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Boletim n.º 8 - Ano IV - 1986



CASTELO DE PROA, GOLFIÕES E BICAS


«Já te fiz a cama na proa de uma bateira

Bertedoiro ao leme e outro à cabeceira».

(Cantiga tradicional do S. Gonçalinho em Aveiro).

*

Seja nas proas fechadas do moliceiro, do saleiro ou da bateira maior, seja nas proas abertas da caçadeira, esta zona, surge como área privilegiada na distribuição dos sinais pictóricos. Esta concentração é possibilitada pelas condições morfológicas e funcionais do castelo de proa: aí está uma das maiores superfícies da embarcação, que se mantém obviamente fora de água, logo, exposta à observação. A região interior do castelo de proa é também uma das zonas mais resguardadas da embarcação, lugar onde se guarda o que é precioso, onde se pernoita e onde se preparam as refeições. Por isso, ela é especialmente protegida e embelezada.

Ora, regra geral, esta dupla função mágica e estética não está cindida, isto é, os sinais pictóricos são simultaneamente signos propiciatórios e formas de embelezamento. Em alguns casos, porém, uma das funções assume maior importância, fazendo passar a outra a segundo plano. / 17 /

Basicamente, o interior da proa é, como já se disse, paiol e abrigo. No moliceiro e no saleiro, o espaço é organizado: encontram-se prateleiras laterais, uma caixa com portinhola para guardar valores e documentos e na extremidade dianteira o pique onde se arrecadam o pão e a vela, por complemento, a ré pode desempenhar funções semelhantes; no moliceiro, sob o assento do arrais (entremesa) arrumavam-se as forcadas e tamancas e o barril de água potável, enquanto nas costas se situava o depósito de sal.


Proa e ré tornavam-se os dois pólos de organização do interior da embarcação. Na proa concentravam-se os objectos ou substâncias que se devem manter longe da água (documentação, dinheiro, velas), na ré aqueles que não se deterioram mesmo que molhados (barril de água, sal grosso, forcadas). A proa surge como a zona seca onde se cumprem funções «secas»: descansar/dormir, fazer lume. A ré surge como a zona húmida onde se realizam funções «húmidas»: conduzir o barco, defecar.

Considerando o interior da embarcação, apenas nestas duas regiões, sobretudo na proa, se encontram sinais pictóricos. Quando o castelo de proa é fechado, a porta pode apresentar fechadura especialmente concebida para o efeito. Nesta porta, não raro se desenha a estrela pentagonal – o signo salimão – pintado ao gosto de cada artista.

O significado oculto deste símbolo tem sido frequentemente posto em relevo. No «Dictionnaire des symboles»(1) diz-se que:

«Les cinq branches du pentagramme accordent en une union féconde le 3, qui signifie le principe mâle, et le 2, qui correspond au principe féminin. Il symbolise alors I'androgynat». Depois, esclarece-se que: «Le pentagramme signifie / 18 / encore le mariage, le bonheur, I'accomplissement».


Além dos sinais propiciatórios que podem ser pintados na porta, como é o caso assinalado do signo salimão, não raro se distinguem legendas que seguem habitualmente o remate do castelo de proa. Estas legendas são, pode dizer-se, de regra nas chinchorras. A sua função é ainda e também propiciatória. É frequente encontrar aí frases de devoção religiosa ou fórmulas supersticiosas.

Em exemplos mais recentes, verifica-se com muita nitidez a manifestação de influências estranhas à tradição indígena. Nestes casos, as legendas valem sobretudo como sinais de uma mentalidade que muda. Vários factores contribuíram para esta mudança: o contacto com o estrangeiro, seja por via da emigração, seja por via das viagens de pesca (do bacalhau, sobretudo), a proximidade aos hábitos urbanos, o acesso fácil aos meios de comunicação, nomeadamente à televisão... estas parecem ser as razões de maior peso.

No moliceiro, o remate ou friso do castelo de proa é também tradicionalmente decorado, não com legendas, mas com motivos florais.

A bica – que é o ponto terminal da proa surge invariavelmente decorada, se mais não seja pintada com cores vivas. Nos barcos de mar e nas chinchorras é costume atar-lhe ramos de flores silvestres, junto a imagens de devoção.

Por vezes, como excepção e não como regra, / 19 / encontram-se outros objectos associados aos ramos.

No moliceiro, a existência de ramos a «enfrentar» a bica verifica-se apenas em circunstâncias especiais, nomeadamente por ocasião do seu bota-abaixo. Na verdade, a bica do moliceiro prescinde facilmente de tais adereços: o seu lançamento próprio, o modo como se destaca no terminus da proa, a sua autonomia cromática e formal...

Qualquer acrescento pareceria estar a mais. Porém, o moliceiro não renunciou ao seu ramo de flores!

Na base da bica, pintado e devidamente organizado, com direito a jarro ou a vaso, está o ramo floral. De certa maneira, o moliceiro não prescinde de nada que os outros tenham... Faz mais e melhor! Quase sempre, incorpora em si os sinais e as marcas que os outros ostentam.

A bica é, portanto, local privilegiado na protecção da embarcação. Ela comporta-se como uma extensão do barco... uma sonda de orientação, aquilo que marca o rumo.

Entre todos os povos com tradição náutica verifica-se um cuidado especial na «animação» do terminus da proa. Já no capítulo anterior, a título de exemplo, referi o APLUSTRE, que designa a crista de madeira esculpida ou os penachos que rematavam a proa das embarcações imperiais romanas.

Ainda sobre o castelo de proa das chinchorras, dos moliceiros e dos mercantéis se encontram os golfiões ou mãozinhas. Trata-se de duas incrustações sistemáticas de madeira que facilitam a fixação das alfaias da respectiva arte (varas, ancinhos, etc.).

No moliceiro, a decoração alcança estas peças. É de regra representar aí as figuras de um homem e de uma mulher. Nas outras embarcações isto já se não observa; quanto muito, os golfiões são pintados com cores complementares.

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(1) – CHEVALlER, Jean e CHEERBRANT, Alain – Dictionnaire des Symboles, Paris, ed. Seghers et ed. Jupiter, 1973.
 

 

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