Acesso à hierarquia superior.

Boletim n.º 8 - Ano IV - 1986


EXCERTOS   DA   «GRAMÁTICA

DA LINGOAGEM PORTUGUESA»

Por Fernão de Oliveira

 

CAPÍTULO I

A Linguagem é figura do entendimento, e assim é verdade que a boca diz quanto lhe manda o coração, e não outra coisa: antes não devia a Natureza criar outro mais disforme monstro do que são aqueles que falam o que não têm na vontade, porque, se as obras são prova do homem, como diz a suma verdade, Jesus Cristo, nosso Deus, e as palavras são imagem das obras, segundo Diógenes Laércio escreve que dizia Sólon, sabedor da Grécia: cada um fala como quem é: os bons falam virtudes, e os maliciosos maldades; os religiosos pregam desprezos do mundo e os cavaleiros blasonam suas façanhas. E esses sabem falar, os que entendem as coisas, porque das coisas nascem as palavras, e não das palavras as coisas, diz Misin, filósofo, e outra vez Cícero a Bruto e Quintiliano no oitavo livro, onde também disse que falar e pronunciar o que entendemos este só é um meio que Deus quis dar às almas racionais para se poderem comunicar entre si e com o qual, sendo espirituais, são sentidas dos corpos. Porém, não é tão espiritual a língua que não seja obrigada às leis do corpo. Mas, segundo a disposição da língua corporal, assim vemos formar diversas vozes, umas ciciosas, outras tártaras e muitas com muitos defeitos e também com suas perfeições. Porque, como este órgão da língua e boca é mais e melhor disposto, assim cumpre melhor seu ofício. Bem ou mal disposto pode ser em qualidades e feição; qualidades como seco ou húmido, feição como dentes grandes ou desviados; e também muitos falam muito mal só com mau costume, não mais. E é muito de culpar este defeito de as qualidades serem diversas, nas quais têm domínio as condições do céu e terra em que vivem os homens. Vem que umas gentes formam suas vozes mais no papo, como Caldeus e Arábigos, e outras nações cortam vozes, apressando-se mais em seu falar, mas nós falamos com grande repouso, como homens assentados. E não somente em cada voz por si, mas também no ajuntamento, e no som da linguagem pode haver primor ou falta entre nós. Não somente nestas, mas em muitas outras coisas tem a nossa língua vantagem, porque ela é antiga, ensinada, prospera e bem conversada e também exercitada em bons tratos e ofícios. / 48 /

 

CAPÍTULO VI

Letra é figura de voz. Estas dividimos em consoantes e vogais. As vogais têm em si voz e as consoantes não, senão junto com as vogais. Como a que é vogal e b que é consoante e não tem voz ao menos tão perfeita como a vogal.

As figuras destas letras chamam os Gregos caracteres, e os Latinos, notas, e nós lhe podemos chamar sinais. Os quais hão-de ser tantos como as pronunciações a que os Latinos chamam elementos e nós as podemos interpretar fundamentos das vozes e escritura.

Diz António de Nebrissa que temos na Espanha somente as letras latinas, mas, porque é verdade que são tantas e tais as letras como as vozes, nós diremos que de nós aos Latinos há aí muita diferença nas letras, porque também a temos nas vozes, e não é muito, pois somos bem apartados em tempos e terras, e não somente isto, mas uma mesma nação e gente de um tempo a outro muda as vozes e também as letras. Porque doutra maneira pronunciavam os nossos antigos este verbo tanger e doutra a pronunciamos nós, e os Latinos não podem dizer que a mesma letra era c quando tinha sempre uma só força com todas as vogais, como diz Quintiliano. E agora quando a cada vogal quase muda sua voz não diremos logo que temos as mesmas letras nem tantas como os Latinos, mas temos tantas figuras como eles e quase as mesmas ou imitações delas. E, contudo, não deixa de haver falta nesta parte, porque as nossas vozes requerem que tenhamos trinta e duas ou trinta e três letras, como se mostrará adiante.

Já confessámos ser verdade o que diz Marco Varrão nos livros da Etimologia, que se mudam as vozes e com elas é também necessário que se mudem as letras, mas não com tão pouco respeito como agora alguns fazem, os quais como chegam a Toledo logo se não lembram de sua terra, a quem muito devem. E em vez de apurarem a sua língua corrompem-na com emprestilhos, nos quais não podem ser perfeitos. Tenhamos, pois, muito resguardo nesta parte porque a língua e escritura é fiel tesoureira do bem de nossa sucessão e são, diz Quintiliano, as letras para entregar aos que vierem as coisas passadas.

 

CAPÍTULO VIII

Na nossa língua podemos dividir, antes, é necessário que dividamos as letras vogais em grandes e pequenas, como os Gregos, mas não já todas porque é verdade que temos a grande, a pequeno, e grande e e pequeno e também o grande e o pequeno. Mas não temos assim diversidade em i nem u.

Temos A grande, como Almada, e a pequeno, como Alemanha; temos e grande, como festa, e e pequeno, como festa, e temos o grande, como formosos, e o pequeno, como formoso. E, conhecendo esta verdade, havemos de confessar que temos oito vogais na nossa língua, mas não temos mais de cinco figuras, porque não queremos saber mais de nós que quanto nos ensinam os Latinos, aos quais diz Plínio que é pouco saber escoldrinhar as coisas alheias não nos entendendo a nós mesmos. / 49 /

Tem tanto poder o costume e também a natureza, que, ainda que nos pese, nos faz conhecer esta diversidade de vozes e faz que muitos em lugar destas vogais grandes escrevam duas, como quer que a voz não seja mais que uma, e outros põem-lhe aspiração, mas também estes erram porque lha não podem pôr em todos os lugares. O remédio que eu a isto posso dar é este: que nas vogais grandes dobremos as letras, mas de tal feição que o dobrar delas se faça em um mesmo lugar, e figura o a nesta forma α e e nesta ε e o também nesta outra ω e os pequenos nas formas acostumadas. E isto porque nos não podemos salvar com os Latinos, dizendo que a consoante ou consoantes e letras que vão adiante fazem grande ou pequena a letra vogal que fica, mas vemos que com umas mesmas letras soa uma vogal grande às vezes e às vezes pequena, segundo o costume quis, e não mais.

 

CAPÍTULO XII

Esta letra a pequena tem figura do ovo com um escudete diante e a ponta do escudo em baixo, cambada para cima. A sua pronunciação é como a boca mais aberta que das outras vogais e toda a boca igual, α grande tem figura de dois ovos ou duas figuras de ovo, uma pegada com a outra, como um só escudo diante. A pronunciação é com a mesma forma da boca, senão quando traz mais espírito.

Esta letra e pequeno tem figura de arco de besta com a polgueira de cima de todo em si dobrada, ainda que não amassada. A sua voz não abre já tanto a boca e descobre mais os dentes. A figura do ε grande parece uma boca bem aberta com sua língua no meio e tampouco não tem outra diferença da força de e pequeno, senão quanto enforma mais seu espírito.

Desta letra i vogal, sua figura é uma haste pequena, alevantada, com um ponto pequeno redondo em cima. Pronuncia-se com os dentes quase fechados e os beiços assim abertos como no e e a língua apertada com as gengivas de baixo e o espírito lançado com mais ímpeto.

A figura desta letra o pequeno é redonda toda por inteiro, como um arco de pipa, e a sua pronunciação faz isso mesmo: a boca redonda dentro e os beiços encolhidos em redondo. E a figura de ω grande parece duas faces com um nariz pelo meio ou dois 00 juntos ambos e tem a mesma pronunciação com mais força e espírito. E todavia estas letras vogais grandes fazem algum tanto mais movimento na boca que as pequenas.

Esta letra u vogal aperta as queixadas e prega os beiços, não deixando entre eles mais que só um canudo por onde sai um som escuro, o qual é a sua voz. A figura é das hastes alevantadas direitas, mas em baixo são atadas com uma linha que sai de uma delas. / 50 /

 

CAPÍTULO L

Alguns que escrevem livros acostumam fazer nos princípios prólogos de sua defensão, o que eu não fiz. E tenho esta razão, que me não quero queixar antes de ser ofendido. E mais: quem pode dizer mal de mim, que bom seja, pois aos maus não posso fugir, mas por qualquer parte sempre me hão-de maltratar. E, contudo, eu não dou licença que alguém possa ser meu juiz, senão quem ler os livros que eu li, e com tanto trabalho, e tão bem ou melhor entendidos. E ainda assim, a sentença há-de ser que para emendar meus erros escrevam da mesma matéria outras obras melhores, nas quais mostrem saber mais que eu, disto que falamos. E senão, tudo o que mais fizerem é murmurar, que não cabe entre homens sabedores, pois quanto à dos ignorantes não faço conta. E bem sei que não deixam de repreender senão o que não entendem. E mais, porque algum tanto me fiz nestes princípios breve, repreenderão mui asinha o que disse, e não saberão, louvando, manifestar o que calei (como diz Cícero no segundo livro a seu irmão). E não convido eu aos que mais sabem, cuidando que os não há aí no mundo, mas seria eu mais ditoso que minhas faltas fossem causa de proveito que sua doutrina pode fazer. Ser eu curto em meu escrever e não ser mui ordenado com bons exemplos, e a falta de algumas coisas que devera escrever e não fiz, e a dissonância de alguns termos novos nesta arte que pus, usando vozes próprias da nossa língua, tudo ante quem não folga de dizer mal terá escusa com olhar a novidade da obra, e como escrevi sem ter outro exemplo antes de mim. E isto muito mais escusara o defeito da ordem que tive em meu proceder, se foi errada. E contudo, o que com razão pode ser repreendido, eu confesso que o não escrevi com malícia e pode-se emendar. Antes peço a quem conhecer meus erros que os emende; e, todavia, não murmurando em sua casa, porque desfaz em si.

 

 

Página anterior

Índice Geral

Página seguinte

pp. 47-50