CONCLUSÃO
«Um pouco de informação, o encontro fortuito de uma produção artística,
alimentam sem dúvida o espírito de criação. Mas uma excessiva
informação, um demasiado arreigamento pelas produções de arte, podem
esterilizá-lo».
«O desejo de ser aceite e admirado revela-se muito próximo do de chocar
e de provocar escândalo; de um para o outro vai um pequeno passo, que
nem sempre é claramente pressentido».
Jean Dubuffet
Na falta de outro título mais sugestivo, concluo com a
conclusão (perdoe-se o pleonasmo). Tentarei aqui realizar não só o
balanço do que foi escrito – neste sentido, o capítulo será uma espécie
de conclusão das conclusões – mas também abordar algumas das ideias que,
no desenrolar da escrita, ficaram pacientemente à espera de uma
oportunidade para se manifestarem.
Na primeira parte destes escritos insisti no facto do
universo de incidência da investigação não se circunscrever à imagística
do moliceiro. Propus, em contrapartida, como objecto de estudo TODOS os
sinais (icónicos ou verbais) apostos nas embarcações tradicionais da Ria
de Aveiro. Por extensão foi necessário aflorar, mais que uma vez,
exemplares vizinhos daquelas, nomeadamente os barcos de mar (Arte da
Xávega) e cangas vareiras.
Este alargamento do objecto de estudo permitiu, através
da recolha de imagens:
1. – a detecção de uma linha emblemática sobretudo nas
proas das bateiras;
2. – a detecção de um conjunto coerente de signos
icónicos e verbais, sobretudo nas bateiras chinchorras e, por
paralelismo, no barco de mar;
3. – a análise estrutural da imagística do moliceiro;
4. – a verificação da permeabilidade geral da imagística
às modificações sociais «exteriores»;
5. – a verificação de mútuas influências gráficas entre
as embarcações da ria, segundo uma espécie de emulação estética.
A este respeito, é interessante, por exemplo,
encontrarmos no canal de S. Roque, ancorados junto dos armazéns de sal,
alguns saleiros profusamente decorados.
Tal exuberância decorativa não é, em definitivo, uma
herança tradicional, mas, pelo contrário, uma característica adquirida e
recente. Ora, não será este um fenómeno de imitação e emulação do
moliceiro, barco de que fala meio mundo, que enche o olho e as
objectivas das máquinas fotográficas?
Vendo estes grandes barcos «travestidos» com círculos,
flores e arabescos, flutuando mansamente num canal apertado, pergunto-me
se com o moliceiro não teria acontecido algo de semelhante, se, afinal,
a sua imagística não teria sido, na génese, o resultado de uma imitação
de outro barco, ou mais provavelmente de outro artefacto, porventura a
canga vareira...
Há, na Ria, locais e datas próprios para a competição
entre barcos. Esta desenrola-se a
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vários títulos, incluindo o do respectivo valor estético (beleza das
decorações, das flâmulas, etc.). As competições têm lugar por ocasião
das festas populares, fundadas no calendário litúrgico. Os barcos
assumem, nestas alturas, um importante papel: servem às populações
ribeirinhas de meio de transporte para o local da festa, de abrigo para
pernoitar, de espaço de convívio... Actualmente, por razões diversas por
exemplo, pelo desenvolvimento dos meios de comunicação terrestres – os
barcos têm perdido esta preponderância.
Apesar disso, na zona geográfica de incidência nuclear da
investigação, subsiste uma importante festa – o S. Paio – que faz
acorrer à praia da Torreira centenas de embarcações tradicionais nos
dias 6, 7 e 8 de Setembro. Esta festividade oferece ao investigador
etnólogo uma série de factos curiosos: a imersão da imagem do santo em
vinho, o pernoitar colectivo de rapazes e raparigas nas praias de mar,
nos paineiros dos barcos, ou nas esteiras nos palheiros e uma dinâmica
entre a ria e o mar como pólos de movimento dos grupos sociais. Tal é o
impacto deste ambiente na terminologia das populações ribeirinhas que a
expressão Uma Noite de S. Paio é sinónimo de uma noite às claras,
qualquer que seja a razão da insónia...
Também o historiador encontrará nestas festas valioso
material. Segundo documentos relatados por José Maria
Barbosa,(1) o S.
Paio teve, em 1867, a visita do Duque de Loulé e demais acompanhantes
ilustres, recebidos festivamente pelas gentes e autoridades ribeirinhas,
onde pontificavam as presenças «distantes» de Albergaria e de Sever do
Vouga.
Esta festa quase se torna uma feira de sinais! Retocam-se
ou refazem-se as pinturas dos barcos, embandeiram-se as velas, cada qual
escolhe a melhor roupa... Depois, é entrar na festa, onde hoje são
visíveis as influências dos media e dos emigrantes.
Uma das conclusões a que igualmente chegamos diz respeito
à permeabilidade dos sinais e das mensagens (icónicas ou verbais) às
transformações sociais. Em muitos dos exemplos detectados, as
modificações foram incorporadas nas estruturas tradicionais da
distribuição da imagística, Noutras, porém, as modificações introduzidas
subvertem a ordem estrutural e resultam em produtos onde imperam o mau
gosto e o artificial. No meu ponto de vista, uma das características da
imagística dos barcos da ria, em especial daquela que compõe os motivos
centrais dos painéis pintados no moliceiro, é exactamente a de oferecer
esquemas de registo das modificações sociais e históricas. Como noutra
ocasião escrevi
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a propósito do moliceiro, é possível detectar na sua
imagística «sistemas de integração e classificação do real).(2)
O processo de criação destas pinturas constitui uma «arrumação» de
motivos nos espaços físicos pré-destinados do barco e nas categorias
mentais que o seu criador dispõe no momento.
Há, entretanto, modificações inevitáveis, que ficaram por
referir, ao nível da evolução dos instrumentos e meios de pintura: tipos
e qualidade de tintas, gama de cores, tipos e qualidade dos pincéis,
instrumentos de traçado... Toda esta variedade de produtos que o
progresso põe à disposição do pintor, vieram inevitavelmente
reflectir-se e, porventura, transformar, as soluções estéticas
tradicionais.
Foi dito que nos painéis pintados no moliceiro figura uma
história mítica, com os seus heróis, os seus malandrins e as suas
tragédias. Mas, à força de se impor/expor aos olhos do público, a
contrária também é verdadeira: o moliceiro tornou-se uma embarcação
mítica no imaginário colectivo da região. É interessante verificar como
os diversos centros concelhios reivindicam para si próprios a posse
deste barco. Figura imprescindível em quase todos os folhetos turísticos
da Ria de Aveiro, ele tornou-se uma espécie de ex-libris da laguna. De
certo modo, ao assumir o estatuto de ante passado anfíbio das
comunidades ribeirinhas, o moliceiro transmuta-se num totem. Depois, é
vê-lo figurar nas barricas de ovos moles e nas de enguias, revestir, em
monumentais fotos, paredes de companhias de seguros, dar nome a
restaurantes e bares, servir de emblema para usar ao peito, inspirar
aguarelistas e pintores locais; é vê-lo em painéis de azulejos ou em
porcelanas, decapitado, com a proa a «embelazar» os
quintais de certas vivendas,(3)
ou simplesmente vendido como souvenir em miniaturas geralmente de má
qualidade…
Assim, enredado na sua própria estratégia de ostentação,
o moliceiro passa a ser exibido! Este barco, que num passado recente era
um sinal de riqueza do proprietário, é, hoje, falado, reproduzido e
desvirtuado, para ostentar interna e externamente a riqueza patrimonial
de uma região.
Talvez seja esta, finalmente, a situação mais ameaçadora
com que este barco se confronta.
Ao atribuir um estatuto mítico ao moliceiro, faz-se dele
uma «criatura» intemporal. Assim, relativamente à sua idade, a resposta
comum situa-o como «imemorável» e «arcaico»...
Já no início destes escritos, tive ocasião de reflectir
sobre esta tendência em conceder «profundas antiguidades» às coisas da
terra, embarcações incluídas... Vemos, finalmente, como esta tendência é
também o resultado do estatuto mítico que o moliceiro – especialmente o
moliceiro – adquire. Ora, em diversos momentos do texto, foi questionada
a idade das embarcações tradicionais da ria. Podemos considerá-las ou
como modelos praticamente imutáveis ao longo do tempo, ou como modelos
que resultam de interacções dinâmicas entre si e com o meio envolvente
(meio físico, meio social, meio económico, etc.). Pelas razões já
expostas, inclino-me para a segunda hipótese.
A tipologia dos barcos tradicionais não é certamente
invariável na história da laguna. O moliceiro, por exemplo, enquanto
tipo de barco com a forma que lhe conhecemos, é possível que não vá além
do séc. XIX. A corroborar esta ideia, temos, por paralelismo, a
investigação realizada sobre a antiguidade das variantes
decoradas das cangas de tábuas que a situa em meados do séc. XIX.(4)
Também as referências ao moliceiro apontam nesta
direcção... O Padre Vieira Resende, na sua Monografia da Gafanha, cita
um decreto de 2 de Julho de 1802, pelo qual foi lançado «o imposto de 40
reis aos barcos carregados com moliço e de 20 reis aos
barcos menores».
(5)
Podíamos ser tentados a identificar os barcos maiores e
os barcos menores respectivamente com os moliceiros do norte e com os
mirões; ou então com o moliceiro e com a bateira que por vezes ele
reboca e que é usada para alcançar os canais mais estreitos e de menor
profundidade... Mas, podemos também, e com menor esforço, tomar à letra
o que foi escrito: os barcos quaisquer barcos – grandes pagariam, por
efeito de lei, 40 reis; os pequenos – quais quer que eles fossem –
pagariam 20 reis.
Numa investigação realizada sobre os conteúdos de
dicionários existentes na Biblioteca Nacional, verifiquei:
– a não figuração dos termos moliço e moliceiro
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até princípios do séc. XIX.
(6)
– uma evolução semântica no termo moliceiro a partir do
séc. XIX: como adjectivo designou desde «o barco em que
se transportava o moliço»,(7)
até ao «barco de formas especiais em que se transporta
o moliço na ria de Aveiro»,
(8) como
substantivo, começou por ser sinónimo de sargaceiro,(9)
até englobar a «barca ou barco para transporte de moliço».(10)
Do ponto de vista funcional, lembremos, finalmente, que a
procura do moliço corresponde a uma fase de desenvolvimento agrícola.
Assim, em determinada altura, que corresponde ao povoamento de zonas até
então estéreis, aumentou a procura deste adubo natural. E se, até então,
a sua recolha fora garantida no quadro das pequenas explorações
familiares, recorrendo às bateiras, começa agora a sentir-se a
necessidade de sistematizar essa recolha. Procede-se à especialização de
funções: aparece uma embarcação
adaptada, ou transformada e uma profissão – o moliceiro
barco e o moliceiro de profissão. Mas o desenvolvimento agrícola liga-se
também à prosperidade dos lavradores locais. Ora, é exactamente esta
burguesia rural quem vai dar o impulso definitivo para a afirmação deste
jovem barco... Transforma-lhe o rosto, enobrecendo-o, revelando aí a sua
pujança social, cobre-lhe o casco de sinais provenientes de um passado
íntimo onde, por paradoxo, a actualidade ganha cores de
festa.
Fascinados pela paisagem da laguna, dizemos com Raul
Brandão e Almada Negreiros que a luz não tem dono. Mas tem: são os
barcos, que a aprisionam em sinais radiosos!
________________________________________
(1)
– BARBOSA, José Maria – A Murtosa - a propósito da sua autonomia,
Aveiro, tipo Campeão das Províncias, 1899.
(2)
– Op. cit., p, 32.
(3)
– O aparecimento de proas dos moliceiros nos terrenos dianteiros de
algumas vivendas, sendo recente, tem uma curiosa correspondência no
passado. O Padre João Vieira de Resende, na obra Monografia da
Gafanha, ÍIhavo, Gráf. ilhavense, 1938, escreveu, a propósito dos
hábitos das gentes da Gafanha:
«Os filhos dormiam fora de casa, ou nas proas dos barcos
presos ao moirão ma borda, ou nas mesmas proas dos barcos cortados e
para esse fim instalados nos pátios, ou ainda nos palheiros».
(4)
– OLIVEIRA, Ernesto Veiga de –, GALHANO, Fernando – e PEREIRA, Benjamim
– Op. cit..
(5)
– Op. cit., p. 273.
(6)
– Foram consultadas as seguintes obras:
– BLUTEAU, P. D. Raphael – Vocabulario Portuguez e
Latino, Coimbra, 1712.
– Dicionário da língua portuguesa, Lisboa, publ.
Ac. Real das Ciências de Lisboa, 1793.
– Dicionário da língua portuguesa composto sobre os que
até ao presente se têm dado ao prelo, 1806.
– Novo Dicionário da Língua Portuguesa, 1835. O
termo «moliço» aparece com o significado de: «Espécie de palha de colmar
casas».
(7)
– FIGUEIREDO, Cândido de – Dicionário da Língua Portuguesa, 148
ed., Lisboa, Livr. Bertrand, 1947.
(8)
– LELLO, José e – LELLO, Edgar – Lello Universal. Dicionário
enciclopédico luso-brasileiro, Porto, Lello e irmão,
1976.
(9)
– BIVAR, Artur – Dicionário geral e analítico da Língua Portuguesa,
Porto, ed. Ouro. 1952
– GONÇALVES, F. Rebelo – Vocabulário da Língua
Portuguesa, Coimbra, c. ec., 1966.
– NASCENTES, Antenor – Dicionário da Língua Portuguesa,
Brasil, Depart. Imprensa Nac., 1966.
– LELLO, op. cit..
(10)
– MACHADO, José Pedro, Grande Dicionário da Língua Portuguesa,
Amigos do Livro, 1981.
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