IRMANDADE DO SANTÍSSIMO
SACRAMENTO
DA FREGUESIA DA GLÓRIA
– A propósito de uma
comemoração jubilar
As Irmandades do Santíssimo
Sacramento vulgarizaram-se entre os católicos, nos finais da Idade
Média; graças a elas, floresceu e ainda se mantém a assiduidade e o
esplendor do culto eucarístico, particularmente na solenidade do Corpo
de Deus. Nos séculos XVI e XVII, a sua importância destacava-se
sobremaneira perante as outras confrarias; a própria autoridade
eclesiástica conferiu-lhes privilégios especiais, inclusive o de
precedência sobre as outras.
A Irmandade do Santíssimo
Sacramento da igreja de São Miguel era, pois, a de maior importância e
significado em Aveiro; mesmo após a divisão paroquial de 1572, quando se
instituíram as Irmandades do Santíssimo Sacramento em cada uma das
outras três freguesias, a se São Miguel tinha precedência honorífica e
litúrgica sobre elas, certamente por ser não apenas a mais antiga mas
também a da vetusta igreja matriz; e tanto era reconhecida como tal que,
por vezes, nos aparece denominada com a designação sumamente
dignificante de «arquiconfraria do Santíssimo Sacramento».
Aveiro não é rico em
documentos antigos, dado o clima húmido da região e a fragilidade do
material - pergaminho ou papel - juntamente com o pouco interesse em
arquivá-los e guardá-los convenientemente; para mais, todos sabemos como
o riquíssimo espólio de conventos e de igrejas foi depredado em certas
épocas da nossa história pátria. Podemos, portanto, suspeitar que os
primeiros documentos desta veneranda Irmandade tenham desaparecido no
rodar dos séculos e na sucessão das mordomias, estas mais vocacionadas
para uma missão cultual e gregária do que para registo e salvaguarda de
simples papéis. Há quatrocentos e cinquenta anos já ela existiria em
toda a sua pujança e respeitabilidade, procurando defender dos ataques
da heresia protestante a doutrina católica e tradicional sobre a Sagrada
Eucaristia e dando esplendor público ao seu culto litúrgico, em missas e
procissões.
José Reinaldo Rangel de
Quadros Oudinot, nos finais do século XIX, leu o mais antigo documento
que encontrou, referente a esta Irmandade, que se guardava entre os
papéis da actual Confraria do Santíssimo Sacramento da freguesia da
Glória. Tratava-se de uma declaração notarial de 5 de Dezembro de 1541.
Neste dia, nas pousadas de Heitor Ribeiro, juiz ordinário, na presença
de Pedro André, mordomo, foi apresentado o testamento de João Fernandes
Prata, piloto, e de sua mulher Catarina Tavares Prata. Nesse testamento
deixava cada um deles a esta confraria metade de doze meios de uma
salina, sita no Remoinho da Cale, com a obrigação de doze missas anuais
por cada um dos testadores. Isto vem-nos demonstrar que a Irmandade do
Santíssimo Sacramento da freguesia de São Miguel, de Aveiro, já
existiria juridicamente erecta, gozando de personalidade e no pleno uso
legítimo de todos os deveres e direitos.
No território da actual
freguesia de Nossa Senhora da Glória, também existiu outra Irmandade do
Santíssimo Sacramento, erecta na igreja paroquial do Espírito Santo.
Este antigo templo erguia-se no sítio onde hoje é o largo de Luís de
Camões ou das Cinco-Bicas; entrando em ruína e praticamente abandonado a
partir de 1835, acabou por ser demolido em 1858.
A mencionada Irmandade já
existia em 1610, como consta de uma escritura de aforamento, dessa data,
que Rangel de Quadros conheceu e referiu.
Dada a nova divisão da
cidade de Aveiro, em 1835, foi mister reorganizar e adaptar a vida
religiosa e administrativa das comunidades e associações católicas. No
que respeita às irmandades, umas foram extintas ou foram decaindo
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até desaparecerem do panorama citadino; outras sofreram uma reformulação
para se conformarem com a nova situação. Assim aconteceu às duas
Irmandades do Santíssimo Sacramento, uma da freguesia de São Miguel e
outra da freguesia do Espírito Santo, mas ambas agora sediadas na igreja
de Nossa Senhora da Glória; os irmãos, agrupando-se, deram naturalmente
origem a uma única Irmandade do Santíssimo Sacramento. Eis por que a
Irmandade do Santíssimo Sacramento da freguesia de Nossa Senhora da
Glória pode ser e é considerada como legítima e única herdeira da
história, da tradição e do património de duas confrarias aveirenses - a
veneranda Irmandade do Santíssimo Sacramento de São Miguel e a pelo
menos seiscentista Irmandade do Santíssimo Sacramento do Espírito Santo.
J. G.
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