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Boletim n.º 5 - Ano III - 1985

Francisco Joaquim Bingre - «O Cisne do Vouga»

 

          Soneto

Lícia, risca teu nome n'áurea História

Dos Impérios a que ufana pertenceste,

Nela o primeiro lugar já tiveste,

Hoje a lembrança tua é irrisória!

 

A vinte e quatro de Agosto, da Memória

No Templo, a frente avante ergueste;

Curva-te hoje, porém, que já perdeste

Do ano vinte a adquirida Glória!

 

Do Báratro, onde as fúrias têm morada,

Surgiu de Junho infausto o quarto dia

Da Era vinte e três sempre odiada...

 

Ó insano poder da Hipocrisia,

Que afouta imperas na raça deslustrada!

Quem fará terminar tua ousadia?!

 

NOTAS – 24 de Agosto de 1820 – Data da primeira revolução liberal, que, eclodindo no Porto, logo alastrou pelo País.

4 de Junho de 1823 – Aclamação de D, João VI como rei absoluto, após o pronunciamento militar, que teve à frente o Infante D, Miguel, 'qual ficou conhecido por "Vilafrancada».

 

          Ao Nome Português

Nome excelso, que imenso espaço abranges

Do pólo ocidental ao disco ardente;

Tocha acesa na luz do rico oriente,

Senhor das palmas, que produz o Ganges;

 

Tu, que fizeste os púnicos Alfanges

Largar com susto o Malabar ingente,

E cem vezes em África patente

Espantar as horríficas Falanges;

 

Tu, que vives no céu, no mar, na terra,

Impresso nos padrões da heroicidade,

A tenaz opressão de nós desterra.

 

Este canto, que sagro à Liberdade,

Excelso Nome Português encerra

Contigo no salão da Eternidade.

 

 

Assinatura do "Cisne do Vouga”

 

          Soneto

Treze anos, Senhor, se têm passado

Em triste estado, em mísera orfandade,

Vítimas do desprezo e da saudade

No mais cruel e lastimoso estado.

 

Por valor nobre aos Portugueses dado

Tomando por escudo a lealdade,

Arrancaram dos braços da maldade

Para nós o depósito sagrado.

 

Vinde, ó Reis, vinde ouvir seus votos puros,

Todos os corações cultos vos rendem,

E ditosos fareis dias futuros.

 

Recobrar seus direitos só pretendem

Se da vossa justiça estão seguros

Em pedir o que é seu não vos ofendem.

 

NOTA – Por causa das invasões francesas, a Família Real tinha-se retirado para o Brasil, deixando Lisboa em 29 de Novembro de 1807; regressaria ao Reino em Abril de 1821.

 

Elogio recitado em Aveiro na abertura do Teatro da Pascoela

         – Elogio –

Se é morta Esparta, se não vive Atenas,

Almas heróicas inda Jove cria,

Inda das limpas regiões serenas

Baixa a virtude, a iluminar o dia.

Inda do coro de imortais comenos

Melpómene gentil a nós envia

O Génio nacional, o semi-divo

Que ao Vouga faz calçar coturno Argivo.

 

Se a insípida Borleta, alçando a frente,

Da fofa estupidez apadrinhada,

Leva sempre após si, em grossa enchente

Imensos vivas da Nação castrada:

Se o monótono som tem só pendente

O ouvido espectador, na acção contada,

Hoje, Aveiro vai pôr na cena lusa

A dar choque às paixões trágica Musa.

 

Inês, a linda Inês, que um Fado escuro

Fez vítima infeliz de seus amores;

Que tendo um fim mesquinho, um grão futuro

Teve nas liras de imortais cantores,

Dessa amante fiel o peito puro

Que apunhalado foi por vis traidores:

É o trágico assunto, que hoje em cena

Põe Júnior imortal com douta pena.

 

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Os dois fins da tragédia, os dois preceitos,

Terror e compaixão desempenhados

Vereis por hábil mão, vereis sujeitos

Dois fidos corações, tão bem ligados,

Pela fé conjugal, de amor aleitos,

Que, sendo pela negra inveja olhados,

Fez a destra arvorar da vil intriga,

Que, dum golpe, de Pedro Inês desliga.

 

Neste quadro imortal, nesta pintura

Desenhados vereis, com vivas cores,

Os eléctricos choques da ternura

E o vivo gás de conjugais amores.

Vereis raiva e furor, ódio e brandura,

O remorso, o dever, ânsias, temores,

Contrapostas paixões da Natureza

Debuxadas com arte e com viveza.

 

Entre sustos Inês, sempre amorosa,

Pedro amante fiel, sempre fogoso;

Do inflexível Afonso, alma timbrosa

De Sancho aio ancião, caracter honroso:

A política falsa e cavilosa

Dos cruéis conselheiros; o mavioso

Génio brando de Elvira, e os mais agentes

Os vossos corações terão pendentes.

 

Ilustres cidadãos, caros patrícios,

Rectos, sábios, prudentes magistrados,

Que Aveiro enobreceis, prestai propícios

As vossas atenções aos doces brados

Do génio nacional, qu'aponta os vícios,

As tremendas paixões, feitos honrados;

Qu'em regulares dramas majestosos

Abre a escola moral de heróis famosos.

 

Se temos pátria lei, que determina

Alto esplendor aos teatrais inventos

Onde a pura moral civil se ensina,

Grandes feitos, heróicos sentimentos:

Se em cena regular pura doutrina

Anivela as paixões e os pensamentos,

E os costumes gerais, qual já viu Grécia:

Em vão vozeia a estúpida inércia.

 

Excitar as paixões de heróicos feitos

É nosso intento só: eis a Tragédia.

Rir c'os vícios dos públicos desfeitos

Instruindo igualmente: eis a Comédia.

Estes foram os fins e os sãos proveitos

De Sófocles gentil, na Idade Média,

De Eurípedes, Menandro, Planto, Afrâmio,

De Terêncio imortal, cómico Arcânio.

 

Se Aveiro comercial já viu seus filhos

Por incógnitos mares, nunca arados,

Ir além do Equador, deixar seus trilhos

E seus nomes eternos, decantados;

Se o grande Afonso assinalou seus brilhos,

Nauta, descobridor de áfricos lados,

Que, rompendo por hórridas procelas,

A grande Águia de Aveiro ornou de estrelas.

 

Se já viu noutro tempo assaz vaidoso

O Vouga, em sua foz, mil naus arpando,

Dando a Aveiro gentil um nome honroso,

De seu pego saindo e nele entrando;

Se o comércio salino o fez famoso

E entre os rios de Lísia o foi alçando,

Restaurada por vós sua antiga glória,

Hoje, outra vez será na lusa história.

 

Por vós, ilustres cidadãos, guarida

As Artes hão-de ter, a vós se abrigam.

O génio nacional por vós tem vida.

Vossos patrícios dons as almas ligam.

Tem força, tem vigor virtude unida,

Em vão os Aristarcos vis a intrigam;

Ela, sempre sem susto, os ares fende;

Ela brilha nos céus, na terra esplende.

 

Actores magistrais, por uso feitos;

Por natureza e arte abalizados

Nós, senhores, não somos: nos preceitos

E regras teatrais nenhuns versados.

Vós deveis desculpar nossos defeitos,

Cientes de que nós associados

Por amor nacional, por dar-vos gosto;

Este prazer moral temos disposto.

 

Por vanglória não é, não por int'resse

Este nosso teatral ajuntamento;

Qualquer de nós somente o qu'apetece

É dar-vos um moral divertimento.

A concórdia desta arte se enobrece:

Divertir instruindo é nosso intento.

Felizes nós, se, desterrando os vícios,

Virmos à glória alçar nossos patrícios.

 

E vós, Ninfas gentis, alvas Napeias,

Filhas do pátrio Vouga graciosas,

Fugi d'amor às bárbaras cadeias

Qu'uma cega paixão cobre de rosas.

Pois gira um nobre sangue em vossas veias,

Sede amantes fiéis, segui briosas

As austeras antigas lusitanas,

Virtuosas rivais das espartanas.

 

       Epigrama

No zimbório da sé velha

Andei uma tarde aos ninhos,

E achei lá dois ovinhos

Todos cheios de gadelha.

Vénus em forma de velha

Em vejo vir, e então

Fez neles tal chocação

E deu neles tais corcovos

Que fez sair dos tais ovos

A maior cornulação.

 

 

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