrar as expedições para a Terceira tinham sido infrutíferas.

Alistado no Batalhão de Voluntários Académicos na arma de artilharia, partiu de novo para a Inglaterra, na qualidade de comissário do governo para adquirir cavalos e arreios.

Cumprida a missão, regressaria de barco e conseguiria furar o cerco. Foi este o primeiro e único navio que entrou naquela cidade, depois de estabelecido o bloqueio.

Conhecidas as suas qualidades de soldado, era escolhido para fazer parte da guarnição da Serra do Pilar que, durante oito meses e sob as ordens do General Torres, aguentou as arremetidas dos exércitos miguelistas, participando em todas as acções e batalhas.

Os sitiados conheceram então outros dois inimigos: o tifo e a cólera. O cerco apertou. Para aliviar a pressão sobre o Porto foi constituída uma força que desembarcaria no Algarve. Mendes Leite foi um dos escolhidos. Assim, após a derrota da esquadra miguelista, o duque da Terceira iniciava a marcha para Lisboa, acompanhado / 49 / de perto pela frota liberal. A doença de Mendes Leite não lhe permitirá continuar a acompanhar e participar no resto das operações militares, que se prolongariam por mais alguns meses até à assinatura da convenção de Évora-Monte.

Terminada a guerra civil, Mendes Leite regressou a Coimbra onde permanecerá até concluir o curso de Cânones e Leis, em 1838.

O ministério Passos, saído da Revolução de Setembro, nomeava administrador-geral do distrito José Henriques Ferreira, deputado da extrema-esquerda e antigo emigrado liberal. Mendes Leite era escolhido secretário-geral; a acção conjunta destes dois homens iria conduzir à eleição de José Estêvão para o Parlamento.

No ano seguinte seria eleito presidente da Câmara. Durante o seu mandato realizar-se-ia a terraplanagem e o arranjo do Largo Municipal.

Eleito deputado, apesar das arbitrariedades e prepotências do governador civil em relação à lista setembrista, foi para Lisboa e sentou-se com José Estêvão nos bancos da esquerda-parlamentar. Ali assumirá a adopção da ideologia radical setembrista, a qual, na esteira do direito natural moderno, defendeu que a legitimidade da insurreição é incontestável, uma vez que traduz a reassunção violenta da soberania que o povo delega mas jamais aliena.

Foi assim que, nesse ano de 1840, Mendes Leite com José Estêvão preparou uma revolta contra o ministério Bonfim. Para tal contavam os dois com o apoio de diversas forças militares e da Guarda Municipal, esteio do Governo. Porém, só a última aderia e com algum povo dirigiram-se para o Arsenal do Exército, onde as forças, leais ao Governo, os desbarataram, efectuando algumas prisões.

Na sessão parlamentar do dia 12 de Agosto desse ano, um dos deputados propôs um voto de agradecimento às tropas que tinham debelado aquela insurreição. Só um deputado votou contra: Mendes Leite. Os restantes deputados da oposição, entre os quais José Estêvão, não tiveram a coragem de dizer o que sentiam.

Nesse mesmo ano, surgiria o jornal «A Revolução de Setembro», que perdurará até 1892, sempre com alcance e prestígio notáveis. Na base da sua fundação estão Mendes Leite, José Estêvão e Joaquim da Fonseca Silva Castro e nele trabalhará António Rodrigues Sampaio que, no dizer de José Tengarrinha, se afirmou num dos maiores jornalistas da nossa história.

Restaurada a Carta Constitucional, em 10 de Fevereiro de 1842, e dissolvida a Câmara dos Deputados, prepararam-se eleições para 19 de Junho desse ano. Os partidos uniram-se para derrotar o governo de Cabral. É a coalizão, que tem por armas de batalha as urnas e onde cada partido – Setembristas, Miguelistas, Radicalistas e Cartistas – mantêm a sua identificação ideológica.

Constatando-se a inutilidade de prosseguir a luta pelas vias legais começou a conspiração. Mendes Leite tinha por missão aliciar diversas personalidades e forças militares para a revolta. Quando se encontrava no Norte, teve conhecimento da «Revolta de Torres Novas» e fugiu para Espanha, onde seria preso. Porém, com a ajuda do cônsul português, conseguiu embarcar em navio britânico e dali seguiu para Inglaterra. Mais tarde mudar-se-á para França, onde ficará durante dois anos, regressando a Lisboa após a Revolução do Minho.

No entanto, a sua fibra de revolucionário permaneceria intacta. Assim é que, durante os acontecimentos da Patuleia, manter-se-á ao lado da Junta do Porto. Para tanto organizou em Aveiro, em colaboração com o governador civil, batalhões móveis em todos os concelhos do Distrito, e acorreu aonde se manifestaram as guerrilhas miguelistas.

Tendo acompanhado as forças de Sá da Bandeira, estacionadas junto de Lisboa, foi enviado por ordem deste ao Porto a pedir reforços. Quando integrado na expedição que se dirigia em auxílio do Visconde Sá, foi interceptado pela frota inglesa à saída da Barra do Douro. Preso, seria conduzido para Lisboa e detido no Limoeiro.

Com a convenção do Gramido, assinada em 29 de Junho, terminava este conflito do qual saiu derrotada a corrente setembrista.

Como diz Vítor Sá, «dominada a agitação da Patuleia e desarmadas as forças populares, a burguesia reforçou o seu aparelho de repressão e impediu que as revoluções europeias de 1848 tivessem outras repercussões além das de ordem ideológica».

Assim é que circularam diversos jornais clandestinos de teor republicano e paralelamente começaram as actividades conspiratórias, para derrubar a Rainha e instaurar a República no país. José Estêvão, Oliveira Marreca e Rodrigues Sampaio formaram uma Junta Revolucionária no intuito de organizarem Juntas civis e militares, o que aliás não veio a acontecer.

Porém, a polícia descobriria a conjura denominada «Revolta da Hidra» e efectuaria uma vaga de prisões. Mendes Leite foi preso, sendo solto em Novembro de 1848, após o acórdão da Relação «dar provimento ao agravo e reconhecer que / 50 / as testemunhas ou tinham deposto falsamente ou eram contraditórias e singulares».

Retomará a vida política em 1851, quando eleito deputado. Por esta altura, a Carta Constitucional sofrerá a primeira revisão. É então que se conseguirá no Acto Adicional a abolição de pena de morte por crimes políticos, partindo da iniciativa de Mendes Leite. Na defesa da sua proposta alegou que era um princípio já consagrado na Constituição Francesa e que não era um favor que pedia para qualquer partido, mas uma garantia para todos eles. Votada em 29 de Março de 1852, foi aprovada por 50 votos a favor e 32 contra, passando a ser lei do Estado.

Até ao fim da sua vida, Mendes Leite irá desempenhar diversos cargos públicos, sendo novamente deputado em 1856 e em 1863 e governador civil por três vezes. Colaborou ainda nos jornais «Campeão das Províncias” e “Distrito de Aveiro”.

Morreu em 1887 aquele que, em vida, foi um dos defensores intransigentes do liberalismo e do primado dos direitos dos cidadãos contra qualquer tipo de prepotência. Coerente com as suas ideias, abraçando fugazmente os ideais republicanos, nunca se negou a pegar em armas. Despojado de qualquer sentimento egoísta, jamais aceitaria uma recompensa pelos seus actos; e, dada a sua modéstia, deixou poucos resquícios que nos permitam um conhecimento mais profundo e mais realista da sua vida e da sua personalidade.

Emanuel Cunha

Nota – Estas palavras foram proferidas pelo autor na sessão comemorativa do centenário, promovida pela ADERAV e realizada no Salão Cultural do Município, em 21 de Novembro de 1987.

 

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