EIXOS NA DECORAÇÃO
Quedemo-nos então no moliceiro e nas suas pinturas. Como
é sabido, este barco apresenta quatro painéis com motivos diversos e
legendas apropriadas. Não raro, nestes painéis de cores vivas,
distinguem-se dois grupos: os de proa e os de ré. Reconhece-se
vulgarmente existir um espírito diferente entre eles: na proa um maior
cuidado de ornamentação com maior fidelidade a / 20 / motivos
tradicionais; na ré, a presença de motivos mais sugestivos e legendas
mais espirituosas. Esta análise, aqui apenas esboçada, sugere a
existência de um eixo transversal a dividir a embarcação em dois pólos.
O espírito das decorações, que podemos caracterizar por,
respectivamente, ser mais fiel a modelos tradicionais na proa e mais
espontâneo na ré, acompanha e confirma as considerações feitas aos
capítulos precedentes. Vimos já que, no interior da proa se concentram
os objectos ou substâncias a proteger da humidade e se realizam funções
«secas", enquanto na ré se concentram objectos ou substâncias «húmidas»
e se realizam funções «húmidas». Certamente, a variação dos modelos
icónicos entre as duas zonas corresponde à variação no carácter das
funções praticadas.
Conduzir a embarcação – função basicamente assegurada
pelo arrais posicionado na ré – é metaforicamente representada por
imagens e legendas cuja liberdade se assemelha à do próprio condutor na
orientação da embarcação. Também o espírito mais liberto dos painéis,
por vezes picante ou jocoso, se pode associar, nesta operação
metafórica, às funções de defecar e/ou urinar tradicionalmente
concentradas na ré.
A complementaridade e oposição simétrica entre a proa e a
ré verifica-se pois ao nível da respectiva funcionalidade e do «espírito
da decoração». Esta verificação conduz directamente à ideia de que a
«decoração» nos barcos em geral e no moliceiro em particular não é
fortuita nem aleatória; ela integra-se nas estruturas morfológicas e
funcionais da embarcação.
Contemplando os quatro painéis do moliceiro, o espectador
rapidamente se aperceberá da sua diferença. Tratam-se com efeito de
quatro painéis diferentes e não de dois iguais na proa e dois iguais na
ré. Este facto introduz uma perturbação na consideração acima enunciada
de um eixo transversal. Podemosnaturalmente atribui
esta multiplicidade de painéis a uma riqueza imaginativa do seu criador(1)
Esta explicação, digamos que psicológica, não parece todavia suficiente
para a compreensão estrutural do moliceiro.
Trata-se pois de visualizar cada embarcação como um todo
formado de partes onde se registam fenómenos solidários e
inter-dependentes.
Regressemos ao interior do barco... Os painéis ficaram do
lado de fora, numa exibição de cor e formas para o exterior. Eles
constituíam a vertente extrovertida da embarcação, aquilo que se expõe.
No interior, pelo contrário, ficam os sinais internos, a ser
«consumidos» pela tripulação; estas marcas de cor, estes sinais
abstractos ou figurativos, já enunciados, organizam/protegem o espaço
interno da embarcação. Estamos de novo perante uma relação de oposição
bilateral: espaço externo/espaço interno.
A imagística existente nestes dois espaços patenteia
lógicas diferentes, embora tradicionalmente irmanadas em intenções
propiciatórias e estéticas:
– no espaço externo há que ostentar e diversificar para
reter o olhar do espectador; há como que uma organização cénica dos
sinais, uma afirmação exibicionista, se quisermos uma lógica de
espectáculo;
– no espaço interno, pelo contrário, a intenção já não é
a de reter o olhar do espectador, mas sim a de organizar e de marcar o
próprio espaço; impera pois uma lógica, digamos de arrumação.
Assim à imagística interna corresponde uma dinâmica
centrípeta, de contenção, e à imagística externa corresponde a uma
dinâmica centrífuga, de dispersão. Vemos, finalmente, a diversidade dos
quatro painéis do moliceiro como uma manifestação desta dinâmica de
dispersão.
Mas as oposições binárias não ficam por aqui. Se nos
concentrarmos sobre a imagística interna, encontraremos um terceiro
eixo, de sentido
/ 21 /
longitudinal, que vai dividir o moliceiro em duas regiões
complementares, de algum modo correspondentes aos dois bordos do barco.
Poderíamos denominar a priori estas duas regiões de
bombordo e estibordo. Pessoalmente, prefiro utilizar outra terminologia
– a região de barlavento e a região de sotavento. Barlavento e sotavento
definem-se por relação com a direcção do vento: o primeiro designa o
bordo que fica para o lado donde sopra o vento; o segundo designa o
bordo contrário. Ora, esta terminologia, que tem o curioso registo
indígena de por cima do vento e por baixo do vento, tem uma importante
consequência: há reciprocidade entre os dois bordos do barco, isto é, o
bombordo pode ser indiferentemente barlavento e sotavento, o mesmo se
passando com o estibordo. As razões desta preferência estão no meu
conhecimento local das condições de navegabilidade que
obrigam constantemente ao bolinar(2)
e ao próprio tipo de decoração.
A imagística interna do moliceiro já referida no capítulo
anterior é constituída por pinturas e frisos nos vãos da ré, pelos
signos icónicos e frisos pintados na porta do castelo de proa e, já como
extensão, pelas imagens nos golfiões e pelo arranjo floral que se
prolonga na bica.
De todos estes sinais sempre me fascinaram as figurações
ingénuas de um homem e de uma mulher nos golfiões. Comecei por procurar
uma regra de registo em bombordo e estibordo destas duas figuras, mas
não a encontrei... ambas podem apresentar um determinado barco um
posicionamento oposto àquele que se oferece noutro.
Outro registo variável diz respeito à posição das
figuras, uma relativamente à outra: podem estar de costas ou de frente,
o que corresponde na expressão indígena à ideia de zanga ou de amizade
entre namorados. Finalmente, os registos podem arrumar 4 modos,
descritos no quadro.
Destes, os dois assinalados com *
assumem maior frequência. Este facto prende-se certamente a razões
morfológicas: os golfiões apresentam uma forma típica que favorece o
registo daqueles dois modos.
Esta oposição simétrica entre os dois princípios –
masculino e feminino – nos golfiões do moliceiro vai, de certo modo e
com uma relativa frequência, ser resolvida na estrela pentagonal pintada
na porta do castelo de proa; como vimos anteriormente o signo salimão
simboliza a união dos contrários.
Curiosamente ainda, o registo das figuras masculina e
feminina nos golfiões do moliceiro
/ 22 /
tem um paralelo em algumas bateiras chinchorras e barcos mercantéis...
Em lugar do homem e da mulher surgem duas cores complementares,
geralmente o vermelho e o verde. É possível que este registo seja
recente, sem tradição, porventura resultado da influência estética que o
moliceiro exerce sobre os outros barcos da ria. Ainda assim, o fenómeno
indicia a existência de semelhantes organizações estruturais entre as
embarcações da ria.
A existência de um eixo longitudinal não se limita à
verificação da oposição simétrica patente nos golfiões. Seguindo para a
ré, não raro se encontram superfícies de cor nos respectivos vãos,
pintados de acordo com a mesma lógica de oposição bilateral. São manchas
de cor complementares rigorosamente separadas.
Em conclusão, a abordagem da imagística do moliceiro
passa pela consideração de três ordens de oposições bilaterais:
A – entre a Ré e a Proa – pólos de organização;
B – entre o interior e o exterior – espaços de
organização;
C – entre barlavento e sotavento – regiões de
organização.
______________________________
(1)
– o pintor de moliceiros é tradicionalmente o construtor naval.
Recentemente, porém, é frequente a existência de pintores
«especializados» a quem os arrais encomendam os trabalhos de pintura.
(2)
– Em crónicas gravadas em Fevereiro de 1986 para o programa Ponte Praça
na R.I.A. afirmei: «este é o signo de Aveiro: o vento. O vento e não a
água. Há talvez um encontro entre os dois elementos: a água concede a
substância da superfície, mas é o vento que a agita».
|