ARABESCOS E FLORES
«Os barcos vestem-se como se vestiram os corpos, e se
enfeitaram, guarneceram, defenderam com o que vestiram e como os
vestiram. Cobriram-se de faixas, listas, grades, sinais, como o homem se
cobriu, e depois guarneceu casas, vasos, cestos, sacos, arcas, leitos,
tudo quanto lhe servisse e de que se servisse» .
Luís Chaves
As relações estruturais postas em destaque não excluem a
proliferação de sinais gráficos. Mas, nunca é demais repeti-lo, esta
proliferação que nos espanta no moliceiro, esta riqueza imagística que o
cobre, acontece no quadro de uma lógica de oposições bilaterais.
Numa primeira aproximação à decoração patente no
moliceiro restar-nos-ia a afirmação do espanto perante a riqueza e
complexidade da mesma. Esta reacção de espectador desprevenido
encontra-se em muitos dos autores que têm escrito sobre os barcos da
ria. Enaltece-se o resultado desse espanto, dando azo às mais vastas
considerações poéticas. Há quem, ao pro-curar a razão das coisas, ou
simplesmente imerso na primeira impressão do olhar, faça rebater sobre o
casco do moliceiro as características da paisagem. É assim que se vê no
lançamento da proa a reprodução do peito de um inefável palmípede, nos
frisos e cercaduras o registo de plantas da ria e do ondular das
águas... Trata-se, assim o creio, de uma visão reducionista e
incompleta, na medida em que supõe a redução de um fenómeno de ordem
cultural a fenómenos naturais.
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Na posição do espectador, também eu me admiro ao ver
estes barcos ostentando as suas cores de festa, me divirto ao ler a suas
legendas picarescas... De certo modo, esta admiração só tem lugar porque
a paisagem apresenta uma homogeneidade de cor e de formas. Por mais que
uma vez me encontrei a pensar que a imagística do moliceiro era como é,
por oposição – e não simpatia – com a paisagem. E, deixando vogar a
ideia, pus-me a conceber que todos os sinais pintados no moliceiro e nos
outros barcos da ria mais não fazem que capturar a luz em formas
oriundas do passado – essa luz que na ria não tem dono. Então, os
sinais flutuantes seriam modos de aprisionar a luz, como as
redes ou os anzóis pescam as criaturas da água.
Podemos obviamente continuar a ver nos arabescos o
registo de espécies naturais, embora seja disparate reduzir os mesmos a
uma imitação cega do ambiente.
Por outro lado, as relações estruturais bilaterais postas
em destaque podem ser insuficientes para a compreensão cabal desse
conjunto de sinais que, no moliceiro, emoldura o motivo central e anima
por vezes o friso do castelo de proa.
A proliferação de ícones nestas cercaduras só se
manifesta, digamos que à superfície...
De um ponto de vista morfológico todos eles são
geométricos. E mais! Encontramos um ascendente geométrico comum a três
grupos desses frisos, genericamente aqui denominados por arabescos.
Parece pois pouco razoável ver nestes arabescos a
representação estilizada de moliços, ondulação ou conchas. Tratam-se com
efeito de ornamentos abstractos que, por isso mesmo,
apresentam maior fidelidade aos modelos gráficos estabelecidos.(1)
Ainda nas cercaduras e frisos encontramos um grupo vasto
de ícones fitomórficos.
Aqui verifica-se maior variabilidade de formas. Em todos
eles, porém, os referentes reconhecem-se como flores.
Arabescos e flores espalham-se pois pelo «corpo» do
moliceiro e hoje chegam mesmo a revelar-se ainda timidamente em algumas
das outras embarcações tradicionais da Ria. Mas; perdida que fica a sua
intenção propiciatória, podemos naturalmente perguntar para que servem
estes sinais...
Basicamente, eles mantêm e alimentam uma intenção
estética. Por esta, entendo o intuito de se fazer bonito. O moliceiro
quis fazer-se bonito… Por isso, se vestiu como se vestem os corpos, se
enfeitou, adornou, se cobriu de listas, faixas, grades,
sinais – como escreveu Luís Chaves na passagem citada na abertura
deste capítulo.(2)
Em diversas ocasiões, mais que um autor tem destacado a
semelhança que se verifica entre a imagística dos barcos da ria, em
especial do moliceiro, e a decoração de cangas e jugos na região. Esta
relação de simpatia que existe entre
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o moliceiro do norte e a canga vareira verifica-se a diversos títulos:
– geograficamente, ocupam regiões comuns ou muito
próximas; alguns dos construtores mestres barqueiros e jugueiros
respectivamente – têm as suas oficinas nos mesmos concelhos; –
tematicamente, apresentam alguns motivos comuns – onde se destaca o vaso
florido e o signo salimão – e outros similares, ao nível de arabescos.
– morfologicamente, a decoração da canga vareira
organiza-se de modo semelhante à dos painéis pintados no moliceiro:
existe um tema central emoldurado por diversos desenhos que se repetem
em frisos.
Há finalmente um facto que irmana em definitivo o
moliceiro com o carro de bois e, por extensão, os painéis pintados com a
decoração da canga: ambos cumprem funções agrícolas, ambos são
originariamente alfaias dos lavradores locais. E, obviamente, num e
noutro caso, a imagística inscreve-se na ordem social e não na ordem
natural. De um ponto de vista de funcionalidade imediata, esta riqueza
icónica que um e outro ostentam é nula, isto é, as pinturas em nada
favorecem a apanha do moliço ou o trabalho dos bois. Ao nível da crença
indígena elas poderão propiciar alguma protecção... Mas... Não será
também esta crença um registo de uma outra intenção que é a de ostentar
o próprio poder? Não será a proliferação de sinais um modo inocente de
exibicionismo?
Na esclarecida obra Sistemas de Atrelagem dos bois em
Portugal, Ernesto Veiga de Oliveira, Fernando Galhano e Benjamim Pereira
datam o exemplar mais antigo de jugos decorados na
segunda metade do século XIX.(3)
Antes desta data, não se encontra decoração na variante vareira dos
jugos de tábuas. Este facto inclui-se, segundo os autores, num conjunto
de modificações verificadas ao nível do quotidiano dos lavradores a
norte da ria em meados do século XIX; enriquecimento das construções e
dos traçados das casas de lavoura, ostentação e enriquecimento de
objectos de uso comum, melhoria geral das condições de vida. Uma série
de razões justificariam esta prosperidade: as reformas agrárias de
Mouzinho da Silveira de 1832 e 1834, a legislação complementar de 1846 e
1860, a política de construção de estradas do fontismo, o dinheiro dos
retornos do Brasil. Escrevem os autores:
"Os grandes jugos lavrados – e as demais alfaias e
objectos que mencionamos - terão portanto surgido apenas por volta dos
meados do século XIX, como mais um aspecto e manifestação desse renovo,
prosperidade e euforia decorrentes das reformas liberais no plano da
vida rural, naquela época e naquelas regiões. Eles representarão seja
uma criação original, seja, mais provavelmente, o enriquecimento e
desenvolvimento de uma dessas anteriores cangas de
tábua, modestas e sem qualquer valor».(4)
Ora, o moliceiro começou por ser uma alfaia do lavrador
local. O aparecimento da profissão de
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moliceiro surge quando a procura, determinada pelo próprio crescimento
rural, senão mesmo a elegância e altivez das suas formas, constituem o
resultado de um boom local.
Aquilo que se passa com a canga vareira provavelmente a
descendente «endinheirada» de uma tosca canga de tábuas – passar-se-ia
finalmente com o moliceiro – o descendente enobrecido de uma embarcação
local indiferenciada.
Em conclusão, esses sinais radiosos, essas cores de festa
que capturam a luz, existem para que o moliceiro seja tão bonito, quanto
próspero é o seu patrão.
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(1)
– DUNARE, Nicole – Criteria for the classification of
folk ornaments: «Estudos diacrónicos mostraram que a ornamentação
geométrica é conservadora e tem uma considerável continuidade. Pelo
contrário, a ornamentação livre tem provado ser mais receptiva à
mudança».
(2)
– CHAVES, Luís – «A Decoração dos nossos Barcos», Broteria, vol.
41, 1945, p. 52.
(3)
– OLIVEIRA, Ernesto Veiga de –, GALHANO, Fernando – e PEREIRA, Benjamim
– Sistemas de Atrelagem dos bois em Portugal, Lisboa, Inst. Alta
Cultura – Centro de Estudos de Etnologia, 1973.
p. 82: «O exemplar datado mais antigo que até agora
encontramos, é de 1868».
(4)
– Op. Cit., p. 87.
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