O FOLCLORE
E O DESENVOLVIMENTO CULTURAL
DA JUVENTUDE
Sugeriram-me
um trabalho sobre a valorização dos jovens pela prática do folclore.
No meu trabalho, quando falo em folclore ou prática de
folclore, refiro-me aos ranchos folclóricos, que recolheram música,
danças e cantares tradicionais, com o objectivo de deles fazer
espectáculo. Não me refiro ao folclore vivo, que ainda hoje é
susceptível de ser encontrado, entendido como ciência do povo, que
engloba todos os aspectos da cultura popular como sejam certos jogos,
romarias, utensílios, canções, etc., e que leva folcloristas, etnógrafos
e antropólogos a correr mundo, com objectivos completamente diferentes
dos ranchos folclóricos, em busca daquilo que está em vias de se perder
com o tempo.
Embora eu pense que o futuro do folclore, como de tudo,
aliás, vai depender dos jovens, considero que a valorização pela prática
do folclore abrange novos e velhos e que a coexistência de pessoas de
idades diferentes dentro dos grupos só contribui para essa valorização.
O mundo é feito de contrastes naturais que criam o equilíbrio: a noite e
o dia, o calor e o frio, o velho e novo. Creio, no entanto, que essa
valorização só se realizará efectivamente se a prática do folclore não
for acto único e alienatório. Quero eu dizer que, para que o folclore
seja conhecimento de uma outra realidade histórico-social que não a
nossa e também da nossa, e possa ser compreendido em termos de
espectáculo, momentos de prazer e de boa disposição, para que o folclore
seja efectivamente uma actividade cultural, aos jovens deverão ser
fornecidas possibilidades de contactos com outras realidades culturais,
como sejam o cinema, o teatro, a música clássica ou de vanguarda, a
dança e o conhecimento de pessoas ligadas a outras actividades
diferentes.
O jovem necessita saber qual o seu papel na sociedade em
que vive para nela se afirmar. A prática do folclore é também uma forma
de afirmação – Eu estou aqui e sei dançar o Vira, as Modinhas de Roda ou
ainda as Canas Verdes -Isto é uma forma de afirmação. O conhecimento de
outras formas culturais ajuda-o a compreender o lugar do folclore no
meio de todas as outras coisas. Deste modo, o folclore daqui a uns anos
não será necessariamente o mesmo que é hoje, nem terá o mesmo papel
dentro de cada pequena ou grande localidade onde surgiu, nem no contexto
geral do país.
Que será que atrai os jovens para a prática do folclore?
Parece-me que a principal razão para a entrada num grupo
folclórico é o desejo inato do movimento - movimento que liberta o
corpo, movimento que liberta o espírito. Mas é mais do que isso, é a
procura de movimento sob o impulso estético que é universal.
Há provas de na Antiguidade a dança ser uma actividade
bastante cultivada, assim como a música e o canto. Todos os povos
primitivos e actuais têm os seus ritmos e as suas danças, embora com
funções diferentes (estão ligadas a formas mágicas ou religiosas) das
que têm na nossa sociedade. Mas, seja qual for a sua função social, o
que é facto é que estas actividades artísticas se encontram em todos os
povos. E, se não acreditarmos que elas são inerentes ao ser humano,
observemos as crianças que ainda sem o peso da repressão social (que
impede de o fazerem com à-vontade) se movimentam ritmicamente ao som de
qualquer música que lhes chegue aos ouvidos.
Temos depois aquilo a que chamei as razões clandestinas,
que são a procura de uma maior liberdade, de viagens, de conhecimentos e
ainda a falta de outros meios para uma realização no plano artístico
(escolas de dança, de música, clubes de cinema, etc.), ou no campo
desportivo (campos de jogos, pavilhões e associações com modalidades
praticáveis por toda a gente e ainda a falta de simples encontros
familiares ou de amigos onde se podem desenvolver alguns dotes
artísticos).
Por tudo isto, podemos ter uma ideia do papel social que
os grupos folclóricos têm dentro de uma comunidade e muito especialmente
na província.
Algumas pessoas aderem a este tipo de actividades por
sentimentalismo, graças ao conhecimento quase directo da realidade
social ligada às nossas danças e cantares. A casa velha dos
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avós, o bocado de terra que o pai tem no campo, o celeiro, o cheiro do
trigo, o pisar escorregadio do milho dos tempos de infância, os
palheiros, as carroças, os lagares, as vindimas, a apanha da azeitona, e
o cheiro que anda no ar no tempo próprio de cada uma destas actividades.
Resumindo, o contacto com o campo e as actividades agrícolas numa fase
pré-industrializada, a que se prendem os trajes, as danças, os cantos
religiosos, e as cantigas do nosso folclore e que têm como consequência
o amor a tudo isto, o saudosismo inevitável, o bairrismo.
Creio que depois de inseridas nos grupos folclóricos, as
pessoas têm ratificações que classificarei de três tipos:
– O lúdico.
– O informativo/formativo/fonte de conhecimento.
– O afectivo.
1.º O lúdico, ou o que dá prazer e que faz parte da vida
de cada um tão naturalmente como o seu trabalho, o repouso, etc. O
lúdico é, talvez, a parte mais importante, aquela que se procura em
primeiro lugar.
Um ensaio de folclore tem em vista o aperfeiçoamento e a
manutenção do corpo para que se mantenha em forma mas também dá prazer a
quem nele participa. E se esse prazer não é imediato, o ensaio tem em
vista um prazer futuro, é um pouco graças a ele que se irá desfrutar no
domingo X esse mesmo prazer durante a exibição que se irá fazer.
O prazer de dançar diante de um público, de ser
aplaudido, de ser apreciado, de ser, enfim, importante. O prazer que se
tem num pais estrangeiro de ser rodeado de atenções e de carinhos por
pessoas com hábitos diferentes dos nossos.
2.º O informativo/ formativo/fonte de conhecimento,
aquele que as pessoas que praticam o folclore talvez menos se apercebam
mas que no entanto lhes vai sendo fornecido.
Conhecimento através da prática do folclore pelo pais ou
pelo estrangeiro de outro folclore que juntamente com o nosso forma um
todo, que ajuda a conhecer uma parte do passado e a explicar uma parte
do presente.
Por outro lado há a sensibilização não apenas para o que
é música e movimento, mas para toda a realidade social e histórica onde
se desenvolve essa música e esse movimento. Sensibilização ainda para a
chamada arte popular aos múltiplos aspectos (construções, roupas,
música, canto, dança, histórias, cerâmica, etc.). Sensibilização para o
significado de todas as coisas e da sua integração na vida da sua época
com a realidade de hoje.
30 E, a finalizar, o aspecto afectivo. O contacto humano,
a troca de experiências, de ideias, de emoções. A identificação com o
grupo ajuda à integração dos jovens na comunidade e ao desenvolvimento
das suas potencial idades. Há casos de jovens rebeldes que, depois de
inseridos em grupos, adquirem um maior equilíbrio dentro de si, porque
se sentem necessários à vida dos mesmos e ai se podem afirmar. Outros
casos há em que os jovens são muito tímidos e, quando inseridos em
grupos, adquirem maior desenvoltura. E importante o elo que se
estabelece entre pessoas de vivências tão diferentes, desde os mais
novos aos mais velhos, dentro do próprio grupo para o conhecimento de
pessoas ligadas a realidades tão diferentes da nossa, tanto nacionais
como estrangeiras.
Não é por acaso que, quando se desloca ao estrangeiro, o
nosso grupo se despede a chorar e deixa muita gente a chorar. Há toda
uma relação afectiva que é criada entre as pessoas do grupo e que é
alargada a pessoas estranhas ao grupo; foi o que aconteceu aquando da
nossa ida a França. Surgem amizades, troca de correspondência com
pessoas que nos visitam e que gostam de nós. E a afectividade, é bom não
esquecer, é uma das coisas mais necessárias à vida de todos nós.
Os grupos folclóricos, tal como estão hoje constituídos e
como funcionam, não se irão manter necessariamente até final dos
séculos. É inevitável que o folclore que alguns pretendem puro, aquele
que existe ainda hoje por esse país fora, que é executado por algumas
pessoas ligadas às tarefas evocadas por ele (danças e cantares) e ainda
hoje, no seu dia-a-dia, vestem trajes típicos da sua região, esse
folclore irá desaparecer inevitavelmente.
Também o cheiro dos lagares de azeite, ou dos celeiros
familiares, o colete ou o barrete do avô ou a chinela da avó feita à mão
pelo sapateiro da terra à maneira artesanal irão sendo, infelizmente,
substituídos pelas roupas, sapatos, etc., comprados no pronto a vestir
mais próximo e ai se vai toda a afectividade, todo o bairrismo que nos
liga a estas coisas da saia de roda, do lenço de pintas, das saias de
renda. As pessoas
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que irão praticar o folclore, o que aliás já acontece em muitos grupos,
estão completamente desligadas do ambiente em que nasceram e cresceram
as danças e cantares executados pelos grupos. A agricultura
industrializa-se cada vez mais, as pessoas que executavam o folclore vêm
das fábricas, das escolas, das oficinas, etc. Por tudo isto as
motivações para a prática do folclore terão de ser no futuro
necessariamente outras.
A industrialização matou o folclore ou terá sido pelo
contrário a industrialização que deu vida ao folclore (palavra muito
recente, aliás), já que é ela que vem criar diferenças nítidas e
decisivas entre o que se usava e o que se usa?
Antigamente não havia ranchos folclóricos. Considero os
grupos folclóricos como grupos artificiais, não no sentido pejorativo, é
evidente, mas como grupos constituídos com um fim artístico, de
espectáculos muito vivos onde se expõem as danças, as músicas e os
trajes antigos, típicos das diferentes regiões. Havia lugares e ocasiões
– desfolhadas, festas, casamentos, feiras, etc., – onde as pessoas se
juntavam e dançavam, cantando as suas cantigas e trajando à sua maneira.
Fabricavam os seus objectos de adorno ou de utilidade para o seu
dia-a-dia, com os materiais e as técnicas conhecidas na região, mas isso
não era folclore, era a sua vivência diária, tão actualizada quanto o
processo histórico o permitia. A partir do momento em que se começou a
generalizar o uso de determinadas ferramentas, de determinadas peças de
vestuário, objectos de adorno, etc., uniformizados pelo fabrico em série
e divulgados pelos meios de comunicação, impondo assim os modelos que os
inventores e os meios de produção vão lançando, uniformizando assim o
gosto das pessoas, aquilo que era usado e utilizado antes, fabricado
segundo o poder criativo das pessoas da região, caiu em desuso. Aquilo
que foi resistindo, ou é diferente de região para região, foi chamado
folclore, ou seja aquilo que permaneceu mas que está fora de moda, que
pertence a um tempo diferente do nosso.
Ainda hoje, em algumas localidades, encontramos mulheres
de saias rodadas, de blusas bordadas e lenços coloridos ou negros,
homens de barrete ou chapéu de palha que continuam a cultivar a terra
com o seu suor e a sua enxada, em localidades onde já chegou há muito a
televisão com a última moda das grandes cidades. Mas a gente jovem
procura outros meios de vida e adquire novos hábitos.
Por tudo isto, como já afirmei, no futuro as motivações e
as razões que levarão à prática do folclore serão inevitavelmente
outras. As pessoas já não terão toda essa carga afectiva do passado a
ligá-las à prática do folclore. No futuro, esta prática deveria ser
outra coisa que não apenas o ensaio duas vezes por semana e exibir-se
onde for solicitado. Terá que se encaminhar para a satisfação dos
desejos artísticos e do conhecimento de quem pratica o folclore.
Algumas das propostas, que em meu entender introduziriam
uma nova dinâmica na prática do folclore, seriam por exemplo:
1.º O folclore deveria ser exibido em ambientes próprios,
para dignificação do mesmo e para motivação dos que o praticam,
nomeadamente, festivais ou espectáculos de folclore, ou exibições
inseridas noutras actividades culturais mas com enquadramento próprio,
(para que os grupos folclóricos não se vissem obrigados a actuar em
alguns casos sem o mínimo de condições.
2.º A oxigenação de toda a prática do folclore, para uma
verdadeira e completa
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valorização de quem o pratica, deveria passar por uma procura de
actividades mais criativas, desenvolvidas paralelamente à actividade da
dança. Nomeadamente, novas recolhas por parte dos componentes dos
grupos, com tradições, e que terão de ser feitas quanto antes, pois de
contrário perderemos muito do que ainda existe; só é possível enriquecer
os grupos se recolhermos tudo o que diz respeito à dança, ao canto, ao
traje, os próprios contos, jogos, rezas, etc.
O Rancho Folclórico do Baixo Vouga tem desenvolvido este
trabalho com a sua equipa de recolhas, tendo o mesmo obtido
extraordinário resultado.
3.º Penso que os ensaios devem ser entendidos como
exercícios físicos, exercícios de concentração e de respiração para que
se possa conseguir uma maior mobilidade e graciosidade de gestos na
dança e no à-vontade em cima do palco (entendido o folclore como
espectáculo). O folclore não pode continuar a ser considerado, porque
não é efectivamente, a arte menor dos palcos nacionais.
4.º Aprendizagem (intercâmbio) de danças e cantares de
outros grupos do Minho ao AIgarve, para um conhecimento maior do todo de
que fazemos parte.
5.º Fornecimento de conhecimentos teóricos sobre o
folclore: saber o porquê das diferenças do folclore a nível nacional,
etc.
6.º Definição dos deveres e dos direitos de quem pratica
o folclore, com o respectivo traje, como o usar pinturas, mastigar
chicletes, etc., etc.
Somos praticantes e amantes das danças e cantares
antigos, tradicionais, e devemos, temos de os reproduzir fielmente,
assim como os trajes correspondentes. E urgente que todos os grupos
trajem a rigor, mas temos também o direito a uma personalidade e a uma
fisionomia que é a nossa, e não aquela de quem quer que seja, mesmo que
se trate da nossa bisavó.
Creio que a Federação do Folclore Português é o órgão
mais qualificado em Portugal; portanto, tem um papel importante a
desempenhar neste campo. Creio também que os professores, nas escolas
primárias, preparatórias e secundárias ou nas universidades, podem
igualmente dar o seu contributo; já há mesmo escolas no nosso país que
começaram a interessar-se pelo folclore, o que muito me agrada. Estou
certa de que, deste intercâmbio, todos sairemos mais enriquecidos.
Eixo, 29 de Maio de 1986
Maria Fernanda Vieira
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Nota da Redacção – Este trabalho foi apresentado pela
autora no I Colóquio sobre Folclore do Concelho de Aveiro,
realizado em 29 de Maio de 1986.
– As gravuras são do IV Tomo de "Estudos Etnográficos
– Aveiro – Marnotos e Embarcações Fluviais", de D. José de Castro.
(D. = Domingos José de Castro)
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