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Boletim n.º 8 - Ano IV - 1986


EIXOS NA DECORAÇÃO

 

Quedemo-nos então no moliceiro e nas suas pinturas. Como é sabido, este barco apresenta quatro painéis com motivos diversos e legendas apropriadas. Não raro, nestes painéis de cores vivas, distinguem-se dois grupos: os de proa e os de ré. Reconhece-se vulgarmente existir um espírito diferente entre eles: na proa um maior cuidado de ornamentação com maior fidelidade a / 20 / motivos tradicionais; na ré, a presença de motivos mais sugestivos e legendas mais espirituosas. Esta análise, aqui apenas esboçada, sugere a existência de um eixo transversal a dividir a embarcação em dois pólos.

O espírito das decorações, que podemos caracterizar por, respectivamente, ser mais fiel a modelos tradicionais na proa e mais espontâneo na ré, acompanha e confirma as considerações feitas aos capítulos precedentes. Vimos já que, no interior da proa se concentram os objectos ou substâncias a proteger da humidade e se realizam funções «secas", enquanto na ré se concentram objectos ou substâncias «húmidas» e se realizam funções «húmidas». Certamente, a variação dos modelos icónicos entre as duas zonas corresponde à variação no carácter das funções praticadas.

Conduzir a embarcação – função basicamente assegurada pelo arrais posicionado na ré – é metaforicamente representada por imagens e legendas cuja liberdade se assemelha à do próprio condutor na orientação da embarcação. Também o espírito mais liberto dos painéis, por vezes picante ou jocoso, se pode associar, nesta operação metafórica, às funções de defecar e/ou urinar tradicionalmente concentradas na ré.

A complementaridade e oposição simétrica entre a proa e a ré verifica-se pois ao nível da respectiva funcionalidade e do «espírito da decoração». Esta verificação conduz directamente à ideia de que a «decoração» nos barcos em geral e no moliceiro em particular não é fortuita nem aleatória; ela integra-se nas estruturas morfológicas e funcionais da embarcação.

Contemplando os quatro painéis do moliceiro, o espectador rapidamente se aperceberá da sua diferença. Tratam-se com efeito de quatro painéis diferentes e não de dois iguais na proa e dois iguais na ré. Este facto introduz uma perturbação na consideração acima enunciada de um eixo transversal. Podemosnaturalmente atribui esta multiplicidade de painéis a uma riqueza imaginativa do seu criador(1) Esta explicação, digamos que psicológica, não parece todavia suficiente para a compreensão estrutural do moliceiro.

Trata-se pois de visualizar cada embarcação como um todo formado de partes onde se registam fenómenos solidários e inter-dependentes.

Regressemos ao interior do barco... Os painéis ficaram do lado de fora, numa exibição de cor e formas para o exterior. Eles constituíam a vertente extrovertida da embarcação, aquilo que se expõe. No interior, pelo contrário, ficam os sinais internos, a ser «consumidos» pela tripulação; estas marcas de cor, estes sinais abstractos ou figurativos, já enunciados, organizam/protegem o espaço interno da embarcação. Estamos de novo perante uma relação de oposição bilateral: espaço externo/espaço interno.

A imagística existente nestes dois espaços patenteia lógicas diferentes, embora tradicionalmente irmanadas em intenções propiciatórias e estéticas:

– no espaço externo há que ostentar e diversificar para reter o olhar do espectador; há como que uma organização cénica dos sinais, uma afirmação exibicionista, se quisermos uma lógica de espectáculo;

– no espaço interno, pelo contrário, a intenção já não é a de reter o olhar do espectador, mas sim a de organizar e de marcar o próprio espaço; impera pois uma lógica, digamos de arrumação.

Assim à imagística interna corresponde uma dinâmica centrípeta, de contenção, e à imagística externa corresponde a uma dinâmica centrífuga, de dispersão. Vemos, finalmente, a diversidade dos quatro painéis do moliceiro como uma manifestação desta dinâmica de dispersão.

Mas as oposições binárias não ficam por aqui. Se nos concentrarmos sobre a imagística interna, encontraremos um terceiro eixo, de sentido / 21 / longitudinal, que vai dividir o moliceiro em duas regiões complementares, de algum modo correspondentes aos dois bordos do barco.

Poderíamos denominar a priori estas duas regiões de bombordo e estibordo. Pessoalmente, prefiro utilizar outra terminologia – a região de barlavento e a região de sotavento. Barlavento e sotavento definem-se por relação com a direcção do vento: o primeiro designa o bordo que fica para o lado donde sopra o vento; o segundo designa o bordo contrário. Ora, esta terminologia, que tem o curioso registo indígena de por cima do vento e por baixo do vento, tem uma importante consequência: há reciprocidade entre os dois bordos do barco, isto é, o bombordo pode ser indiferentemente barlavento e sotavento, o mesmo se passando com o estibordo. As razões desta preferência estão no meu conhecimento local das condições de navegabilidade que obrigam constantemente ao bolinar(2) e ao próprio tipo de decoração.

A imagística interna do moliceiro já referida no capítulo anterior é constituída por pinturas e frisos nos vãos da ré, pelos signos icónicos e frisos pintados na porta do castelo de proa e, já como extensão, pelas imagens nos golfiões e pelo arranjo floral que se prolonga na bica.

De todos estes sinais sempre me fascinaram as figurações ingénuas de um homem e de uma mulher nos golfiões. Comecei por procurar uma regra de registo em bombordo e estibordo destas duas figuras, mas não a encontrei... ambas podem apresentar um determinado barco um posicionamento oposto àquele que se oferece noutro.

Outro registo variável diz respeito à posição das figuras, uma relativamente à outra: podem estar de costas ou de frente, o que corresponde na expressão indígena à ideia de zanga ou de amizade entre namorados. Finalmente, os registos podem arrumar 4 modos, descritos no quadro.

Destes, os dois assinalados com * assumem maior frequência. Este facto prende-se certamente a razões morfológicas: os golfiões apresentam uma forma típica que favorece o registo daqueles dois modos.

Esta oposição simétrica entre os dois princípios – masculino e feminino – nos golfiões do moliceiro vai, de certo modo e com uma relativa frequência, ser resolvida na estrela pentagonal pintada na porta do castelo de proa; como vimos anteriormente o signo salimão simboliza a união dos contrários.

Curiosamente ainda, o registo das figuras masculina e feminina nos golfiões do moliceiro / 22 / tem um paralelo em algumas bateiras chinchorras e barcos mercantéis... Em lugar do homem e da mulher surgem duas cores complementares, geralmente o vermelho e o verde. É possível que este registo seja recente, sem tradição, porventura resultado da influência estética que o moliceiro exerce sobre os outros barcos da ria. Ainda assim, o fenómeno indicia a existência de semelhantes organizações estruturais entre as embarcações da ria.

A existência de um eixo longitudinal não se limita à verificação da oposição simétrica patente nos golfiões. Seguindo para a ré, não raro se encontram superfícies de cor nos respectivos vãos, pintados de acordo com a mesma lógica de oposição bilateral. São manchas de cor complementares rigorosamente separadas.

Em conclusão, a abordagem da imagística do moliceiro passa pela consideração de três ordens de oposições bilaterais:

A – entre a Ré e a Proa – pólos de organização;

B – entre o interior e o exterior – espaços de organização;

C – entre barlavento e sotavento – regiões de organização.

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(1) – o pintor de moliceiros é tradicionalmente o construtor naval. Recentemente, porém, é frequente a existência de pintores «especializados» a quem os arrais encomendam os trabalhos de pintura.

(2) – Em crónicas gravadas em Fevereiro de 1986 para o programa Ponte Praça na R.I.A. afirmei: «este é o signo de Aveiro: o vento. O vento e não a água. Há talvez um encontro entre os dois elementos: a água concede a substância da superfície, mas é o vento que a agita».

 

 

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