Acesso à hierarquia superior.

Boletim n.º 8 - Ano IV - 1986


ARABESCOS E FLORES

 

«Os barcos vestem-se como se vestiram os corpos, e se enfeitaram, guarneceram, defenderam com o que vestiram e como os vestiram. Cobriram-se de faixas, listas, grades, sinais, como o homem se cobriu, e depois guarneceu casas, vasos, cestos, sacos, arcas, leitos, tudo quanto lhe servisse e de que se servisse» .

Luís Chaves

 

As relações estruturais postas em destaque não excluem a proliferação de sinais gráficos. Mas, nunca é demais repeti-lo, esta proliferação que nos espanta no moliceiro, esta riqueza imagística que o cobre, acontece no quadro de uma lógica de oposições bilaterais.

Numa primeira aproximação à decoração patente no moliceiro restar-nos-ia a afirmação do espanto perante a riqueza e complexidade da mesma. Esta reacção de espectador desprevenido encontra-se em muitos dos autores que têm escrito sobre os barcos da ria. Enaltece-se o resultado desse espanto, dando azo às mais vastas considerações poéticas. Há quem, ao pro-curar a razão das coisas, ou simplesmente imerso na primeira impressão do olhar, faça rebater sobre o casco do moliceiro as características da paisagem. É assim que se vê no lançamento da proa a reprodução do peito de um inefável palmípede, nos frisos e cercaduras o registo de plantas da ria e do ondular das águas... Trata-se, assim o creio, de uma visão reducionista e incompleta, na medida em que supõe a redução de um fenómeno de ordem cultural a fenómenos naturais. / 23 /

Na posição do espectador, também eu me admiro ao ver estes barcos ostentando as suas cores de festa, me divirto ao ler a suas legendas picarescas... De certo modo, esta admiração só tem lugar porque a paisagem apresenta uma homogeneidade de cor e de formas. Por mais que uma vez me encontrei a pensar que a imagística do moliceiro era como é, por oposição – e não simpatia – com a paisagem. E, deixando vogar a ideia, pus-me a conceber que todos os sinais pintados no moliceiro e nos outros barcos da ria mais não fazem que capturar a luz em formas oriundas do passado – essa luz que na ria não tem dono. Então, os sinais flutuantes seriam modos de aprisionar a luz, como as redes ou os anzóis pescam as criaturas da água.

Podemos obviamente continuar a ver nos arabescos o registo de espécies naturais, embora seja disparate reduzir os mesmos a uma imitação cega do ambiente.

Por outro lado, as relações estruturais bilaterais postas em destaque podem ser insuficientes para a compreensão cabal desse conjunto de sinais que, no moliceiro, emoldura o motivo central e anima por vezes o friso do castelo de proa.

A proliferação de ícones nestas cercaduras só se manifesta, digamos que à superfície...

De um ponto de vista morfológico todos eles são geométricos. E mais! Encontramos um ascendente geométrico comum a três grupos desses frisos, genericamente aqui denominados por arabescos.

Parece pois pouco razoável ver nestes arabescos a representação estilizada de moliços, ondulação ou conchas. Tratam-se com efeito de ornamentos abstractos que, por isso mesmo, apresentam maior fidelidade aos modelos gráficos estabelecidos.(1)

Ainda nas cercaduras e frisos encontramos um grupo vasto de ícones fitomórficos.

Aqui verifica-se maior variabilidade de formas. Em todos eles, porém, os referentes reconhecem-se como flores.

Arabescos e flores espalham-se pois pelo «corpo» do moliceiro e hoje chegam mesmo a revelar-se ainda timidamente em algumas das outras embarcações tradicionais da Ria. Mas; perdida que fica a sua intenção propiciatória, podemos naturalmente perguntar para que servem estes sinais...

Basicamente, eles mantêm e alimentam uma intenção estética. Por esta, entendo o intuito de se fazer bonito. O moliceiro quis fazer-se bonito… Por isso, se vestiu como se vestem os corpos, se enfeitou, adornou, se cobriu de listas, faixas, grades, sinais – como escreveu Luís Chaves na passagem citada na abertura deste capítulo.(2)

Em diversas ocasiões, mais que um autor tem destacado a semelhança que se verifica entre a imagística dos barcos da ria, em especial do moliceiro, e a decoração de cangas e jugos na região. Esta relação de simpatia que existe entre / 24 / o moliceiro do norte e a canga vareira verifica-se a diversos títulos:

– geograficamente, ocupam regiões comuns ou muito próximas; alguns dos construtores mestres barqueiros e jugueiros respectivamente – têm as suas oficinas nos mesmos concelhos; – tematicamente, apresentam alguns motivos comuns – onde se destaca o vaso florido e o signo salimão – e outros similares, ao nível de arabescos.

– morfologicamente, a decoração da canga vareira organiza-se de modo semelhante à dos painéis pintados no moliceiro: existe um tema central emoldurado por diversos desenhos que se repetem em frisos.

Há finalmente um facto que irmana em definitivo o moliceiro com o carro de bois e, por extensão, os painéis pintados com a decoração da canga: ambos cumprem funções agrícolas, ambos são originariamente alfaias dos lavradores locais. E, obviamente, num e noutro caso, a imagística inscreve-se na ordem social e não na ordem natural. De um ponto de vista de funcionalidade imediata, esta riqueza icónica que um e outro ostentam é nula, isto é, as pinturas em nada favorecem a apanha do moliço ou o trabalho dos bois. Ao nível da crença indígena elas poderão propiciar alguma protecção... Mas... Não será também esta crença um registo de uma outra intenção que é a de ostentar o próprio poder? Não será a proliferação de sinais um modo inocente de exibicionismo?

Na esclarecida obra Sistemas de Atrelagem dos bois em Portugal, Ernesto Veiga de Oliveira, Fernando Galhano e Benjamim Pereira datam o exemplar mais antigo de jugos decorados na segunda metade do século XIX.(3) Antes desta data, não se encontra decoração na variante vareira dos jugos de tábuas. Este facto inclui-se, segundo os autores, num conjunto de modificações verificadas ao nível do quotidiano dos lavradores a norte da ria em meados do século XIX; enriquecimento das construções e dos traçados das casas de lavoura, ostentação e enriquecimento de objectos de uso comum, melhoria geral das condições de vida. Uma série de razões justificariam esta prosperidade: as reformas agrárias de Mouzinho da Silveira de 1832 e 1834, a legislação complementar de 1846 e 1860, a política de construção de estradas do fontismo, o dinheiro dos retornos do Brasil. Escrevem os autores:

"Os grandes jugos lavrados – e as demais alfaias e objectos que mencionamos - terão portanto surgido apenas por volta dos meados do século XIX, como mais um aspecto e manifestação desse renovo, prosperidade e euforia decorrentes das reformas liberais no plano da vida rural, naquela época e naquelas regiões. Eles representarão seja uma criação original, seja, mais provavelmente, o enriquecimento e desenvolvimento de uma dessas anteriores cangas de tábua, modestas e sem qualquer valor».(4)

Ora, o moliceiro começou por ser uma alfaia do lavrador local. O aparecimento da profissão de / 25 / moliceiro surge quando a procura, determinada pelo próprio crescimento rural, senão mesmo a elegância e altivez das suas formas, constituem o resultado de um boom local.

Aquilo que se passa com a canga vareira provavelmente a descendente «endinheirada» de uma tosca canga de tábuas – passar-se-ia finalmente com o moliceiro – o descendente enobrecido de uma embarcação local indiferenciada.

Em conclusão, esses sinais radiosos, essas cores de festa que capturam a luz, existem para que o moliceiro seja tão bonito, quanto próspero é o seu patrão.

__________________________________

(1)  – DUNARE, Nicole – Criteria for the classification of folk ornaments: «Estudos diacrónicos mostraram que a ornamentação geométrica é conservadora e tem uma considerável continuidade. Pelo contrário, a ornamentação livre tem provado ser mais receptiva à mudança».

(2) – CHAVES, Luís – «A Decoração dos nossos Barcos», Broteria, vol. 41, 1945, p. 52.

(3) – OLIVEIRA, Ernesto Veiga de –, GALHANO, Fernando – e PEREIRA, Benjamim – Sistemas de Atrelagem dos bois em Portugal, Lisboa, Inst. Alta Cultura – Centro de Estudos de Etnologia, 1973.

p. 82: «O exemplar datado mais antigo que até agora encontramos, é de 1868».

(4) – Op. Cit., p. 87.

 

 

Página anterior

Índice Geral

Página seguinte

pp. 22-25