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Boletim n.º 8 - Ano IV - 1986


EMBLEMAS

 

«Ils Ia décorent des symboles de Ia terre et de I'eau, puis y ajoutent leur propre histoire.»

Henri Kérisit

Tantas vezes fascinados pelos painéis dos moliceiros, perdemos a visão dos emblemas das bateiras. Nestas, os sinais pictóricos despem-se das cercaduras, das legendas, dos arabescos e apresentam-se na sua expressão mais simples. Porém, também aqui se fazem sentir os efeitos de influências estranhas... Aquele que seria primitivamente um sinal de propriedade ou de protecção mágica é, hoje, sempre substituído pelo emblema de clube, pela bandeira ou pela flor estilizada.

Durante o estudo realizado ao longo da laguna ocorreu-me, por mais que uma vez, a hipótese de que esses sinais gravados nas proas das bateiras seriam anteriores à exuberância decorativa do moliceiro. Neste caso, em vez do verbo despir deveria utilizar vestir: seriam os moliceiros a vestir-se de rendas, a cobrir-se de véus, de tal modo que o sinal primitivo ficaria submerso em cores e formas. Porém, os espécimes actuais não permitem confirmar esta hipótese. Pelo contrário, poder-se-á supor que a utilização de cores vivas e de sinais emblemáticos nas bateiras resulta de influências exteriores, nas quais participa o próprio moliceiro, influências reveladas graças ao fácil acesso a tintas industriais.

Apesar disto, construo no meu pensamento a imagem de uma bateira «primeva», embreada a negro com um pequeno emblema gravado na proa: um sinal de protecção e propriedade.

Luís de Magalhães, que é dos primeiros a referir-se às embarcações da ria, refere a existência de decoração no moliceiro e na bateira chinchorra nos seguintes termos:

«As bateiras chinchorras têm, como os moliceiros, a particularidade de ser ornamentadas, à proa e à ré, de várias pinturas e emblemas. Ao contrário, porém, dos moliceiros, cujos motivos ornamentais são os mais diversos e de ordinário profanos, as pinturas das chinchorras reduzem-se apenas a imagens de santos e de santas»(1).

Chinchorro designa um aparelho de pesca; Baldack da Silva descreve-o(2) como uma rede aberta pertencente ao grupo das de arrasto. Chinchorra designa, por sua vez, uma embarcação que utiliza esta rede; o arquitecto Lixa Felgueiras classifica-a(3) no grupo das bateiras murtoseiras, cujo perfil se apresenta próximo dos barcos de mar.

Esta semelhança parece confirmar que a arte de xávega é uma adaptação dos chinchorros das águas interiores, e o barco de mar a adaptação de uma embarcação da laguna como objectivo de a tornar capaz de atravessar a rebentação da / 14 / costa(4). Ora, é sobretudo nos barcos de mar que perduram as imagens de santos e santas.

Considerei, pois, como emblema todo e qualquer sinal pictórico simples, seja ele figurativo ou abstracto, sem legenda ou com uma frase que em nada altera o significado da imagem.

Neste sentido, juntei no mesmo «saco» sinais tão diferentes como o como o emblema do Futebol Clube do Porto, o signo salimão ou a imagem ingénua da Virgem Santa. Ao fazê-lo parti da hipótese de que qualquer deles cumpre simultaneamente uma função de marca de propriedade e

de protecção. E, pese embora o aparente mau gosto de alguns desses emblemas contemporâneos, a atitude é semelhante: trata-se de proteger o barco, pondo-o sob tutela de uma entidade mítica.


Esta espécie de totemismo nos barcos verifica-se em quase todos os pontos do globo e nas mais variadas épocas. A título de exemplo, entre os Fenícios, a imagem de um cavalo gravada nas proas de pequenos barcos de mar teria, segundo Varagnac, «um sentido simbólico, pois o cavalo é um' animal fogoso e valente, capaz portanto a sua imagem totémica de cavalgar as ondas do mar e proteger assim a embarcação na qual esteve esculpida»(5). Entre os Romanos, as embarcações imperiais ostentavam, na proa, figuras / 15 / escultóricas ou insculpidas de pessoas, animais ou coisas (INSIGNIA), proa que era frequentemente rematada por uma crista colorida de madeira ou por um penacho de penas e crinas (APLUSTRE) e na popa apresentavam estátuas distintivas dos povos ou das divindades protectoras (TUTELLAE). Pertence também à tradição mediterrânica a existência do OCULUS (olho) escavado e/ou pintado nas proas dos barcos. Há a crença de que este sinal – que ainda hoje se encontra nas proas das escunas maltesas e gregas e que permanece em muitos dos barcos da costa portuguesa – habilita o barco a observar o seu caminho, a encontrar o melhor rumo e a alcançar bom porto; há quem veja no oculus uma herança da civilização egípcia: o olho do deus falcão Hórus, protector da navegação.

Em suma, a invocação do antepassado mítico manifesta a integração no grupo social ou comunidade e garante a protecção da embarcação e dos seus utentes.

Por vezes, de tão geometrizado, o emblema lê-se só como uma marca de posse, onde apesar de tudo se podem vislumbrar referentes religiosos ou supersticiosos.

Carlos de Passos referindo-se aos barcos de Pesca da costa portuguesa faz a listagem de numerosas marcas, algumas das quais se podem ainda observar nas embarcações da ria de Aveiro: as cruzes, os círculos concêntricos, as estrelas pentagonais ou hexagonais, o peixe(6). Já em 1922, altura em que o citado trabalho é publicado, se verificava por vezes a repetição de emblemas no mesmo barco(7)? Ora, é precisamente por via desta repetição que não raro, os emblemas são obrigados a saltar dos costados laterais para a cobertura do castelo de proa.

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(1) – MAGALHÃES, Luís de – «Os barcos da Ria de Aveiro», Portugalia, Porto VoI. I, 1910.

(2) – Op. cit..

(3) – «Barcos» in LIMA, F. de C. Pires de – Arte popular em Portugal, voI. III, Lisboa, ed. Verbo, 1975.

(4) – Vide LAMY, Alberto Sousa – Monografia de Ovar, Ovar, 1977.

No cap. VII o autor considera que o aparecimento da arte da Xávega ou Artes Grandes estaria intimamente ligado à instalação de uma fábrica de conserva e extracção de óleo de peixe francês João Pedro Mijoule, por volta de 1776.

(5) – Citado por CARDOSO, Mário – op. Cit.

(6) – PASSOS, Carlos de – «Barcos de Pesca», Terra Portuguesa, n.ºs 35-36, Dez. 1922.

(7) – PASSOS, Carlos de – op. cit., pp. 198-199: «Pescadores ha que na ideia, decerto, de mór realce a seus barcos os atulham com dois, três e mais emblemas, como um da Figueira, cuja ornamentação ia a quatro divisas».

 

 

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