MADRUGADA NA RIA
«Nada da Terra e nada do mar.
O ar e a luz, apenas».
J. A. Negreiros
O nascer do Sol não é instantâneo. Faz-se devagar, com a
luz a crescer ininterruptamente. Na Ria, a luz chega tantas vezes
envolta em neblinas, o que acentua a lentidão da madrugada. As cores não
aparecem todas de uma vez. Primeiro, os cinzas, os azuis; depois, os
verdes e, por fim, quando o dia triunfa, os amarelos e os vermelhos. As
formas, por via da névoa, revelam-se imprecisas, fantasmagóricas. Tudo
se define com lentidão, mas com certeza. Às tantas, com a vitória da
luz, descortinam-se as formas de um barco, de dois, de três, lentas, num
chap-chap sobre as águas. Mas só quando nos aproximamos se
revelam as formas diferentes que distinguem os tipos: uma caçadeira, um
moliceiro, um mercantel, uma chinchorra... Depois, impõem-se ao olhar os
sinais gravados em cores de meio-dia: emblemas nos costados, legendas,
sinais de marca, tatuagens.
Este espectáculo de revelação caracteriza-se por existir
uma ordem de entrada: da ria indefinida, sem fronteiras, ainda no
crepúsculo, às marcas coloridas das embarcações, sinais triunfantes do
dia. Então, as cores, aprisionadas nessas marcas, flutuam sobre as águas
até ao fim do dia, quando o sol se começa a retirar.
Este espectáculo tem-me parecido um ritual que a laguna
celebra todas as manhãs, como se
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evocasse, desta forma, a geração das coisas.
Mas esta lição nem sempre tem sido escutada pelos que
dela falam.
Vem a propósito a história do título de um artigo escrito
há uns anos por um amigo. No texto, ele denunciava com alguma virulência
a «perseguição» movida aos pescadores dos botirões.(1)
Como se tratava de um artigo de combate, precisava de um título forte,
sugestivo, que desse razão aos pescadores. Recordo-me que lhe surgiu o
problema de optar entre «secular arte dos botirões» e «milenar arte dos
botirões». Optou por «milenar», considerando as necessidades, digamos
que propagandísticas. Há aqui um vício de raciocínio que pode ser mais
ou menos comum.
Considera-se frequentemente que só merece ser investigado
aquilo que tem passado histórico... Quanto mais recuado, mais válida é a
investigação. Por outro lado, quando se estuda isto ou aquilo,
procuram-se origens remotas. Mas, por vezes, este esforço incansável faz
mover outros engenhos...
Seria certamente interessante reflectir sobre esta
necessidade de encontrar raízes antiquíssimas nos objectos e nas
atitudes. Talvez resulte de uma qualquer insegurança... Talvez haja a
crença de que uma cultura forte é uma cultura antiga. A História tem
demonstrado, porém, que as Civilizações jovens imprimem novo alento à
Cultura. A vitalidade nada tem a ver com a antiguidade milenar.
No princípio, não era Ria.
Era o mar. E o mar entrava por aqui dentro, sem se
importar com as objecções de ninguém. É seguro que a
existência da laguna não vai além da era cristã(2).
Além disso, o seu rosto dos primeiros tempos não é o mesmo de agora. A
barra não teve uma posição definida até princípios do século XIX,
altura em que se fizeram obras de fixação(3).
Além disso, os fenómenos de assoreamento permanecem ininterruptamente,
alterando os fundos, fazendo surgir ilhotas onde outrora havia água,
mudando a fisionomia das margens. A Ria de Aveiro deve ser entendida
como um acidente precário, com um começo geográfico relativamente
próximo e um fim possível. A este respeito, diz Amorim Girão:
«As transformações por que incessantemente está passando
são bem evidentes, para que pudéssemos considerar este acidente litoral
como estacionário, ou mesmo como tendo atingido o termo
de uma larga evolução»(4).
E acrescenta:
«O pequeno delta que o rio hoje forma, protegido pelo cordão de areias
do litoral, tende fatalmente, com as outras causas apontadas, a produzir
uma larga deposição de materiais inconsistentes, por sorte que é de
prever o total preenchimento do esteiro, como estado transitório para a
formação de um delta mais importante. Podem, é certo, causas
perturbadoras, como a acção das correntes marítimas, opor-se à regular
formação dessa grande zona deltaica, mas, tanto num
como noutro caso, a ria está inevitavelmente condenada a desaparecer»(5).
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Os mapas (1, 2 e 3) foram obtidos
a partir dos publicados em:
▪
SILVA, José de Figueiredo da – Aspecto do ambiente natural da ria
de Aveiro, in
"Boletim" da ADERAV,
n.º 2, Maio/Junho, 1980;
▪
GIRÃO, Amorim – Bacia do Vouga, Coimbra, Impr. da Universidade,
1922. (Ver
evolução animada utilizando a hiperligação.) |
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Em tal cenário, parece absurdo considerar que as formas
dos barcos da Ria se tenham mantido estáticas. Primeiro, porque. a
evolução das condições geográficas certamente produz alterações ao nível
das condições físicas de navegabilidade. Em consequência, as embarcações
ter-se-iam de adaptar às próprias alterações verificadas.
Em segundo lugar, e já sem considerar o carácter mutante
da laguna, a evolução da técnica de construção, o contacto com as formas
diferentes de embarcações, teria tido certamente um efeito sobre as
embarcações locais.
À semelhança do que sucede com a madrugada na Ria, em que
os tipos de embarcações só se distinguem à medida que a luz se instala,
também os diferentes tipos de barcos surgem de um passado difuso, de
onde se definem em funções diversas, diferentes formas, indubitavelmente
irmanadas por um ascendente comum.
A identidade deste ascendente tem feito correr alguma
tinta. De modo geral, a hipótese enunciada com maior fundamento é a de
inscrever os barcos da Ria de Aveiro na família náutica mediterrânica.
Recuemos por alguns instantes até às regiões penúmbricas
do passado. Na Idade do Bronze, a Península era dominada comercialmente
pela cidade de Tartessos, situada na foz do Guadalquivir. Daí partiam
navios com rumo a oeste, que seguiam depois para norte, para carregarem
estanho nas Ilhas Oestrymnides ou Cassitárides, de
localização duvidosa(6).
O empório do estanho vai passar sucessivamente para os fenícios, com uma
feitoria em Gadir, actual Cádis, depois para os Cartagineses que
promovem expedições ao mar do norte (Himilicão) e ao norte de África
(Hanão) e, no século II a. C.., para os Romanos. É possível que só com
os Romanos se tenham popularizado os sistemas de carpintaria
indispensáveis para as construções de barcos com tábuas. Estrabão
informa que até ao fim da expedição de Bruto (138-137
a. C.) os povos do noroeste peninsular utilizavam embarcações de couro.(7)
Durante este período, do qual por ora apenas é possível
uma visão enevoada, o cenário físico é pré-Iagunar. É possível que
influências – se as houve – apenas se manifestassem a partir da
romanização, primeiro sobre os barcos do rio. Do rio, os homens
aventuram-se ao mar: ensaiam-se técnicas, incorpora-se o costado,
aumenta a tripulação. Depois, quando as águas do mar se aprisionam por
trás de uma duna precária, o barco desdobra-se em formas que lentamente
se personalizam por via de funções diversas. A laguna instala-se.
Mas, entretanto, já se perderam de vista Fenícios,
Cartagineses e Romanos.
E assim, numa dúzia de linhas, galgámos séculos. Talvez,
no fundo, também aqui tenhamos caído no logro referido: o de procurar um
passado remoto.
Em sua vez, importa finalmente destacar os mecanismos de
inter-relação e mútuas interferências. Os barcos da Ria de Aveiro foram
cozinhados no cadinho breve da laguna, cuja forma se altera, com
ingredientes duvidosos feitos de escalas problemáticas e de engenho
autóctone, ingredientes que reagem entre si como substâncias químicas.
Pretender que daqui saíam formas imutáveis parece, pelo
menos, pretensioso...
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(1)
– Botirão é uma rede em forma de saco, pertencente ao grupo das redes
fixas; pode ou não ser iscado. Consultar a este respeito: SILVA A. A.
Baldaque da – Estado actual das pescas em Portugal, Lisboa, Impr.
Nacional, 1892.
(2)
– Sobre este assunto, consultar:
GIRÃO, A. de Amorim – Bacia do Vouga, Coimbra,
Impr. da Universidade, 1922;
LEITÃO, António Nascimento – Aveiro e a sua laguna,
Lisboa, Sá da Costa, 1944:
LUCCI, Luiz Filipe de Lencastre Schwalbach – Estudos
geográficos - Alterações litorais - a Ria de Aveiro, Lisboa, 1918.
(3)
– CUNHA, S. Rocha e, C. – Porto de Aveiro, Lisboa, 1924.
(4)
– GIRÃO, A. de Amorim, op. cit, p. 66.
(5)
– Op. cit., p. 68.
(6)
– CARDOSO, Mário – «A Tradição náutica na mais antiga história da
Península Hispânica» - comunicação apresentada no Congr. Int. de
Hist. dos Descobrimentos (Lisboa, 5 a 11 de Setembro de 1960) in
“Revista de Guimarães”, vol. LXX, n.ºs 1-2, 1960.
(7)
– VARELA, José Manuel Vasquez – «La navegación durante Ia prehistoria
en el Atlantico» , Boletim Avriense, ano VI, tomo VI, Orense, 1976.
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