DR. JAIME DE MAGALHÃES LIMA
– NO CINQUENTENÁRIO DA SUA
MORTE
Cinquenta
anos após o seu passamento deste mundo – e quase de esquecimento, se não
fora a homenagem das Câmaras de Aveiro, Ílhavo e Murtosa com a
publicação de dois livros póstumos e a erecção dum monumento no Parque
D. Pedro da cidade natal
Jaime de Magalhães Lima emerge no firmamento das figuras
mais ilustres e veneráveis da nossa cidade como um astro de primeira
grandeza que nos ilumina com as cintilações do seu espírito, nos
confunde com a simplicidade do seu modo de ser e de estar no mundo, e
nos edifica e arrebata com a bondade do seu coração.
Para quem não teve a felicidade de o conhecer
pessoalmente, resta a consolação de poder penetrar no seu pensamento
através da grandiosa, multiforme e riquíssima obra literária que nos
legou e que, ao fim de cinco décadas, se nos impõe suave e
irresistivelmente, tal a beleza. a profundidade e o carisma que o seu
invulgar talento nela imprimiu e nos revela.
Autor de trinta livros, de catorze conferências
publicadas, de quinze prefácios, de quatro traduções de obras francesas
e inglesas; colaborador assíduo de trinta e três revistas e de quarenta
jornais; pioneiro da cultura científica do eucalipto no nosso País, a
ponto de transformar a sua Quinta de S. Francisco num verdadeiro solar
do eucalipto com cerca de oitenta espécies diferentes – durante bastante
tempo, a maior colecção da Europa; introdutor da literatura russa do
século XIX, sobretudo das obras de Leão Tolstoi, no nosso meio culto que
de todo a desconhecia; amigo e confidente de alguns dos mais brilhantes
espíritos do último quartel do século passado e do primeiro do actual,
como, Antero de Quental, Oliveira
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Martins, Eça de Queirós, Alberto Sampaio, António Feijó, Luís de
Magalhães, Agostinho de Campos, Júlio Henriques, Teixeira Lopes. Alberto
de Oliveira, entre outros; venerador incondicional e discípulo fiel de
S. Francisco de Assis, a quem dedicou nada menos de dois livros e o
próprio oratório que ergueu junto da sua casa e a ela ligado por um belo
arco redondo; admirador de Tolstoi, mas crítico em relação às suas
doutrinas; apaixonado por tudo o que a natureza é, produz e manifesta,
podendo considerar-se, por isso, precursor dos modernos movimentos
ecológicos – são estas algumas das principais facetas da inconfundível
personalidade de Jaime de Magalhães Lima.
Franciscano por devoção e quase por instinto, cedo
descobriu no Patriarca de Assis um modelo perfeito e uma inspiração
permanente para a modéstia da sua casa, voltada ao sol e à paisagem,
para o seu desprendimento dos bens materiais e para a simplicidade do
seu estilo de vida. S. Francisco foi, por certo, o maior e o mais
venerado mestre da sua peregrinação neste mundo.
À pessoa e ao modo de viver de Leão Tolstoi prendeu-o «a
mais ilimitada admiração», reconhecendo-o despido de todo o snobismo,
absorvido no mistério da terra e aureolado com a humildade, «a maior de
todas as bênçãos divinas».
Mas a sua admiração pela pessoa de Tolstoi não o impedia
de pôr reservas às doutrinas tolstoianas, contrapondo que, destruída a
família, a propriedade e o estado, «a sociedade cai na anarquia, na
guerra, na livre soberania da luta pela vida, negação da fraternidade».
A visita pessoal de Jaime de Magalhães Lima a Leão
Tolstoi em lasnaia Polianafeita em 1898 não foi o encontro do discípulo
com o professor ou do aprendiz com o mestre, mas o convívio entre dois
espíritos superiores, o diálogo franco entre duas mentalidades que por
vezes se confrontaram firme e correctamente.
Este encontro com o grande pensador e romancista russo
não parece ter sido o objectivo exclusivo da viagem à Rússia, pois o
modo como o descreveu – «vindo à Rússia, não pude roubar-me o prazer de
visitar o Conde Tolstoi» – contraria tal suposição.
O acolhimento feito por Tolstoi, vestido de roupão e com
o
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lençol de banho ao pescoço, não começou da melhor maneira. Jaime de
Magalhães Lima, acompanhado de um intérprete, apresentou-se como sendo
proprietário e jornalista, ao que Tolstoi replicou severamente: «O que
há de melhor é pedir esmola; ser intérprete já é melhor do que ser
proprietário, mas ser proprietário é o que eu conheço de pior» – «c'est
ce qu’il y a de pire» , teria dito em francês, segundo a informação
pessoal que me foi dada pela filha mais velha do escritor aveirense, D.
Maria do Cardal.
As relações pessoais e literárias entre os dois
escritores não ficaram por aqui. Nesta entrevista, Jaime de Magalhães
Lima, vendo o seu hospedeiro mais preocupado com problemas de religião e
de moral do que com assuntos literários e sociais, falou-lhe de Antero
de Quental e ficou de lhe mandar um exemplar de Os Sonetos em
língua alemã. Quando cumpriu esta promessa, escreveu-lhe uma carta,
datada de 15 de Março de 1889 e existente no Museu de Tolstoi em
Moscovo, na qual lhe manifestava o seu vivo reconhecimento pela recepção
– «uma das mais doces e encantadoras recordações da minha vida.» –
renovava a sua admiração e fazia uma verdadeira confissão da sua vida
pessoal nessa altura.
Lamentavelmente, a resposta de Tolstoi a essa carta e,
porventura, a outras mais desapareceu. As cartas que restavam na posse
da Família Magalhães Lima foram-me gentilmente confiadas para estudo e,
entre elas, não havia qualquer vestígio de correspondência do autor de
Guerra e Paz.
Quando faleceu, o escritor aveirense deixou nas gavetas
do seu escritório pelo menos um livro já preparado para entrar na
tipografia: «Entre pastores e nas serras», e apontamentos para
mais uns outros sete. Entre estes, um esboço biográfico de Leão Tolstoi,
de que apenas pôde redigir o primeiro capítulo: A ser concluído,
constituiria o complemento do estudo «As doutrinas do Conde Leão Tolstoi» e a coroa da vasta série de artigos e estudos que espalhou pela
imprensa portuguesa do seu tempo sobre a sua pessoa e sua obra.
De resto, quase como ícone votivo, um retrato do
romancista russo estava no escritório da Quinta de S. Francisco, na
parede contígua à mesa de trabalho, o que só por si documenta a
admiração
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que lhe votava e a inspiração que nele sempre procurava.
No entanto, a visita a lasnaia Poliana e toda esta vasta
produção tolstoiana eram praticamente desconhecidas dos inúmeros
admiradores de Leão Tolstoi até que William B. Edgerton, professor da
Universidade de Indiana nos Estados Unidos, leu no «Diário» de Tolstoi
uma referência a Antero de Quental e, ao procurar numa história de
literatura portuguesa mais informações sobre o autor de Os Sonetos,
descobriu o nome de Jaime de Magalhães Lima e a sua visita a lasnaia
Poliana.
Investigador sereno e objectivo, veio a Aveiro em
Setembro de 1971, expressamente para encontrar cartas inéditas do
escritor russo, pois recusava-se a admitir que Tolstoi não tivesse
respondido ao escritor aveirense nem agradecido a oferta de Os
Sonetos.
O autor deste prefácio acompanhou o professor americano
durante a estada em Aveiro e levou-o à Quinta de S. Francisco, onde os
recebeu gentilmente a neta do escritor aveirense, D. Maria do Rosário
Magalhães Lima Mascarenhas de Almeida Azevedo.
Cartas de Leão Tolstoi não as havia, mas não faltaram
elementos para revelar o papel pioneiro de Jaime de Magalhães Lima na
divulgação da literatura russa do século XIX e, particularmente, da obra
de Tolstoi ao público português e mesmo às classes mais cultas.
Com estes elementos e outros que viria a colher em
Coimbra e Lisboa, William B. Edgerton pôde documentar-se para escrever
um precioso estudo TOLSTOY AND MAGALHÃES LIMA, que foi publicado pela
revista americana Comparative Literature, (volume XXVIll, n.º 1,
em 1976).
A partir dai, o nome de Jaime de Magalhães Lima passou a
ser conhecido na vasta confraria dos admiradores de Leão Tolstoi, tanto
na União Soviética como em todo o mundo.
William B. Edgerton continuou a interessar-se pela
cultura portuguesa e publicou um estudo sobre o acolhimento dado em
Portugal e na Espanha ao escritor russo Dostoievsky – Spanish and
Portuguese Responses to Dostoevskij – na «Revue de Litérature Comparée»
(tomo LV, n.º 3-4, de Julho-Dezembro de 1981), na qual voltou a falar
de Jaime de Magalhães Lima e do seu pioneirismo neste campo.
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Mesmo sem aprofundar, interessa referir as relações pessoais e
literárias entre Antero de Quental e Jaime de Magalhães Lima, já que
Antero foi também um dos grandes mestres do patriarca aveirense que, em
boa hora, transformou a sua propriedade do Vale de Suão em solar do
eucalipto e Quinta de S. Francisco.
As nove cartas que Antero de Quental escreveu a Jaime de
Magalhães Lima são documentos de rara beleza literária, indispensáveis
para a interpretação crítica de Os Sonetos e da evolução
espiritual do seu autor, e traduzem um relacionamento pessoal
impressionante, tanto pela nobreza de sentimentos, como pela confiança e
admiração recíprocas que exprimem.
Não admira, por isso, que o suicídio de Antero – "o
melhor dos meus mestres", como chegou a chamar-lhe – tivesse deixado o
escritor aveirense totalmente surpreendido e profundamente desorientado.
Em carta a seu cunhado Luís de Magalhães, de 25 de
Setembro de 1891, descreveu assim a sua reacção à notícia desta morte
trágica: «estabeleceu-se no meu espírito uma confusão de saudade. De
surpresa e de dúvidas que verdadeiramente me esmaga. Fugiu-me a terra
debaixo dos pés, parece que me sinto sem apoio, – parece-me que vivia
tanto das próprias crenças e convicções, como das crenças e convicções
do mestre».
A sua admiração por Antero não diminuiu e, logo que
surgiu a ideia da publicação dum In Memoriam de Antero de
Quental, aderiu com entusiasmo e nele colaborou escrevendo um artigo
sentido sob a epígrafe significativa de «Um Justo».
Jaime de Magalhães Limam se admirava os grandes mestres
que nortearam o seu espírito, não admirava menos a natureza, que lhe deu
grandes lições, lhe povoou a imaginação de sonhos e encheu de beleza o
seu olhar penetrante e melancólico.
Apesar de ter nascido na cidade e até de ter
experimentado a força e a velocidade dos primeiros automóveis chegados à
nossa região, não se deixou cegar pelas luzes artificiais do progresso
técnico. Preferia as longas caminhadas a pé, onde podia contemplar a
paisagem e encontrar-se com os homens simples dos campos e das serras.
Sentir a paisagem era para ele «uma das mais puras e
consoladoras
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delícias da vida». Mas não apreciava a paisagem pela paisagem; queria
ver nela a presença do homem, porque entre a paisagem e o homem havia
«um mistério eterno e inacessível».
A paisagem não era, pois, apenas um regalo para os olhos;
nela descobria igualmente «um pensamento moral», «uma voz de
consciência» «uma voz de heroísmo», «uma voz de humildade» e até uma
«voz de opulência e dissipação», conforme os casos.
Entre as maravilhas que a natureza prodigamente oferece,
as serras eram os seus sonhos e os seus amores.
Calcorreou em várias direcções as serras do Gerês, da
Freita da Gralheira, das Talhadas, do Marão e da Estrela. Mas a mais
linda e a mais nobre era o Caramulo.
Percorreu o Caramulo em todos os sentidos, quer pelo
caminho mais linear passando por Bolfiar, Castanheira e S. João do
Monte, quer pelo Préstimo e Cabeça de Cão, quer de nascente para poente
por Tondela e Guardão, quer indo pelo caminho de ferro até Vila Chã,
perto de Oliveira de Frades, e depois, de caleche e a pé por Pereiras,
Campia, Alcobra e Paredes.
Não gostava de peregrinar sozinho; queria a companhia de
alguém para poder partilhar as belezas que descobria e os sentimentos
que lhe inundavam o coração.
Na romagem ao Caramulo que é descrita mais
pormenorizadamente neste livro, fez-se acompanhar por seu filho
Sebastião e por um amigo de Amarante, António Taveira.
A descrição da paisagem, sempre bela e sugestiva, é
completada por profundas reflexões sobre o contraste abissal entre a
civilização urbana e a vida campestre, entre os vícios da cidade e a
pureza dos montes, entre o artificialismo da urbe e a simplicidade dos
campos e das serras.
O próprio estilo é um, quando pinta a vida serrana. e
outro, quando reflecte sobre as contradições da vida citadina. No
primeiro caso, é simples, agradável e fluente; no segundo, complexo,
reflexivo e, por vezes, denso em demasia.
A belíssima descrição dos louceiros de Moledos –
verdadeira página de antologia – demonstra cabalmente a sua admiração
pelos homens simples que souberam adaptar-se à serra com a força da sua
paciência e trabalhar o barro com os primores da sua arte.
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O Caramulo tem os seus admiradores e os seus poetas, mas ninguém até
hoje o admirou com tanto entusiasmo, o contemplou com tanto êxtase e o
cantou com tanta paixão como Jaime de Magalhães Lima.
Ao tomar a iniciativa das celebrações do cinquentenário
do falecimento de Jaime de Magalhães Lima e ao publicar este belo livro
póstumo, que os seus netos gentilmente cederam, a PORTUCEL, que é hoje
proprietária da Quinta de S. Francisco e nela conserva e enriquece a
preciosa colecção de eucaliptos que Jaime de Magalhães Lima plantou em
primeira mão, presta a sua homenagem ao escritor e agricultor aveirense
e merece jus ao reconhecimento de todos aqueles que colocam os valores
do espírito acima dos interesses puramente materiais e a dignidade
humana acima das razões mercantis do deve e haver.
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