Acesso à hierarquia superior.

Boletim n.º 7 - Ano IV - 1986

 

DR. JAIME DE MAGALHÃES LIMA

– NO CINQUENTENÁRIO DA SUA MORTE

 

Cinquenta anos após o seu passamento deste mundo – e quase de esquecimento, se não fora a homenagem das Câmaras de Aveiro, Ílhavo e Murtosa com a publicação de dois livros póstumos e a erecção dum monumento no Parque D. Pedro da cidade natal

Jaime de Magalhães Lima emerge no firmamento das figuras mais ilustres e veneráveis da nossa cidade como um astro de primeira grandeza que nos ilumina com as cintilações do seu espírito, nos confunde com a simplicidade do seu modo de ser e de estar no mundo, e nos edifica e arrebata com a bondade do seu coração.

Para quem não teve a felicidade de o conhecer pessoalmente, resta a consolação de poder penetrar no seu pensamento através da grandiosa, multiforme e riquíssima obra literária que nos legou e que, ao fim de cinco décadas, se nos impõe suave e irresistivelmente, tal a beleza. a profundidade e o carisma que o seu invulgar talento nela imprimiu e nos revela.

Autor de trinta livros, de catorze conferências publicadas, de quinze prefácios, de quatro traduções de obras francesas e inglesas; colaborador assíduo de trinta e três revistas e de quarenta jornais; pioneiro da cultura científica do eucalipto no nosso País, a ponto de transformar a sua Quinta de S. Francisco num verdadeiro solar do eucalipto com cerca de oitenta espécies diferentes – durante bastante tempo, a maior colecção da Europa; introdutor da literatura russa do século XIX, sobretudo das obras de Leão Tolstoi, no nosso meio culto que de todo a desconhecia; amigo e confidente de alguns dos mais brilhantes espíritos do último quartel do século passado e do primeiro do actual, como, Antero de Quental, Oliveira / 15 / Martins, Eça de Queirós, Alberto Sampaio, António Feijó, Luís de Magalhães, Agostinho de Campos, Júlio Henriques, Teixeira Lopes. Alberto de Oliveira, entre outros; venerador incondicional e discípulo fiel de S. Francisco de Assis, a quem dedicou nada menos de dois livros e o próprio oratório que ergueu junto da sua casa e a ela ligado por um belo arco redondo; admirador de Tolstoi, mas crítico em relação às suas doutrinas; apaixonado por tudo o que a natureza é, produz e manifesta, podendo considerar-se, por isso, precursor dos modernos movimentos ecológicos – são estas algumas das principais facetas da inconfundível personalidade de Jaime de Magalhães Lima.

Franciscano por devoção e quase por instinto, cedo descobriu no Patriarca de Assis um modelo perfeito e uma inspiração permanente para a modéstia da sua casa, voltada ao sol e à paisagem, para o seu desprendimento dos bens materiais e para a simplicidade do seu estilo de vida. S. Francisco foi, por certo, o maior e o mais venerado mestre da sua peregrinação neste mundo.

À pessoa e ao modo de viver de Leão Tolstoi prendeu-o «a mais ilimitada admiração», reconhecendo-o despido de todo o snobismo, absorvido no mistério da terra e aureolado com a humildade, «a maior de todas as bênçãos divinas».

Mas a sua admiração pela pessoa de Tolstoi não o impedia de pôr reservas às doutrinas tolstoianas, contrapondo que, destruída a família, a propriedade e o estado, «a sociedade cai na anarquia, na guerra, na livre soberania da luta pela vida, negação da fraternidade».

A visita pessoal de Jaime de Magalhães Lima a Leão Tolstoi em lasnaia Polianafeita em 1898 não foi o encontro do discípulo com o professor ou do aprendiz com o mestre, mas o convívio entre dois espíritos superiores, o diálogo franco entre duas mentalidades que por vezes se confrontaram firme e correctamente.

Este encontro com o grande pensador e romancista russo não parece ter sido o objectivo exclusivo da viagem à Rússia, pois o modo como o descreveu – «vindo à Rússia, não pude roubar-me o prazer de visitar o Conde Tolstoi» – contraria tal suposição.

O acolhimento feito por Tolstoi, vestido de roupão e com o / 16 / lençol de banho ao pescoço, não começou da melhor maneira. Jaime de Magalhães Lima, acompanhado de um intérprete, apresentou-se como sendo proprietário e jornalista, ao que Tolstoi replicou severamente: «O que há de melhor é pedir esmola; ser intérprete já é melhor do que ser proprietário, mas ser proprietário é o que eu conheço de pior» – «c'est ce qu’il y a de pire» , teria dito em francês, segundo a informação pessoal que me foi dada pela filha mais velha do escritor aveirense, D. Maria do Cardal.

As relações pessoais e literárias entre os dois escritores não ficaram por aqui. Nesta entrevista, Jaime de Magalhães Lima, vendo o seu hospedeiro mais preocupado com problemas de religião e de moral do que com assuntos literários e sociais, falou-lhe de Antero de Quental e ficou de lhe mandar um exemplar de Os Sonetos em língua alemã. Quando cumpriu esta promessa, escreveu-lhe uma carta, datada de 15 de Março de 1889 e existente no Museu de Tolstoi em Moscovo, na qual lhe manifestava o seu vivo reconhecimento pela recepção – «uma das mais doces e encantadoras recordações da minha vida.» – renovava a sua admiração e fazia uma verdadeira confissão da sua vida pessoal nessa altura.

Lamentavelmente, a resposta de Tolstoi a essa carta e, porventura, a outras mais desapareceu. As cartas que restavam na posse da Família Magalhães Lima foram-me gentilmente confiadas para estudo e, entre elas, não havia qualquer vestígio de correspondência do autor de Guerra e Paz.

Quando faleceu, o escritor aveirense deixou nas gavetas do seu escritório pelo menos um livro já preparado para entrar na tipografia: «Entre pastores e nas serras», e apontamentos para mais uns outros sete. Entre estes, um esboço biográfico de Leão Tolstoi, de que apenas pôde redigir o primeiro capítulo: A ser concluído, constituiria o complemento do estudo «As doutrinas do Conde Leão Tolstoi» e a coroa da vasta série de artigos e estudos que espalhou pela imprensa portuguesa do seu tempo sobre a sua pessoa e sua obra.

De resto, quase como ícone votivo, um retrato do romancista russo estava no escritório da Quinta de S. Francisco, na parede contígua à mesa de trabalho, o que só por si documenta a admiração / 17 / que lhe votava e a inspiração que nele sempre procurava.

No entanto, a visita a lasnaia Poliana e toda esta vasta produção tolstoiana eram praticamente desconhecidas dos inúmeros admiradores de Leão Tolstoi até que William B. Edgerton, professor da Universidade de Indiana nos Estados Unidos, leu no «Diário» de Tolstoi uma referência a Antero de Quental e, ao procurar numa história de literatura portuguesa mais informações sobre o autor de Os Sonetos, descobriu o nome de Jaime de Magalhães Lima e a sua visita a lasnaia Poliana.

Investigador sereno e objectivo, veio a Aveiro em Setembro de 1971, expressamente para encontrar cartas inéditas do escritor russo, pois recusava-se a admitir que Tolstoi não tivesse respondido ao escritor aveirense nem agradecido a oferta de Os Sonetos.

O autor deste prefácio acompanhou o professor americano durante a estada em Aveiro e levou-o à Quinta de S. Francisco, onde os recebeu gentilmente a neta do escritor aveirense, D. Maria do Rosário Magalhães Lima Mascarenhas de Almeida Azevedo.

Cartas de Leão Tolstoi não as havia, mas não faltaram elementos para revelar o papel pioneiro de Jaime de Magalhães Lima na divulgação da literatura russa do século XIX e, particularmente, da obra de Tolstoi ao público português e mesmo às classes mais cultas.

Com estes elementos e outros que viria a colher em Coimbra e Lisboa, William B. Edgerton pôde documentar-se para escrever um precioso estudo TOLSTOY AND MAGALHÃES LIMA, que foi publicado pela revista americana Comparative Literature, (volume XXVIll, n.º 1, em 1976).

A partir dai, o nome de Jaime de Magalhães Lima passou a ser conhecido na vasta confraria dos admiradores de Leão Tolstoi, tanto na União Soviética como em todo o mundo.

William B. Edgerton continuou a interessar-se pela cultura portuguesa e publicou um estudo sobre o acolhimento dado em Portugal e na Espanha ao escritor russo Dostoievsky – Spanish and Portuguese Responses to Dostoevskij – na «Revue de Litérature Comparée» (tomo LV, n.º 3-4, de Julho-Dezembro de 1981), na qual voltou a falar de Jaime de Magalhães Lima e do seu pioneirismo neste campo.

/ 18 / Mesmo sem aprofundar, interessa referir as relações pessoais e literárias entre Antero de Quental e Jaime de Magalhães Lima, já que Antero foi também um dos grandes mestres do patriarca aveirense que, em boa hora, transformou a sua propriedade do Vale de Suão em solar do eucalipto e Quinta de S. Francisco.

As nove cartas que Antero de Quental escreveu a Jaime de Magalhães Lima são documentos de rara beleza literária, indispensáveis para a interpretação crítica de Os Sonetos e da evolução espiritual do seu autor, e traduzem um relacionamento pessoal impressionante, tanto pela nobreza de sentimentos, como pela confiança e admiração recíprocas que exprimem.

Não admira, por isso, que o suicídio de Antero – "o melhor dos meus mestres", como chegou a chamar-lhe – tivesse deixado o escritor aveirense totalmente surpreendido e profundamente desorientado.

Em carta a seu cunhado Luís de Magalhães, de 25 de Setembro de 1891, descreveu assim a sua reacção à notícia desta morte trágica: «estabeleceu-se no meu espírito uma confusão de saudade. De surpresa e de dúvidas que verdadeiramente me esmaga. Fugiu-me a terra debaixo dos pés, parece que me sinto sem apoio, – parece-me que vivia tanto das próprias crenças e convicções, como das crenças e convicções do mestre».

A sua admiração por Antero não diminuiu e, logo que surgiu a ideia da publicação dum In Memoriam de Antero de Quental, aderiu com entusiasmo e nele colaborou escrevendo um artigo sentido sob a epígrafe significativa de «Um Justo».

Jaime de Magalhães Limam se admirava os grandes mestres que nortearam o seu espírito, não admirava menos a natureza, que lhe deu grandes lições, lhe povoou a imaginação de sonhos e encheu de beleza o seu olhar penetrante e melancólico.

Apesar de ter nascido na cidade e até de ter experimentado a força e a velocidade dos primeiros automóveis chegados à nossa região, não se deixou cegar pelas luzes artificiais do progresso técnico. Preferia as longas caminhadas a pé, onde podia contemplar a paisagem e encontrar-se com os homens simples dos campos e das serras.

Sentir a paisagem era para ele «uma das mais puras e consoladoras / 19 / delícias da vida». Mas não apreciava a paisagem pela paisagem; queria ver nela a presença do homem, porque entre a paisagem e o homem havia «um mistério eterno e inacessível».

A paisagem não era, pois, apenas um regalo para os olhos; nela descobria igualmente «um pensamento moral», «uma voz de consciência» «uma voz de heroísmo», «uma voz de humildade» e até uma «voz de opulência e dissipação», conforme os casos.

Entre as maravilhas que a natureza prodigamente oferece, as serras eram os seus sonhos e os seus amores.

Calcorreou em várias direcções as serras do Gerês, da Freita da Gralheira, das Talhadas, do Marão e da Estrela. Mas a mais linda e a mais nobre era o Caramulo.

Percorreu o Caramulo em todos os sentidos, quer pelo caminho mais linear passando por Bolfiar, Castanheira e S. João do Monte, quer pelo Préstimo e Cabeça de Cão, quer de nascente para poente por Tondela e Guardão, quer indo pelo caminho de ferro até Vila Chã, perto de Oliveira de Frades, e depois, de caleche e a pé por Pereiras, Campia, Alcobra e Paredes.

Não gostava de peregrinar sozinho; queria a companhia de alguém para poder partilhar as belezas que descobria e os sentimentos que lhe inundavam o coração.

Na romagem ao Caramulo que é descrita mais pormenorizadamente neste livro, fez-se acompanhar por seu filho Sebastião e por um amigo de Amarante, António Taveira.

A descrição da paisagem, sempre bela e sugestiva, é completada por profundas reflexões sobre o contraste abissal entre a civilização urbana e a vida campestre, entre os vícios da cidade e a pureza dos montes, entre o artificialismo da urbe e a simplicidade dos campos e das serras.

O próprio estilo é um, quando pinta a vida serrana. e outro, quando reflecte sobre as contradições da vida citadina. No primeiro caso, é simples, agradável e fluente; no segundo, complexo, reflexivo e, por vezes, denso em demasia.

A belíssima descrição dos louceiros de Moledos – verdadeira página de antologia – demonstra cabalmente a sua admiração pelos homens simples que souberam adaptar-se à serra com a força da sua paciência e trabalhar o barro com os primores da sua arte.

 / 20 / O Caramulo tem os seus admiradores e os seus poetas, mas ninguém até hoje o admirou com tanto entusiasmo, o contemplou com tanto êxtase e o cantou com tanta paixão como Jaime de Magalhães Lima.

Ao tomar a iniciativa das celebrações do cinquentenário do falecimento de Jaime de Magalhães Lima e ao publicar este belo livro póstumo, que os seus netos gentilmente cederam, a PORTUCEL, que é hoje proprietária da Quinta de S. Francisco e nela conserva e enriquece a preciosa colecção de eucaliptos que Jaime de Magalhães Lima plantou em primeira mão, presta a sua homenagem ao escritor e agricultor aveirense e merece jus ao reconhecimento de todos aqueles que colocam os valores do espírito acima dos interesses puramente materiais e a dignidade humana acima das razões mercantis do deve e haver.


 

 

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