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Boletim n.º 8 - Ano IV - 1986


UM EXIBICIONISTA A «BOLIAR»

 

«– Oh que caravela esta!

Põe bandeiras, que é festa,

Vêrga alta, âncora a pique.»

(Fala do diabo no Auto da Barca do Inferno,
Gil Vicente).

 

A palavra exibicionista pretende pois aqui designar o fenómeno de ostentação que a imagística do moliceiro patenteia. Ao bolinar – ou baloiçar, segundo o registo indígena – nas águas da ria, o moliceiro transmite ao espectador a riqueza e a prosperidade do seu proprietário. Como vimos, também, as variações de pormenor, ao nível dos sinais componentes de cercaduras e de frisos, integram-se em esquemas geométricos e morfológicos bem definidos.

Aproximemo-nos mais ainda dos painéis pintados à proa e à ré. Numa análise, isolámos elementos geométricos abstractos e fitomórficos repetidos, elementos fitomórficos isolados, representações complexas de cenas do quotidiano, legendas – tudo isto em cores primárias! Cada painel apresenta no centro uma representação figurativa devidamente emoldurada em formas geométricas simples (círculo, quadrado, rectângulo) ou compostas (em «fechadura»), ou pela figuração de cortinas; no espaço central pode ainda aparecer um motivo floral composto isolado; por baixo, desenrola-se a legenda; finalmente todo este conjunto é envolvido por cercaduras onde se repetem elementos geométricos abstractos ou fitomórficos.

Como escrevi noutra ocasião: «Cada painel apresenta, uma organização regular; à medida que se aproximam da periferia, as decorações tornam-se mais geometrizadas».(1)  / 26 /

Por complemento, do ponto de vista do espectador, cada painel apresenta uma organização centrípeta, na medida em que (con)centra o olhar.

Há de certo modo, um dinamismo cénico nestas pinturas, realçado por algumas das molduras que enquadram o motivo central. Frequentemente, sobretudo nos painéis da ré onde, como vimos, a temática é mais liberal, a legenda reforça a impressão de estarmos perante um fragmento de uma peça de teatro.

Em conclusão, podemos afirmar que cada painel apresenta uma estrutura idêntica submetida a três características fundamentais:

– uma figuração central devidamente emoldurada por sinais tanto mais geometrizados quanto periféricos;

– uma legenda sob a figuração central: – uma estratégia de concentração do olhar do espectador.

Esta estrutura possibilita criações diferentes. Os quatro painéis de cada embarcação têm, por regra, uma autoria comum que se pode identificar, ou não, com a figura do construtor naval. Naturalmente, o conjunto dos quatro painéis do mesmo barco, manifesta um estilo. Por estilo entenda-se:

a) – A posse de um conjunto de processos técnicos – tipos de tintas e gama de cores, instrumentos utilizados e existência ou inexistência de moldes, modelos para soluções geométricas, etc.;

b) – O modo de gerar as pinturas – recurso ou não a esbocetos, reprodução ou não de imagens de proveniência diversa;

c) – A existência de um vocabulário plástico pessoal, socialmente integrado.

Seria pois interessante fazer o levantamento e a análise dos diversos estilos evidenciados. Porém, o estudo exaustivo desta matéria pressupõe o conhecimento de todos os exemplares produzidos ao longo do tempo. Esta condição prévia é dificultada sobretudo pela curta duração de cada painel e pela relativa dificuldade na identificação dos restauradores. A recolha de imagens a que procedi pode constituir uma contribuição neste sentido.

É interessante, por exemplo, verificar as diferenças de estilo entre dois pintores contemporâneos: Jacinto Vieira da Silva e Avelino Marcelo. O primeiro, que esteve num país da Europa como emigrante, evidencia uma certa erudição no tratamento gráfico e pictórico, uma inspiração quase literária (alguns destes painéis sugerem certas páginas de revistas de piadas), com maior peso da componente meramente decorativa. / 27 /

Avelino Marcelo manifesta uma maior simplicidade de traçado com a contrapartida de se repetir mais uma temática centrada nas preocupações da comunidade rural.

Num e noutro caso, podemos dizer não se verificar uma adulteração dos modelos tradicionais.

Noutros exemplares, porém, acontece manifestarem-se elementos perturbadores, seja ao nível dos temas, seja ao nível do respectivo  tratamento pictórico. No primeiro caso, como exemplo, registam-se uma série de painéis já desaparecidos onde o tema central era a representação de um campino a cavalo.

Diríamos estar na lezíria ribatejana e não na Ria de Aveiro! Afinal, a explicação revelar-se-ia simples: fora exactamente um ribatejano «dotado» que, durante a sua estadia nesta região, esgalhara estes painéis de temática tão insólita.


Com este exemplar, onde se vislumbra a representação do emblema da vila da Murtosa no centro do painel, podemos já falar em adulteração.

Como vimos no penúltimo capítulo, os painéis de proa apresentam em regra uma maior fidelidade a modelos temáticos estabelecidos; este facto tem como contra-ponto a limitação temática e pictórica. Na ré, pelo contrário, a liberdade é maior: os temas diversificam-se, «soltam-se» as legendas e, por vezes, inventam-se outros frisos.

Quando a pintura é entregue aos construtores navais, a proa ostenta geralmente as figuras de um monarca ou de um cavaleiro; num e noutro / 28 / caso, trata-se do registo da autoridade.

Curiosamente, em regra, a legenda anota o nome do construtor e por vezes o concelho e a data.

Na ré tem então lugar, de modo mais definitivo, a afirmação do estilo... Vêm à superfície as preocupações e o imaginário do criador-construtor. Depois, destacando-se na negrura da pá-do-Ieme, um sinal icónico faz as vezes da assinatura.

Face às relações estruturais explicitadas neste e nos capítulos anteriores, podemos distinguir três grandes grupos no universo dos painéis pintados nos moliceiros:

– um grupo que se caracteriza pela fidelidade, limitando a um pequeno número os motivos da figuração central;

– um grupo que se caracteriza pela inovação no tratamento dos temas centrais;

– um grupo que adultera a própria organização do painel e quase sempre subverte a distribuição coerente da sua imagística.

Este último constitui uma faceta negativa, do ponto de vista do património cultural da região, que, por isso mesmo, seria desejável manter-se nos limites da sua pequenez.

No segundo grupo encontram-se exemplares / 29 / onde se acrescentam elementos ao registo tradicionalmente fixado.


Neste caso, a figuração de um chefe de quina é somada à imagem tradicional de um monarca. Há, de certo modo, o reforço do tema da autoridade, pelo recurso a um sinal dos tempos.

Encontram-se também temas que se inscrevem e registam fenómenos sociais; a emigração é um deles (lembremos que o distrito de Aveiro tem apresentado uma alta taxa). Num nível mais particularizado, a figuração de trajes (mini-saia, por exemplo) ou de posturas (menina ao telefone, por exemplo) é revelador das próprias transformações sociais verificadas.

Assim, a realidade social rebate-se nas pinturas dos moliceiros. Nessa qualidade, elas são sinais de uma dinâmica social. Parece que Afonso / 30 / Costa, Sidónio Pai, o rei D. Manuel,(2) bem como muitos outros vultos da nossa História têm tido honras de figuras centrais.

Também o desporto e os desportistas são registados. Já se viu Eusébio(3) flutuar nas águas da Ria!

Outros temas, de carácter religioso, profissional, satírico, podem animar os motivos centrais. No conjunto, eles revelam o próprio imaginário popular. Assim, em vez de «textos» de História, estas pinturas são sinais de uma história imaginária, mítica, com os seus heróis, os seus malandrins, as suas tragédias...

Para conseguir reter o olhar do espectador uma legenda é acrescentada às imagens pintadas. Ora, a legenda e o motivo central – se quisermos, a mensagem verbal e a mensagem icónica – raramente são correspondentes. Por / 31 / exemplo, na conhecida imagem do cavaleiro, a legenda correspondente seria qualquer coisa como O CAVALEIRO; neste caso, o resultado seria algo redundante em matéria de informação e, portanto, pouco motivador para o espectador. Por isso mesmo, para espicaçar a sua curiosidade, e, por extensão, para lhe reter o olhar, a mensagem verbal não coincide imediatamente com a mensagem icónica. Trata-se, em suma, de dois textos que se interseccionam, ou se relacionam, obrigando o público ao exercício da inteligência e da imaginação.

Se fosse possível e legítimo hierarquizar os painéis pintados nos moliceiros quanto ao seu valor patrimonial, seria, depois da fidelidade às relações estruturais tradicionalmente estabelecidas, este o critério mais importante: o recurso à inteligência e imaginação do espectador.

No meu ponto de vista, estes dois princípios deveriam orientar os juízos valorativos que presidem à distribuição de prémios por ocasião dos concursos de painéis. (4)

_________________________________________

(1) – GUIMARÃES, Daniel – «A decoração do moliceiro», Boletim Municipal de Aveiro, Aveiro, ed. da Câmara Municipal de Aveiro, n.º 2, ano I, 1983, p. 29.

(2) – SOUTO, Alberto – «Ria de Aveiro - a estética dos seus barcos», Pátria revista porto de cultura, Vor. I, n. os 1-2, ed. Pátria, Gaia, MCMXXXI.

(3) – SARABANDO, João – «Eusébio na arte popular», “O Norte Desportivo”, 25 de Junho de 1967.

(4) – Actualmente, tem lugar um concurso de painéis de moliceiros, integrado nas festas tradicionais de S. Paio, na Torreira.

 

 

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