CASTELO DE PROA, GOLFIÕES
E BICAS
«Já te fiz a cama na proa de uma bateira
Bertedoiro ao leme e outro à cabeceira».
(Cantiga tradicional do S. Gonçalinho em Aveiro).
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Seja nas proas fechadas do moliceiro, do saleiro ou da
bateira maior, seja nas proas abertas da caçadeira, esta zona, surge
como área privilegiada na distribuição dos sinais pictóricos. Esta
concentração é possibilitada pelas condições morfológicas e funcionais
do castelo de proa: aí está uma das maiores superfícies da embarcação,
que se mantém obviamente fora de água, logo, exposta à observação. A
região interior do castelo de proa é também uma das zonas mais
resguardadas da embarcação, lugar onde se guarda o que é precioso, onde
se pernoita e onde se preparam as refeições. Por isso, ela é
especialmente protegida e embelezada.
Ora, regra geral, esta dupla função mágica e estética não
está cindida, isto é, os sinais pictóricos são simultaneamente signos
propiciatórios e formas de embelezamento. Em alguns casos, porém, uma
das funções assume maior importância, fazendo passar a outra a segundo
plano.
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Basicamente, o interior da proa é, como já se disse,
paiol e abrigo. No moliceiro e no saleiro, o espaço é organizado:
encontram-se prateleiras laterais, uma caixa com portinhola para guardar
valores e documentos e na extremidade dianteira o pique onde se
arrecadam o pão e a vela, por complemento, a ré pode desempenhar funções
semelhantes; no moliceiro, sob o assento do arrais (entremesa)
arrumavam-se as forcadas e tamancas e o barril de água potável, enquanto
nas costas se situava o depósito de sal.
Proa e ré tornavam-se os dois pólos de organização do
interior da embarcação. Na proa concentravam-se os objectos ou
substâncias que se devem manter longe da água (documentação, dinheiro,
velas), na ré aqueles que não se deterioram mesmo que molhados (barril
de água, sal grosso, forcadas). A proa surge como a zona seca onde se
cumprem funções «secas»: descansar/dormir, fazer lume. A ré surge como a
zona húmida onde se realizam funções «húmidas»: conduzir o barco,
defecar.
Considerando o interior da embarcação, apenas nestas duas
regiões, sobretudo na proa, se encontram sinais pictóricos. Quando o
castelo de proa é fechado, a porta pode apresentar fechadura
especialmente concebida para o efeito. Nesta porta, não raro se desenha
a estrela pentagonal – o signo salimão – pintado ao gosto de cada
artista.
O significado oculto deste símbolo tem sido
frequentemente posto em relevo.
No «Dictionnaire des symboles»(1)
diz-se que:
«Les cinq branches du pentagramme accordent en une union féconde le 3,
qui signifie le principe mâle, et le 2, qui correspond au principe
féminin. Il symbolise alors I'androgynat». Depois, esclarece-se que: «Le
pentagramme signifie
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encore
le mariage, le bonheur, I'accomplissement».
Além dos sinais propiciatórios que podem ser pintados na
porta, como é o caso assinalado do signo salimão, não raro se distinguem
legendas que seguem habitualmente o remate do castelo de proa. Estas
legendas são, pode dizer-se, de regra nas chinchorras. A sua função é
ainda e também propiciatória. É frequente encontrar aí frases de devoção
religiosa ou fórmulas supersticiosas.
Em exemplos mais recentes, verifica-se com muita nitidez
a manifestação de influências estranhas à tradição indígena. Nestes
casos, as legendas valem sobretudo como sinais de uma mentalidade que
muda. Vários factores contribuíram para esta mudança: o contacto com o
estrangeiro, seja por via da emigração, seja por via das viagens de
pesca (do bacalhau, sobretudo), a proximidade aos hábitos urbanos, o
acesso fácil aos meios de comunicação, nomeadamente à televisão... estas
parecem ser as razões de maior peso.
No moliceiro, o remate ou friso do castelo de proa é
também tradicionalmente decorado, não com legendas, mas com motivos
florais.
A bica
– que é o ponto terminal da proa surge invariavelmente decorada, se mais
não seja pintada com cores vivas. Nos barcos de mar e nas chinchorras é
costume atar-lhe ramos de flores silvestres, junto a imagens de devoção.
Por vezes, como excepção e não como regra,
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encontram-se outros objectos associados aos ramos.
No moliceiro, a existência de ramos a «enfrentar» a bica
verifica-se apenas em circunstâncias especiais, nomeadamente por ocasião
do seu bota-abaixo. Na verdade, a bica do moliceiro prescinde facilmente
de tais adereços: o seu lançamento próprio, o modo como se destaca no
terminus da proa, a sua autonomia cromática e formal...
Qualquer acrescento pareceria estar a mais. Porém, o
moliceiro não renunciou ao seu ramo de flores!
Na base da bica, pintado e devidamente organizado, com
direito a jarro ou a vaso, está o ramo floral. De certa maneira, o
moliceiro não prescinde de nada que os outros tenham... Faz mais e
melhor! Quase sempre, incorpora em si os sinais e as marcas que os
outros ostentam.
A bica é, portanto, local privilegiado na protecção da
embarcação. Ela comporta-se como uma extensão do barco... uma sonda de
orientação, aquilo que marca o rumo.
Entre todos os povos com tradição náutica verifica-se um
cuidado especial na «animação» do terminus da proa. Já no capítulo
anterior, a título de exemplo, referi o APLUSTRE, que designa a crista
de madeira esculpida ou os penachos que rematavam a proa das embarcações
imperiais romanas.
Ainda sobre o castelo de proa das chinchorras, dos
moliceiros e dos mercantéis se encontram os golfiões ou mãozinhas.
Trata-se de duas incrustações sistemáticas de madeira que facilitam a
fixação das alfaias da respectiva arte (varas, ancinhos, etc.).
No moliceiro, a decoração alcança estas peças. É de regra
representar aí as figuras de um homem e de uma mulher. Nas outras
embarcações isto já se não observa; quanto muito, os golfiões são
pintados com cores complementares.
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(1)
– CHEVALlER, Jean e CHEERBRANT, Alain – Dictionnaire des Symboles,
Paris, ed. Seghers et ed. Jupiter, 1973.
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