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Boletim n.º 5 - Ano III - 1985

UM POETA DE AVEIRO IGNORADO

Francisco Joaquim Bingre - «O Cisne do Vouga»

 

►  1. – INTRODUÇÃO

Foi sempre o elemento líquido um dos temas da inspiração poética universal. Os rios oferecem um atractivo muito forte aos amantes do bucolismo, quer literário quer pictórico; a tranquilidade das suas águas, as margens de arvoredo idílico, o ambiente de paz e nostalgia levam a imaginação humana para o campo do sonho e da fantasia. Não admira que os apaixonados escolham esses recantos, e muito menos que os Poetas, os eternos enamorados, os cantem em seus versos.

O Vouga não foi excepção, embora não tenha tido um cantor com a fama de Bernardes, a voz do Lima. Fama que significa, apenas, projecção social e literária fora da sua época, e não valor artístico e humano – como é o caso do nosso árcade de «Francélio Vouguense», sócio fundador da «Nova Arcádia», companheiro e amigo de Bocage, de que foi partidário nas lutas deste com José Agostinho de Macedo.

Aliás, são do «Elmano Sadino» as seguintes palavras sobre o poeta Bingre:

«Ferve no audaz Francélio, e rompe os astros sacro delírio, destemida insânia» (1)

Outro poeta de nomeada, seu coevo, dirige-se-lhe numa epístola, nos seguintes termos:

«De ti (Bingre) cujo cantar admirei sempre

Por seu estilo original e a força

tão viva de expressão à graça unida:

/.../.../

Mas tu, nobre Cantor, que ao pátrio Vouga

Dás ufania, dás brasão, dás honra...» (2)

O próprio Camilo Castelo-Branco foi um dos seus admiradores fiéis, chegando a recitar versos do poeta numa festa realizada no Teatro de S. João do Porto, em 11 de Dezembro de 1852, sarau cultural que redundou num êxito enorme, segundo o depoimento dum contemporâneo do Poeta.(3) São deste grande escritor romântico, dedicados a Francisco Joaquim Bingre, estes versos onde perpassam a emoção e o respeito pelo Artista e pelo Homem:

«Dá-nos as páginas d'ouro

Que não te pertencem só:

A tua alma está nelas

Que o teu cadáver é pó!

Imprime, Bingre, os teus versos

Onde transluzam dispersos

Os teus dias que lá vão:

Lega à pátria, onde sofreste,

Quantas lágrimas verteste

Vitimado à ingratidão.»

       E finaliza:

«Irei, Poeta, irei ao teu sepulcro

uma rosa desfolhar...» (4)

 Pobre poeta Bingre, tão pobre e infeliz na vida quanto na morte! Por aquilo que já se escreveu sobre / 58 / a sua vida e obra, não creio que se tenham desfolhado muitas rosas sobre a sua campa rasa em Mira! Amante da Liberdade, foi vítima das vicissitudes políticas que o país atravessava então. Passou fome; viu morrer os seus sem lhes ter dado a vida que para eles sonhara; ficou ignorado entre um período clássico, que findava, e um outro, romântico, em que não cabia; a sua sepultura permaneceu desconhecida e abandonada; a sua obra, dispersa e em parte inédita.

Neste país, ao longo da sua História, os poetas morrem pobres e ignorados; são por vezes reabilitados, mas normalmente são-lhes recusadas «as rosas» do reconhecimento e da gratidão. Francisco Joaquim Bingre, o árcade «Francélio Vouguense», o «Cisne do Vouga», é exemplo desta minha afirmação.

 

►  2. – POEMAS INÉDITOS NA BIBLIOTECA MUNICIPAL?

Não irei fazer uma biografia do Poeta, preferindo remeter o meu possível leitor para vários trabalhos saídos a lume no «Arquivo do Distrito de Aveiro» e assinados por pessoas mais abalizadas do que eu para o fazer – tais como José Pereira Tavares e Rocha Madail. Aliás, é deste último o artigo em que me baseei para estas considerações e para o qual remeto a vossa curiosidade, já que pelo seu conteúdo e pela exaustão do tratamento do mesmo merece essa leitura.

Também não irei fazer qualquer crítica literária, para o que não estou «credenciada», embora lastimando esse facto pelo muito que haveria a estudar e a dar a conhecer sobre uma obra tão vasta como é a de Bingre – mais de mil sonetos e muitos outros poemas (cómicos, dramáticos, canções, elegias, odes, epístolas, epigramas, madrigais, etc., etc.), segundo o seu biógrafo e amigo Calisto Luís de Abreu, professor de Latim no Liceu de Aveiro(5). Espero que alguém abalizado para tal empreendimento se resolva a fazê-lo, reparando deste modo uma falta secular de ingratidão e desleixo.

O que me trouxe a estas páginas foi apenas o interesse em revelar ao público aveirense a existência, na Biblioteca Municipal, de alguns poemas do Poeta Bingre, todos eles manuscritos – possivelmente pelo Poeta –, e todos inéditos (excepto a «Proclamação do Douro aos Portuenses», de 1820, e que consta do índice da sua obra já editada) (6). São três sonetos, dois sem título, e um «Ao nome Português» – escrito no verso da primeira folha da «Proclamação»; um epigrama e um «Elogio recitado na abertura do Teatro da Pascoela em Aveiro. Estou plenamente convencida tratar-se de «inéditos», pois apesar dos esforços feitos lendo tudo o que já se publicou sobre o Poeta e a sua Obra – «Arquivo do Distrito de Aveiro» e «Violetas», de Melo Freitas –, estas poesias não constam nem do índice da sua obra nem dos artigos biográficos referidos. A sua proveniência é também desconhecida, fazendo parte do espólio da Biblioteca Municipal há muitos anos, talvez desde a sua fundação. Guardados todos estes anos numa caixa, talvez esperassem pelo aparecimento dum “Boletim Cultural da Câmara de Aveiro” para surgirem à luz do dia e criarem ao público leitor um interesse sadio pela vida e obra deste Grande Poeta da «Nova Arcádia», talvez o maior de todos os tempos do Distrito de Aveiro. Resta-nos aguardar uma resposta dos críticos literários, que se deseja de reabilitação e reconhecimento. O «Cisne do Vouga merece-o, sem dúvida.

Honorinda Maria Cerveira da Costa

____________________________

(1) – Arquivo do Distrito de Aveiro - Volume XXIX -1963

(2) – Ibidem.

(3) – Ibidem.

(4) – Ibidem.

(5) – Ibidem.

(6) – Ibidem.

 

 

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