UM EXIBICIONISTA A «BOLIAR»
«– Oh que caravela esta!
Põe bandeiras, que é festa,
Vêrga alta, âncora a pique.»
(Fala do diabo no Auto da Barca do Inferno,
Gil Vicente).
A palavra exibicionista pretende pois aqui designar o
fenómeno de ostentação que a imagística do moliceiro patenteia. Ao
bolinar – ou baloiçar, segundo o registo indígena – nas águas da ria, o
moliceiro transmite ao espectador a riqueza e a prosperidade do seu
proprietário. Como vimos, também, as variações de pormenor, ao nível dos
sinais componentes de cercaduras e de frisos, integram-se em esquemas
geométricos e morfológicos bem definidos.
Aproximemo-nos mais ainda dos painéis pintados à proa e à
ré. Numa análise, isolámos elementos geométricos abstractos e
fitomórficos repetidos, elementos fitomórficos isolados, representações
complexas de cenas do quotidiano, legendas – tudo isto em cores
primárias! Cada painel apresenta no centro uma representação figurativa
devidamente emoldurada em formas geométricas simples (círculo, quadrado,
rectângulo) ou compostas (em «fechadura»), ou pela figuração de
cortinas; no espaço central pode ainda aparecer um motivo floral
composto isolado; por baixo, desenrola-se a legenda; finalmente todo
este conjunto é envolvido por cercaduras onde se repetem elementos
geométricos abstractos ou fitomórficos.
Como escrevi noutra ocasião: «Cada painel apresenta, uma
organização regular; à medida que se aproximam da
periferia, as decorações tornam-se mais geometrizadas».(1)
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Por complemento, do ponto de vista do espectador, cada
painel apresenta uma organização centrípeta, na medida em que (con)centra
o olhar.
Há de certo modo, um dinamismo cénico nestas pinturas,
realçado por algumas das molduras que enquadram o motivo central.
Frequentemente, sobretudo nos painéis da ré onde, como vimos, a temática
é mais liberal, a legenda reforça a impressão de estarmos perante um
fragmento de uma peça de teatro.
Em conclusão, podemos afirmar que cada painel apresenta
uma estrutura idêntica submetida a três características fundamentais:
– uma figuração central devidamente emoldurada por sinais
tanto mais geometrizados quanto periféricos;
– uma legenda sob a figuração central: – uma estratégia
de concentração do olhar do espectador.
Esta estrutura possibilita criações diferentes. Os quatro
painéis de cada embarcação têm, por regra, uma autoria comum que se pode
identificar, ou não, com a figura do construtor naval. Naturalmente, o
conjunto dos quatro painéis do mesmo barco, manifesta um estilo. Por
estilo entenda-se:
a) – A posse de um conjunto de processos técnicos – tipos
de tintas e gama de cores, instrumentos utilizados e existência ou
inexistência de moldes, modelos para soluções geométricas, etc.;
b) – O modo de gerar as pinturas – recurso ou não a
esbocetos, reprodução ou não de imagens de proveniência diversa;
c) – A existência de um vocabulário plástico pessoal,
socialmente integrado.
Seria pois interessante fazer o levantamento e a análise
dos diversos estilos evidenciados. Porém, o estudo exaustivo desta
matéria pressupõe o conhecimento de todos os exemplares produzidos ao
longo do tempo. Esta condição prévia é dificultada sobretudo pela curta
duração de cada painel e pela relativa dificuldade na identificação dos
restauradores. A recolha de imagens a que procedi pode constituir uma
contribuição neste sentido.
É interessante, por exemplo, verificar as diferenças de estilo entre
dois pintores contemporâneos: Jacinto Vieira da Silva e Avelino Marcelo.
O primeiro, que esteve num país da Europa como emigrante, evidencia uma
certa erudição no tratamento gráfico e pictórico, uma inspiração quase
literária (alguns destes painéis sugerem certas páginas de revistas de
piadas), com maior peso da componente meramente decorativa.
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Avelino Marcelo manifesta uma maior simplicidade de
traçado com a contrapartida de se repetir mais uma temática centrada nas
preocupações da comunidade rural.
Num e noutro caso, podemos dizer não se verificar uma
adulteração dos modelos tradicionais.
Noutros exemplares, porém, acontece manifestarem-se
elementos perturbadores, seja ao nível dos temas, seja ao nível do
respectivo tratamento pictórico. No primeiro caso, como exemplo,
registam-se uma série de painéis já desaparecidos onde o tema central
era a representação de um campino a cavalo.
Diríamos estar na lezíria ribatejana e não na Ria de
Aveiro! Afinal, a explicação revelar-se-ia simples: fora exactamente um
ribatejano «dotado» que, durante a sua estadia nesta região, esgalhara
estes painéis de temática tão insólita.
Com este exemplar, onde se vislumbra a representação do
emblema da vila da Murtosa no centro do painel, podemos já falar em
adulteração.
Como vimos no penúltimo capítulo, os painéis de proa
apresentam em regra uma maior fidelidade a modelos temáticos
estabelecidos; este facto tem como contra-ponto a limitação temática e
pictórica. Na ré, pelo contrário, a liberdade é maior: os temas
diversificam-se, «soltam-se» as legendas e, por vezes, inventam-se
outros frisos.
Quando a pintura é entregue aos construtores navais, a
proa ostenta geralmente as figuras de um monarca ou de um cavaleiro; num
e noutro
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caso, trata-se do registo da autoridade.
Curiosamente, em regra, a legenda anota o nome do
construtor e por vezes o concelho e a data.
Na ré tem então lugar, de modo mais definitivo, a
afirmação do estilo... Vêm à superfície as preocupações e o imaginário
do criador-construtor. Depois, destacando-se na negrura da pá-do-Ieme,
um sinal icónico faz as vezes da assinatura.
Face às relações estruturais explicitadas neste e nos
capítulos anteriores, podemos distinguir três grandes grupos no universo
dos painéis pintados nos moliceiros:
– um grupo que se caracteriza pela fidelidade, limitando
a um pequeno número os motivos da figuração central;
– um grupo que se caracteriza pela inovação no tratamento
dos temas centrais;
– um grupo que adultera a própria organização do painel e
quase sempre subverte a distribuição coerente da sua imagística.
Este último constitui uma faceta negativa, do ponto de
vista do património cultural da região, que, por isso mesmo, seria
desejável manter-se nos limites da sua pequenez.
No segundo grupo encontram-se exemplares
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onde se acrescentam elementos ao registo tradicionalmente fixado.
Neste caso, a figuração de um chefe de quina é somada à
imagem tradicional de um monarca. Há, de certo modo, o reforço do tema
da autoridade, pelo recurso a um sinal dos tempos.
Encontram-se também temas que se inscrevem e registam
fenómenos sociais; a emigração é um deles (lembremos que o distrito de
Aveiro tem apresentado uma alta taxa). Num nível mais particularizado, a
figuração de trajes (mini-saia, por exemplo) ou de posturas (menina ao
telefone, por exemplo) é revelador das próprias transformações sociais
verificadas.
Assim, a realidade social rebate-se nas pinturas dos
moliceiros. Nessa qualidade, elas são sinais de uma dinâmica social.
Parece que Afonso
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Costa, Sidónio Pai, o rei D. Manuel,(2)
bem como muitos outros vultos da nossa História têm tido honras de
figuras centrais.
Também o desporto e os desportistas são registados. Já se
viu Eusébio(3)
flutuar nas águas da Ria!
Outros temas, de carácter religioso, profissional,
satírico, podem animar os motivos centrais. No conjunto, eles revelam o
próprio imaginário popular. Assim, em vez de «textos» de História, estas
pinturas são sinais de uma história imaginária, mítica, com os seus
heróis, os seus malandrins, as suas tragédias...
Para conseguir reter o olhar do espectador uma legenda é
acrescentada às imagens pintadas. Ora, a legenda e o motivo central – se
quisermos, a mensagem verbal e a mensagem icónica – raramente são
correspondentes. Por
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exemplo, na conhecida imagem do cavaleiro, a legenda correspondente
seria qualquer coisa como O CAVALEIRO; neste caso, o resultado seria
algo redundante em matéria de informação e, portanto, pouco motivador
para o espectador. Por isso mesmo, para espicaçar a sua curiosidade, e,
por extensão, para lhe reter o olhar, a mensagem verbal não coincide
imediatamente com a mensagem icónica. Trata-se, em suma, de dois textos
que se interseccionam, ou se relacionam, obrigando o público ao
exercício da inteligência e da imaginação.
Se fosse possível e legítimo hierarquizar os painéis
pintados nos moliceiros quanto ao seu valor patrimonial, seria, depois
da fidelidade às relações estruturais tradicionalmente estabelecidas,
este o critério mais importante: o recurso à inteligência e imaginação
do espectador.
No meu ponto de vista, estes dois princípios deveriam
orientar os juízos valorativos que presidem à
distribuição de prémios por ocasião dos concursos de painéis.
(4)
_________________________________________
(1)
– GUIMARÃES, Daniel – «A decoração do moliceiro», Boletim
Municipal de Aveiro, Aveiro, ed. da Câmara Municipal de Aveiro, n.º 2,
ano I, 1983, p. 29.
(2)
– SOUTO, Alberto – «Ria de Aveiro - a estética dos seus barcos», Pátria
revista porto de cultura, Vor. I, n. os 1-2, ed. Pátria, Gaia, MCMXXXI.
(3)
– SARABANDO, João – «Eusébio na arte popular», “O Norte Desportivo”, 25
de Junho de 1967.
(4)
– Actualmente, tem lugar um concurso de painéis de moliceiros, integrado
nas festas tradicionais de S. Paio, na Torreira.
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