EMBLEMAS
«Ils Ia décorent des symboles de Ia terre et de I'eau, puis y ajoutent
leur propre histoire.»
Henri Kérisit
Tantas vezes fascinados pelos painéis dos moliceiros,
perdemos a visão dos emblemas das bateiras. Nestas, os sinais pictóricos
despem-se das cercaduras, das legendas, dos arabescos e apresentam-se na
sua expressão mais simples. Porém, também aqui se fazem sentir os
efeitos de influências estranhas... Aquele que seria primitivamente um
sinal de propriedade ou de protecção mágica é, hoje, sempre substituído
pelo emblema de clube, pela bandeira ou pela flor estilizada.
Durante o estudo realizado ao longo da laguna ocorreu-me,
por mais que uma vez, a hipótese de que esses sinais gravados nas proas
das bateiras seriam anteriores à exuberância decorativa do moliceiro.
Neste caso, em vez do verbo despir deveria utilizar vestir: seriam os
moliceiros a vestir-se de rendas, a cobrir-se de véus, de tal modo que o
sinal primitivo ficaria submerso em cores e formas. Porém, os espécimes
actuais não permitem confirmar esta hipótese. Pelo contrário, poder-se-á
supor que a utilização de cores vivas e de sinais emblemáticos nas
bateiras resulta de influências exteriores, nas quais participa o
próprio moliceiro, influências reveladas graças ao fácil acesso a tintas
industriais.
Apesar disto, construo no meu pensamento a imagem de uma
bateira «primeva», embreada a negro com um pequeno emblema gravado na
proa: um sinal de protecção e propriedade.
Luís de Magalhães, que é dos primeiros a referir-se às
embarcações da ria, refere a existência de decoração no moliceiro e na
bateira chinchorra nos seguintes termos:
«As bateiras chinchorras têm, como os moliceiros, a
particularidade de ser ornamentadas, à proa e à ré, de várias pinturas e
emblemas. Ao contrário, porém, dos moliceiros, cujos motivos ornamentais
são os mais diversos e de ordinário profanos, as
pinturas das chinchorras reduzem-se apenas a imagens de
santos e de santas»(1).
Chinchorro designa um aparelho de pesca; Baldack da Silva
descreve-o(2)
como uma rede aberta pertencente ao grupo das de arrasto. Chinchorra
designa, por sua vez, uma embarcação que utiliza esta
rede; o arquitecto Lixa Felgueiras classifica-a(3)
no grupo das bateiras murtoseiras, cujo perfil se apresenta próximo dos
barcos de mar.
Esta semelhança parece confirmar que a arte de xávega é
uma adaptação dos chinchorros das águas interiores, e o barco de mar a
adaptação de uma embarcação da laguna como objectivo de
a tornar capaz de atravessar a rebentação da
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costa(4). Ora, é
sobretudo nos barcos de mar que perduram as imagens de santos e santas.
Considerei, pois, como emblema todo e qualquer sinal
pictórico simples, seja ele figurativo ou abstracto, sem legenda ou com
uma frase que em nada altera o significado da imagem.
Neste sentido, juntei no mesmo «saco» sinais tão
diferentes como o como o emblema do Futebol Clube do Porto, o signo
salimão ou a imagem ingénua da Virgem Santa. Ao fazê-lo parti da
hipótese de que qualquer deles cumpre simultaneamente uma função de
marca de propriedade e
de protecção. E, pese embora o aparente mau gosto de
alguns desses emblemas contemporâneos, a atitude é semelhante: trata-se
de proteger o barco, pondo-o sob tutela de uma entidade mítica.
Esta espécie de totemismo nos barcos verifica-se em quase
todos os pontos do globo e nas mais variadas épocas. A título de
exemplo, entre os Fenícios, a imagem de um cavalo gravada nas proas de
pequenos barcos de mar teria, segundo Varagnac, «um sentido simbólico,
pois o cavalo é um' animal fogoso e valente, capaz portanto a sua imagem
totémica de cavalgar as ondas do mar e proteger assim a
embarcação na qual esteve esculpida»(5).
Entre os Romanos, as embarcações imperiais ostentavam, na proa, figuras
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escultóricas ou insculpidas de pessoas, animais ou coisas (INSIGNIA),
proa que era frequentemente rematada por uma crista colorida de madeira
ou por um penacho de penas e crinas (APLUSTRE) e na popa apresentavam
estátuas distintivas dos povos ou das divindades protectoras (TUTELLAE).
Pertence também à tradição mediterrânica a existência do OCULUS (olho)
escavado e/ou pintado nas proas dos barcos. Há a crença de que este
sinal – que ainda hoje se encontra nas proas das escunas maltesas e
gregas e que permanece em muitos dos barcos da costa portuguesa –
habilita o barco a observar o seu caminho, a encontrar o melhor rumo e a
alcançar bom porto; há quem veja no oculus uma herança da
civilização egípcia: o olho do deus falcão Hórus, protector da
navegação.
Em suma, a invocação do antepassado mítico manifesta a
integração no grupo social ou comunidade e garante a protecção da
embarcação e dos seus utentes.
Por vezes, de tão geometrizado, o emblema lê-se só como
uma marca de posse, onde apesar de tudo se podem vislumbrar referentes
religiosos ou supersticiosos.
Carlos de Passos referindo-se aos barcos de Pesca da
costa portuguesa faz a listagem de numerosas marcas, algumas das quais
se podem ainda observar nas embarcações da ria de Aveiro: as cruzes,
os círculos concêntricos, as estrelas pentagonais ou
hexagonais, o peixe(6).
Já em 1922, altura em que o citado trabalho é
publicado, se verificava por vezes a repetição de emblemas no mesmo
barco(7)? Ora, é
precisamente por via desta repetição que não raro, os emblemas são
obrigados a saltar dos costados laterais para a cobertura do castelo de
proa.
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(1)
– MAGALHÃES, Luís de – «Os barcos da Ria de Aveiro», Portugalia,
Porto VoI. I, 1910.
(2)
– Op. cit..
(3)
– «Barcos» in LIMA, F. de C. Pires de – Arte popular em Portugal,
voI. III, Lisboa, ed. Verbo, 1975.
(4)
– Vide LAMY, Alberto Sousa – Monografia de Ovar, Ovar, 1977.
No cap. VII o autor considera que o aparecimento da arte
da Xávega ou Artes Grandes estaria intimamente ligado à instalação de
uma fábrica de conserva e extracção de óleo de peixe francês João Pedro
Mijoule, por volta de 1776.
(5)
– Citado por CARDOSO, Mário – op. Cit.
(6)
– PASSOS, Carlos de – «Barcos de Pesca», Terra Portuguesa, n.ºs
35-36, Dez. 1922.
(7)
– PASSOS, Carlos de – op. cit., pp. 198-199: «Pescadores ha que na
ideia, decerto, de mór realce a seus barcos os atulham com dois, três e
mais emblemas, como um da Figueira, cuja ornamentação ia a quatro
divisas».
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