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Boletim n.º 7 - Ano IV - 1986

 

O FOLCLORE

E O DESENVOLVIMENTO CULTURAL DA JUVENTUDE

 

Sugeriram-me um trabalho sobre a valorização dos jovens pela prática do folclore.

No meu trabalho, quando falo em folclore ou prática de folclore, refiro-me aos ranchos folclóricos, que recolheram música, danças e cantares tradicionais, com o objectivo de deles fazer espectáculo. Não me refiro ao folclore vivo, que ainda hoje é susceptível de ser encontrado, entendido como ciência do povo, que engloba todos os aspectos da cultura popular como sejam certos jogos, romarias, utensílios, canções, etc., e que leva folcloristas, etnógrafos e antropólogos a correr mundo, com objectivos completamente diferentes dos ranchos folclóricos, em busca daquilo que está em vias de se perder com o tempo.

Embora eu pense que o futuro do folclore, como de tudo, aliás, vai depender dos jovens, considero que a valorização pela prática do folclore abrange novos e velhos e que a coexistência de pessoas de idades diferentes dentro dos grupos só contribui para essa valorização. O mundo é feito de contrastes naturais que criam o equilíbrio: a noite e o dia, o calor e o frio, o velho e novo. Creio, no entanto, que essa valorização só se realizará efectivamente se a prática do folclore não for acto único e alienatório. Quero eu dizer que, para que o folclore seja conhecimento de uma outra realidade histórico-social que não a nossa e também da nossa, e possa ser compreendido em termos de espectáculo, momentos de prazer e de boa disposição, para que o folclore seja efectivamente uma actividade cultural, aos jovens deverão ser fornecidas possibilidades de contactos com outras realidades culturais, como sejam o cinema, o teatro, a música clássica ou de vanguarda, a dança e o conhecimento de pessoas ligadas a outras actividades diferentes.

O jovem necessita saber qual o seu papel na sociedade em que vive para nela se afirmar. A prática do folclore é também uma forma de afirmação – Eu estou aqui e sei dançar o Vira, as Modinhas de Roda ou ainda as Canas Verdes -Isto é uma forma de afirmação. O conhecimento de outras formas culturais ajuda-o a compreender o lugar do folclore no meio de todas as outras coisas. Deste modo, o folclore daqui a uns anos não será necessariamente o mesmo que é hoje, nem terá o mesmo papel dentro de cada pequena ou grande localidade onde surgiu, nem no contexto geral do país.

Que será que atrai os jovens para a prática do folclore?

Parece-me que a principal razão para a entrada num grupo folclórico é o desejo inato do movimento - movimento que liberta o corpo, movimento que liberta o espírito. Mas é mais do que isso, é a procura de movimento sob o impulso estético que é universal.

Há provas de na Antiguidade a dança ser uma actividade bastante cultivada, assim como a música e o canto. Todos os povos primitivos e actuais têm os seus ritmos e as suas danças, embora com funções diferentes (estão ligadas a formas mágicas ou religiosas) das que têm na nossa sociedade. Mas, seja qual for a sua função social, o que é facto é que estas actividades artísticas se encontram em todos os povos. E, se não acreditarmos que elas são inerentes ao ser humano, observemos as crianças que ainda sem o peso da repressão social (que impede de o fazerem com à-vontade) se movimentam ritmicamente ao som de qualquer música que lhes chegue aos ouvidos.

Temos depois aquilo a que chamei as razões clandestinas, que são a procura de uma maior liberdade, de viagens, de conhecimentos e ainda a falta de outros meios para uma realização no plano artístico (escolas de dança, de música, clubes de cinema, etc.), ou no campo desportivo (campos de jogos, pavilhões e associações com modalidades praticáveis por toda a gente e ainda a falta de simples encontros familiares ou de amigos onde se podem desenvolver alguns dotes artísticos).

Por tudo isto, podemos ter uma ideia do papel social que os grupos folclóricos têm dentro de uma comunidade e muito especialmente na província.

Algumas pessoas aderem a este tipo de actividades por sentimentalismo, graças ao conhecimento quase directo da realidade social ligada às nossas danças e cantares. A casa velha dos / 22 / avós, o bocado de terra que o pai tem no campo, o celeiro, o cheiro do trigo, o pisar escorregadio do milho dos tempos de infância, os palheiros, as carroças, os lagares, as vindimas, a apanha da azeitona, e o cheiro que anda no ar no tempo próprio de cada uma destas actividades. Resumindo, o contacto com o campo e as actividades agrícolas numa fase pré-industrializada, a que se prendem os trajes, as danças, os cantos religiosos, e as cantigas do nosso folclore e que têm como consequência o amor a tudo isto, o saudosismo inevitável, o bairrismo.

Creio que depois de inseridas nos grupos folclóricos, as pessoas têm ratificações que classificarei de três tipos:

– O lúdico.

– O informativo/formativo/fonte de conhecimento.

– O afectivo.

1.º O lúdico, ou o que dá prazer e que faz parte da vida de cada um tão naturalmente como o seu trabalho, o repouso, etc. O lúdico é, talvez, a parte mais importante, aquela que se procura em primeiro lugar.

Um ensaio de folclore tem em vista o aperfeiçoamento e a manutenção do corpo para que se mantenha em forma mas também dá prazer a quem nele participa. E se esse prazer não é imediato, o ensaio tem em vista um prazer futuro, é um pouco graças a ele que se irá desfrutar no domingo X esse mesmo prazer durante a exibição que se irá fazer.

O prazer de dançar diante de um público, de ser aplaudido, de ser apreciado, de ser, enfim, importante. O prazer que se tem num pais estrangeiro de ser rodeado de atenções e de carinhos por pessoas com hábitos diferentes dos nossos.

2.º O informativo/ formativo/fonte de conhecimento, aquele que as pessoas que praticam o folclore talvez menos se apercebam mas que no entanto lhes vai sendo fornecido.

Conhecimento através da prática do folclore pelo pais ou pelo estrangeiro de outro folclore que juntamente com o nosso forma um todo, que ajuda a conhecer uma parte do passado e a explicar uma parte do presente.

Por outro lado há a sensibilização não apenas para o que é música e movimento, mas para toda a realidade social e histórica onde se desenvolve essa música e esse movimento. Sensibilização ainda para a chamada arte popular aos múltiplos aspectos (construções, roupas, música, canto, dança, histórias, cerâmica, etc.). Sensibilização para o significado de todas as coisas e da sua integração na vida da sua época com a realidade de hoje.

30 E, a finalizar, o aspecto afectivo. O contacto humano, a troca de experiências, de ideias, de emoções. A identificação com o grupo ajuda à integração dos jovens na comunidade e ao desenvolvimento das suas potencial idades. Há casos de jovens rebeldes que, depois de inseridos em grupos, adquirem um maior equilíbrio dentro de si, porque se sentem necessários à vida dos mesmos e ai se podem afirmar. Outros casos há em que os jovens são muito tímidos e, quando inseridos em grupos, adquirem maior desenvoltura. E importante o elo que se estabelece entre pessoas de vivências tão diferentes, desde os mais novos aos mais velhos, dentro do próprio grupo para o conhecimento de pessoas ligadas a realidades tão diferentes da nossa, tanto nacionais como estrangeiras.

Não é por acaso que, quando se desloca ao estrangeiro, o nosso grupo se despede a chorar e deixa muita gente a chorar. Há toda uma relação afectiva que é criada entre as pessoas do grupo e que é alargada a pessoas estranhas ao grupo; foi o que aconteceu aquando da nossa ida a França. Surgem amizades, troca de correspondência com pessoas que nos visitam e que gostam de nós. E a afectividade, é bom não esquecer, é uma das coisas mais necessárias à vida de todos nós.

Os grupos folclóricos, tal como estão hoje constituídos e como funcionam, não se irão manter necessariamente até final dos séculos. É inevitável que o folclore que alguns pretendem puro, aquele que existe ainda hoje por esse país fora, que é executado por algumas pessoas ligadas às tarefas evocadas por ele (danças e cantares) e ainda hoje, no seu dia-a-dia, vestem trajes típicos da sua região, esse folclore irá desaparecer inevitavelmente.

Também o cheiro dos lagares de azeite, ou dos celeiros familiares, o colete ou o barrete do avô ou a chinela da avó feita à mão pelo sapateiro da terra à maneira artesanal irão sendo, infelizmente, substituídos pelas roupas, sapatos, etc., comprados no pronto a vestir mais próximo e ai se vai toda a afectividade, todo o bairrismo que nos liga a estas coisas da saia de roda, do lenço de pintas, das saias de renda. As pessoas / 23 / que irão praticar o folclore, o que aliás já acontece em muitos grupos, estão completamente desligadas do ambiente em que nasceram e cresceram as danças e cantares executados pelos grupos. A agricultura industrializa-se cada vez mais, as pessoas que executavam o folclore vêm das fábricas, das escolas, das oficinas, etc. Por tudo isto as motivações para a prática do folclore terão de ser no futuro necessariamente outras.

A industrialização matou o folclore ou terá sido pelo contrário a industrialização que deu vida ao folclore (palavra muito recente, aliás), já que é ela que vem criar diferenças nítidas e decisivas entre o que se usava e o que se usa?

Antigamente não havia ranchos folclóricos. Considero os grupos folclóricos como grupos artificiais, não no sentido pejorativo, é evidente, mas como grupos constituídos com um fim artístico, de espectáculos muito vivos onde se expõem as danças, as músicas e os trajes antigos, típicos das diferentes regiões. Havia lugares e ocasiões – desfolhadas, festas, casamentos, feiras, etc., – onde as pessoas se juntavam e dançavam, cantando as suas cantigas e trajando à sua maneira. Fabricavam os seus objectos de adorno ou de utilidade para o seu dia-a-dia, com os materiais e as técnicas conhecidas na região, mas isso não era folclore, era a sua vivência diária, tão actualizada quanto o processo histórico o permitia. A partir do momento em que se começou a generalizar o uso de determinadas ferramentas, de determinadas peças de vestuário, objectos de adorno, etc., uniformizados pelo fabrico em série e divulgados pelos meios de comunicação, impondo assim os modelos que os inventores e os meios de produção vão lançando, uniformizando assim o gosto das pessoas, aquilo que era usado e utilizado antes, fabricado segundo o poder criativo das pessoas da região, caiu em desuso. Aquilo que foi resistindo, ou é diferente de região para região, foi chamado folclore, ou seja aquilo que permaneceu mas que está fora de moda, que pertence a um tempo diferente do nosso.

Ainda hoje, em algumas localidades, encontramos mulheres de saias rodadas, de blusas bordadas e lenços coloridos ou negros, homens de barrete ou chapéu de palha que continuam a cultivar a terra com o seu suor e a sua enxada, em localidades onde já chegou há muito a televisão com a última moda das grandes cidades. Mas a gente jovem procura outros meios de vida e adquire novos hábitos.

Por tudo isto, como já afirmei, no futuro as motivações e as razões que levarão à prática do folclore serão inevitavelmente outras. As pessoas já não terão toda essa carga afectiva do passado a ligá-las à prática do folclore. No futuro, esta prática deveria ser outra coisa que não apenas o ensaio duas vezes por semana e exibir-se onde for solicitado. Terá que se encaminhar para a satisfação dos desejos artísticos e do conhecimento de quem pratica o folclore.

Algumas das propostas, que em meu entender introduziriam uma nova dinâmica na prática do folclore, seriam por exemplo:

1.º O folclore deveria ser exibido em ambientes próprios, para dignificação do mesmo e para motivação dos que o praticam, nomeadamente, festivais ou espectáculos de folclore, ou exibições inseridas noutras actividades culturais mas com enquadramento próprio, (para que os grupos folclóricos não se vissem obrigados a actuar em alguns casos sem o mínimo de condições.

2.º A oxigenação de toda a prática do folclore, para uma verdadeira e completa / 24 / valorização de quem o pratica, deveria passar por uma procura de actividades mais criativas, desenvolvidas paralelamente à actividade da dança. Nomeadamente, novas recolhas por parte dos componentes dos grupos, com tradições, e que terão de ser feitas quanto antes, pois de contrário perderemos muito do que ainda existe; só é possível enriquecer os grupos se recolhermos tudo o que diz respeito à dança, ao canto, ao traje, os próprios contos, jogos, rezas, etc.

O Rancho Folclórico do Baixo Vouga tem desenvolvido este trabalho com a sua equipa de recolhas, tendo o mesmo obtido extraordinário resultado.

3.º Penso que os ensaios devem ser entendidos como exercícios físicos, exercícios de concentração e de respiração para que se possa conseguir uma maior mobilidade e graciosidade de gestos na dança e no à-vontade em cima do palco (entendido o folclore como espectáculo). O folclore não pode continuar a ser considerado, porque não é efectivamente, a arte menor dos palcos nacionais.

4.º Aprendizagem (intercâmbio) de danças e cantares de outros grupos do Minho ao AIgarve, para um conhecimento maior do todo de que fazemos parte.

5.º Fornecimento de conhecimentos teóricos sobre o folclore: saber o porquê das diferenças do folclore a nível nacional, etc.

6.º Definição dos deveres e dos direitos de quem pratica o folclore, com o respectivo traje, como o usar pinturas, mastigar chicletes, etc., etc.

Somos praticantes e amantes das danças e cantares antigos, tradicionais, e devemos, temos de os reproduzir fielmente, assim como os trajes correspondentes. E urgente que todos os grupos trajem a rigor, mas temos também o direito a uma personalidade e a uma fisionomia que é a nossa, e não aquela de quem quer que seja, mesmo que se trate da nossa bisavó.

Creio que a Federação do Folclore Português é o órgão mais qualificado em Portugal; portanto, tem um papel importante a desempenhar neste campo. Creio também que os professores, nas escolas primárias, preparatórias e secundárias ou nas universidades, podem igualmente dar o seu contributo; já há mesmo escolas no nosso país que começaram a interessar-se pelo folclore, o que muito me agrada. Estou certa de que, deste intercâmbio, todos sairemos mais enriquecidos.

Eixo, 29 de Maio de 1986

Maria Fernanda Vieira

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Nota da Redacção – Este trabalho foi apresentado pela autora no I Colóquio sobre Folclore do Concelho de Aveiro, realizado em 29 de Maio de 1986.

– As gravuras são do IV Tomo de "Estudos Etnográficos – Aveiro – Marnotos e Embarcações Fluviais", de D. José de Castro. (D. = Domingos José de Castro)
 

 

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