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Boletim n.º 8 - Ano IV - 1986


CONCLUSÃO

 

«Um pouco de informação, o encontro fortuito de uma produção artística, alimentam sem dúvida o espírito de criação. Mas uma excessiva informação, um demasiado arreigamento pelas produções de arte, podem esterilizá-lo».

«O desejo de ser aceite e admirado revela-se muito próximo do de chocar e de provocar escândalo; de um para o outro vai um pequeno passo, que nem sempre é claramente pressentido».

Jean Dubuffet

Na falta de outro título mais sugestivo, concluo com a conclusão (perdoe-se o pleonasmo). Tentarei aqui realizar não só o balanço do que foi escrito – neste sentido, o capítulo será uma espécie de conclusão das conclusões – mas também abordar algumas das ideias que, no desenrolar da escrita, ficaram pacientemente à espera de uma oportunidade para se manifestarem.

Na primeira parte destes escritos insisti no facto do universo de incidência da investigação não se circunscrever à imagística do moliceiro. Propus, em contrapartida, como objecto de estudo TODOS os sinais (icónicos ou verbais) apostos nas embarcações tradicionais da Ria de Aveiro. Por extensão foi necessário aflorar, mais que uma vez, exemplares vizinhos daquelas, nomeadamente os barcos de mar (Arte da Xávega) e cangas vareiras.

Este alargamento do objecto de estudo permitiu, através da recolha de imagens:

1. – a detecção de uma linha emblemática sobretudo nas proas das bateiras;

2. – a detecção de um conjunto coerente de signos icónicos e verbais, sobretudo nas bateiras chinchorras e, por paralelismo, no barco de mar;

3. – a análise estrutural da imagística do moliceiro;

4. – a verificação da permeabilidade geral da imagística às modificações sociais «exteriores»;

5. – a verificação de mútuas influências gráficas entre as embarcações da ria, segundo uma espécie de emulação estética.

A este respeito, é interessante, por exemplo, encontrarmos no canal de S. Roque, ancorados junto dos armazéns de sal, alguns saleiros profusamente decorados.

Tal exuberância decorativa não é, em definitivo, uma herança tradicional, mas, pelo contrário, uma característica adquirida e recente. Ora, não será este um fenómeno de imitação e emulação do moliceiro, barco de que fala meio mundo, que enche o olho e as objectivas das máquinas fotográficas?

Vendo estes grandes barcos «travestidos» com círculos, flores e arabescos, flutuando mansamente num canal apertado, pergunto-me se com o moliceiro não teria acontecido algo de semelhante, se, afinal, a sua imagística não teria sido, na génese, o resultado de uma imitação de outro barco, ou mais provavelmente de outro artefacto, porventura a canga vareira...

Há, na Ria, locais e datas próprios para a competição entre barcos. Esta desenrola-se a / 33 / vários títulos, incluindo o do respectivo valor estético (beleza das decorações, das flâmulas, etc.). As competições têm lugar por ocasião das festas populares, fundadas no calendário litúrgico. Os barcos assumem, nestas alturas, um importante papel: servem às populações ribeirinhas de meio de transporte para o local da festa, de abrigo para pernoitar, de espaço de convívio... Actualmente, por razões diversas por exemplo, pelo desenvolvimento dos meios de comunicação terrestres – os barcos têm perdido esta preponderância.

Apesar disso, na zona geográfica de incidência nuclear da investigação, subsiste uma importante festa – o S. Paio – que faz acorrer à praia da Torreira centenas de embarcações tradicionais nos dias 6, 7 e 8 de Setembro. Esta festividade oferece ao investigador etnólogo uma série de factos curiosos: a imersão da imagem do santo em vinho, o pernoitar colectivo de rapazes e raparigas nas praias de mar, nos paineiros dos barcos, ou nas esteiras nos palheiros e uma dinâmica entre a ria e o mar como pólos de movimento dos grupos sociais. Tal é o impacto deste ambiente na terminologia das populações ribeirinhas que a expressão Uma Noite de S. Paio é sinónimo de uma noite às claras, qualquer que seja a razão da insónia...

Também o historiador encontrará nestas festas valioso material. Segundo documentos relatados por José Maria Barbosa,(1) o S. Paio teve, em 1867, a visita do Duque de Loulé e demais acompanhantes ilustres, recebidos festivamente pelas gentes e autoridades ribeirinhas, onde pontificavam as presenças «distantes» de Albergaria e de Sever do Vouga.

Esta festa quase se torna uma feira de sinais! Retocam-se ou refazem-se as pinturas dos barcos, embandeiram-se as velas, cada qual escolhe a melhor roupa... Depois, é entrar na festa, onde hoje são visíveis as influências dos media e dos emigrantes.

Uma das conclusões a que igualmente chegamos diz respeito à permeabilidade dos sinais e das mensagens (icónicas ou verbais) às transformações sociais. Em muitos dos exemplos detectados, as modificações foram incorporadas nas estruturas tradicionais da distribuição da imagística, Noutras, porém, as modificações introduzidas subvertem a ordem estrutural e resultam em produtos onde imperam o mau gosto e o artificial. No meu ponto de vista, uma das características da imagística dos barcos da ria, em especial daquela que compõe os motivos centrais dos painéis pintados no moliceiro, é exactamente a de oferecer esquemas de registo das modificações sociais e históricas. Como noutra ocasião escrevi / 34 / a propósito do moliceiro, é possível detectar na sua imagística «sistemas de integração e classificação do real).(2) O processo de criação destas pinturas constitui uma «arrumação» de motivos nos espaços físicos pré-destinados do barco e nas categorias mentais que o seu criador dispõe no momento.

Há, entretanto, modificações inevitáveis, que ficaram por referir, ao nível da evolução dos instrumentos e meios de pintura: tipos e qualidade de tintas, gama de cores, tipos e qualidade dos pincéis, instrumentos de traçado... Toda esta variedade de produtos que o progresso põe à disposição do pintor, vieram inevitavelmente reflectir-se e, porventura, transformar, as soluções estéticas tradicionais.

Foi dito que nos painéis pintados no moliceiro figura uma história mítica, com os seus heróis, os seus malandrins e as suas tragédias. Mas, à força de se impor/expor aos olhos do público, a contrária também é verdadeira: o moliceiro tornou-se uma embarcação mítica no imaginário colectivo da região. É interessante verificar como os diversos centros concelhios reivindicam para si próprios a posse deste barco. Figura imprescindível em quase todos os folhetos turísticos da Ria de Aveiro, ele tornou-se uma espécie de ex-libris da laguna. De certo modo, ao assumir o estatuto de ante passado anfíbio das comunidades ribeirinhas, o moliceiro transmuta-se num totem. Depois, é vê-lo figurar nas barricas de ovos moles e nas de enguias, revestir, em monumentais fotos, paredes de companhias de seguros, dar nome a restaurantes e bares, servir de emblema para usar ao peito, inspirar aguarelistas e pintores locais; é vê-lo em painéis de azulejos ou em porcelanas, decapitado, com a proa a «embelazar» os quintais de certas vivendas,(3) ou simplesmente vendido como souvenir em miniaturas geralmente de má qualidade…

Assim, enredado na sua própria estratégia de ostentação, o moliceiro passa a ser exibido! Este barco, que num passado recente era um sinal de riqueza do proprietário, é, hoje, falado, reproduzido e desvirtuado, para ostentar interna e externamente a riqueza patrimonial de uma região.

Talvez seja esta, finalmente, a situação mais ameaçadora com que este barco se confronta.

Ao atribuir um estatuto mítico ao moliceiro, faz-se dele uma «criatura» intemporal. Assim, relativamente à sua idade, a resposta comum situa-o como «imemorável» e «arcaico»...

Já no início destes escritos, tive ocasião de reflectir sobre esta tendência em conceder «profundas antiguidades» às coisas da terra, embarcações incluídas... Vemos, finalmente, como esta tendência é também o resultado do estatuto mítico que o moliceiro – especialmente o moliceiro – adquire. Ora, em diversos momentos do texto, foi questionada a idade das embarcações tradicionais da ria. Podemos considerá-las ou como modelos praticamente imutáveis ao longo do tempo, ou como modelos que resultam de interacções dinâmicas entre si e com o meio envolvente (meio físico, meio social, meio económico, etc.). Pelas razões já expostas, inclino-me para a segunda hipótese.

A tipologia dos barcos tradicionais não é certamente invariável na história da laguna. O moliceiro, por exemplo, enquanto tipo de barco com a forma que lhe conhecemos, é possível que não vá além do séc. XIX. A corroborar esta ideia, temos, por paralelismo, a investigação realizada sobre a antiguidade das variantes decoradas das cangas de tábuas que a situa em meados do séc. XIX.(4)

Também as referências ao moliceiro apontam nesta direcção... O Padre Vieira Resende, na sua Monografia da Gafanha, cita um decreto de 2 de Julho de 1802, pelo qual foi lançado «o imposto de 40 reis aos barcos carregados com moliço e de 20 reis aos barcos menores». (5)

Podíamos ser tentados a identificar os barcos maiores e os barcos menores respectivamente com os moliceiros do norte e com os mirões; ou então com o moliceiro e com a bateira que por vezes ele reboca e que é usada para alcançar os canais mais estreitos e de menor profundidade... Mas, podemos também, e com menor esforço, tomar à letra o que foi escrito: os barcos quaisquer barcos – grandes pagariam, por efeito de lei, 40 reis; os pequenos – quais quer que eles fossem – pagariam 20 reis.

Numa investigação realizada sobre os conteúdos de dicionários existentes na Biblioteca Nacional, verifiquei:

– a não figuração dos termos moliço e moliceiro / 35 / até princípios do séc. XIX. (6)

– uma evolução semântica no termo moliceiro a partir do séc. XIX: como adjectivo designou desde «o barco em que se transportava o moliço»,(7) até ao «barco de formas especiais em que se transporta o moliço na ria de Aveiro», (8) como substantivo, começou por ser sinónimo de sargaceiro,(9) até englobar a «barca ou barco para transporte de moliço».(10)

Do ponto de vista funcional, lembremos, finalmente, que a procura do moliço corresponde a uma fase de desenvolvimento agrícola. Assim, em determinada altura, que corresponde ao povoamento de zonas até então estéreis, aumentou a procura deste adubo natural. E se, até então, a sua recolha fora garantida no quadro das pequenas explorações familiares, recorrendo às bateiras, começa agora a sentir-se a necessidade de sistematizar essa recolha. Procede-se à especialização de funções: aparece uma embarcação

adaptada, ou transformada e uma profissão – o moliceiro barco e o moliceiro de profissão. Mas o desenvolvimento agrícola liga-se também à prosperidade dos lavradores locais. Ora, é exactamente esta burguesia rural quem vai dar o impulso definitivo para a afirmação deste jovem barco... Transforma-lhe o rosto, enobrecendo-o, revelando aí a sua pujança social, cobre-lhe o casco de sinais provenientes de um passado

íntimo onde, por paradoxo, a actualidade ganha cores de festa.

Fascinados pela paisagem da laguna, dizemos com Raul Brandão e Almada Negreiros que a luz não tem dono. Mas tem: são os barcos, que a aprisionam em sinais radiosos!

 

________________________________________

(1) – BARBOSA, José Maria – A Murtosa - a propósito da sua autonomia, Aveiro, tipo Campeão das Províncias, 1899.

(2) – Op. cit., p, 32.

(3) – O aparecimento de proas dos moliceiros nos terrenos dianteiros de algumas vivendas, sendo recente, tem uma curiosa correspondência no passado. O Padre João Vieira de Resende, na obra Monografia da Gafanha, ÍIhavo, Gráf. ilhavense, 1938, escreveu, a propósito dos hábitos das gentes da Gafanha:

«Os filhos dormiam fora de casa, ou nas proas dos barcos presos ao moirão ma borda, ou nas mesmas proas dos barcos cortados e para esse fim instalados nos pátios, ou ainda nos palheiros».

(4) – OLIVEIRA, Ernesto Veiga de –, GALHANO, Fernando – e PEREIRA, Benjamim – Op. cit..

(5) – Op. cit., p. 273.

(6) – Foram consultadas as seguintes obras:

– BLUTEAU, P. D. Raphael – Vocabulario Portuguez e Latino, Coimbra, 1712.

Dicionário da língua portuguesa, Lisboa, publ. Ac. Real das Ciências de Lisboa, 1793.

– Dicionário da língua portuguesa composto sobre os que até ao presente se têm dado ao prelo, 1806.

Novo Dicionário da Língua Portuguesa, 1835. O termo «moliço» aparece com o significado de: «Espécie de palha de colmar casas».

(7) – FIGUEIREDO, Cândido de – Dicionário da Língua Portuguesa, 148 ed., Lisboa, Livr. Bertrand, 1947.

(8) – LELLO, José e – LELLO, Edgar – Lello Universal. Dicionário enciclopédico luso-brasileiro, Porto, Lello e irmão,   1976.

(9) – BIVAR, Artur – Dicionário geral e analítico da Língua Portuguesa, Porto, ed. Ouro. 1952

– GONÇALVES, F. Rebelo – Vocabulário da Língua Portuguesa, Coimbra, c. ec., 1966.

– NASCENTES, Antenor – Dicionário da Língua Portuguesa, Brasil, Depart. Imprensa Nac., 1966.

– LELLO, op. cit..

(10) – MACHADO, José Pedro, Grande Dicionário da Língua Portuguesa, Amigos do Livro, 1981.

 

 

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