EXCERTOS DA
«GRAMÁTICA
DA LINGOAGEM PORTUGUESA»
Por Fernão de Oliveira
CAPÍTULO I
A Linguagem é figura do entendimento, e assim é verdade
que a boca diz quanto lhe manda o coração, e não outra coisa: antes não
devia a Natureza criar outro mais disforme monstro do que são aqueles
que falam o que não têm na vontade, porque, se as obras são prova do
homem, como diz a suma verdade, Jesus Cristo, nosso Deus, e as palavras
são imagem das obras, segundo Diógenes Laércio escreve que dizia Sólon,
sabedor da Grécia: cada um fala como quem é: os bons falam virtudes, e
os maliciosos maldades; os religiosos pregam desprezos do mundo e os
cavaleiros blasonam suas façanhas. E esses sabem falar, os que entendem
as coisas, porque das coisas nascem as palavras, e não das palavras as
coisas, diz Misin, filósofo, e outra vez Cícero a Bruto e Quintiliano no
oitavo livro, onde também disse que falar e pronunciar o que entendemos
este só é um meio que Deus quis dar às almas racionais para se poderem
comunicar entre si e com o qual, sendo espirituais, são sentidas dos
corpos. Porém, não é tão espiritual a língua que não seja obrigada às
leis do corpo. Mas, segundo a disposição da língua corporal, assim vemos
formar diversas vozes, umas ciciosas, outras tártaras e muitas com
muitos defeitos e também com suas perfeições. Porque, como este órgão da
língua e boca é mais e melhor disposto, assim cumpre melhor seu ofício.
Bem ou mal disposto pode ser em qualidades e feição; qualidades como
seco ou húmido, feição como dentes grandes ou desviados; e também muitos
falam muito mal só com mau costume, não mais. E é muito de culpar este
defeito de as qualidades serem diversas, nas quais têm domínio as
condições do céu e terra em que vivem os homens. Vem que umas gentes
formam suas vozes mais no papo, como Caldeus e Arábigos, e outras nações
cortam vozes, apressando-se mais em seu falar, mas nós falamos com
grande repouso, como homens assentados. E não somente em cada voz por
si, mas também no ajuntamento, e no som da linguagem pode haver primor
ou falta entre nós. Não somente nestas, mas em muitas outras coisas tem
a nossa língua vantagem, porque ela é antiga, ensinada, prospera e bem
conversada e também exercitada em bons tratos e ofícios.
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CAPÍTULO VI
Letra é figura de voz. Estas dividimos em consoantes e
vogais. As vogais têm em si voz e as consoantes não, senão junto com as
vogais. Como a que é vogal e b que é
consoante e não tem voz ao menos tão perfeita como a vogal.
As figuras destas letras chamam os Gregos caracteres, e
os Latinos, notas, e nós lhe podemos chamar sinais. Os quais hão-de ser
tantos como as pronunciações a que os Latinos chamam elementos e nós as
podemos interpretar fundamentos das vozes e escritura.
Diz António de Nebrissa que temos na Espanha somente as
letras latinas, mas, porque é verdade que são tantas e tais as letras
como as vozes, nós diremos que de nós aos Latinos há aí muita diferença
nas letras, porque também a temos nas vozes, e não é muito, pois somos
bem apartados em tempos e terras, e não somente isto, mas uma mesma
nação e gente de um tempo a outro muda as vozes e também as letras.
Porque doutra maneira pronunciavam os nossos antigos este verbo tanger e
doutra a pronunciamos nós, e os Latinos não podem dizer que a mesma
letra era c quando tinha sempre uma só força com todas as vogais, como
diz Quintiliano. E agora quando a cada vogal quase muda sua voz não
diremos logo que temos as mesmas letras nem tantas como os Latinos, mas
temos tantas figuras como eles e quase as mesmas ou imitações delas. E,
contudo, não deixa de haver falta nesta parte, porque as nossas vozes
requerem que tenhamos trinta e duas ou trinta e três letras, como se
mostrará adiante.
Já confessámos ser verdade o que diz Marco Varrão nos
livros da Etimologia, que se mudam as vozes e com elas é também
necessário que se mudem as letras, mas não com tão pouco respeito como
agora alguns fazem, os quais como chegam a Toledo logo se não lembram de
sua terra, a quem muito devem. E em vez de apurarem a sua língua
corrompem-na com emprestilhos, nos quais não podem ser perfeitos.
Tenhamos, pois, muito resguardo nesta parte porque a língua e escritura
é fiel tesoureira do bem de nossa sucessão e são, diz Quintiliano, as
letras para entregar aos que vierem as coisas passadas.
CAPÍTULO VIII
Na nossa língua podemos dividir, antes, é necessário que
dividamos as letras vogais em grandes e pequenas, como os Gregos, mas
não já todas porque é verdade que temos a grande, a
pequeno, e grande e e pequeno e também
o grande e o pequeno. Mas não temos assim
diversidade em i nem u.
Temos A grande, como Almada, e a
pequeno, como Alemanha; temos e grande, como festa, e
e pequeno, como festa, e temos o grande, como
formosos, e o pequeno, como formoso. E, conhecendo esta
verdade, havemos de confessar que temos oito vogais na nossa língua, mas
não temos mais de cinco figuras, porque não queremos saber mais de nós
que quanto nos ensinam os Latinos, aos quais diz Plínio que é pouco
saber escoldrinhar as coisas alheias não nos entendendo a nós mesmos.
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Tem tanto poder o costume e também a natureza, que, ainda
que nos pese, nos faz conhecer esta diversidade de vozes e faz que
muitos em lugar destas vogais grandes escrevam duas, como quer que a voz
não seja mais que uma, e outros põem-lhe aspiração, mas também estes
erram porque lha não podem pôr em todos os lugares. O remédio que eu a
isto posso dar é este: que nas vogais grandes dobremos as letras, mas de
tal feição que o dobrar delas se faça em um mesmo lugar, e figura o
a nesta forma α e e nesta ε
e o também nesta outra ω e os pequenos nas
formas acostumadas. E isto porque nos não podemos salvar com os Latinos,
dizendo que a consoante ou consoantes e letras que vão adiante fazem
grande ou pequena a letra vogal que fica, mas vemos que com umas mesmas
letras soa uma vogal grande às vezes e às vezes pequena, segundo o
costume quis, e não mais.
CAPÍTULO XII
Esta letra a pequena tem figura do ovo com
um escudete diante e a ponta do escudo em baixo, cambada para cima. A
sua pronunciação é como a boca mais aberta que das outras vogais e toda
a boca igual, α grande tem figura de dois ovos ou duas
figuras de ovo, uma pegada com a outra, como um só escudo diante. A
pronunciação é com a mesma forma da boca, senão quando traz mais
espírito.
Esta letra e pequeno tem figura de arco de
besta com a polgueira de cima de todo em si dobrada, ainda que não
amassada. A sua voz não abre já tanto a boca e descobre mais os dentes.
A figura do ε grande parece uma boca bem aberta com sua língua no
meio e tampouco não tem outra diferença da força de e
pequeno, senão quanto enforma mais seu espírito.
Desta letra i vogal, sua figura é uma haste
pequena, alevantada, com um ponto pequeno redondo em cima. Pronuncia-se
com os dentes quase fechados e os beiços assim abertos como no e
e a língua apertada com as gengivas de baixo e o espírito lançado com
mais ímpeto.
A figura desta letra o pequeno é redonda
toda por inteiro, como um arco de pipa, e a sua pronunciação faz isso
mesmo: a boca redonda dentro e os beiços encolhidos em redondo. E a
figura de ω grande parece duas faces com um nariz pelo
meio ou dois 00 juntos ambos e tem a mesma pronunciação
com mais força e espírito. E todavia estas letras vogais grandes fazem
algum tanto mais movimento na boca que as pequenas.
Esta letra u vogal aperta as queixadas e
prega os beiços, não deixando entre eles mais que só um canudo por onde
sai um som escuro, o qual é a sua voz. A figura é das hastes alevantadas
direitas, mas em baixo são atadas com uma linha que sai de uma delas.
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CAPÍTULO L
Alguns que escrevem livros acostumam fazer nos princípios
prólogos de sua defensão, o que eu não fiz. E tenho esta razão, que me
não quero queixar antes de ser ofendido. E mais: quem pode dizer mal de
mim, que bom seja, pois aos maus não posso fugir, mas por qualquer parte
sempre me hão-de maltratar. E, contudo, eu não dou licença que alguém
possa ser meu juiz, senão quem ler os livros que eu li, e com tanto
trabalho, e tão bem ou melhor entendidos. E ainda assim, a sentença
há-de ser que para emendar meus erros escrevam da mesma matéria outras
obras melhores, nas quais mostrem saber mais que eu, disto que falamos.
E senão, tudo o que mais fizerem é murmurar, que não cabe entre homens
sabedores, pois quanto à dos ignorantes não faço conta. E bem sei que
não deixam de repreender senão o que não entendem. E mais, porque algum
tanto me fiz nestes princípios breve, repreenderão mui asinha o que
disse, e não saberão, louvando, manifestar o que calei (como diz Cícero
no segundo livro a seu irmão). E não convido eu aos que mais sabem,
cuidando que os não há aí no mundo, mas seria eu mais ditoso que minhas
faltas fossem causa de proveito que sua doutrina pode fazer. Ser eu
curto em meu escrever e não ser mui ordenado com bons exemplos, e a
falta de algumas coisas que devera escrever e não fiz, e a dissonância
de alguns termos novos nesta arte que pus, usando vozes próprias da
nossa língua, tudo ante quem não folga de dizer mal terá escusa com
olhar a novidade da obra, e como escrevi sem ter outro exemplo antes de
mim. E isto muito mais escusara o defeito da ordem que tive em meu
proceder, se foi errada. E contudo, o que com razão pode ser
repreendido, eu confesso que o não escrevi com malícia e pode-se
emendar. Antes peço a quem conhecer meus erros que os emende; e,
todavia, não murmurando em sua casa, porque desfaz em si.
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