AVEIRO NO SÉCULO XV
São passados mil e vinte e cinco anos sobre o mais velho
documento que se refere a Aveiro: é a escritura de doação da Condessa
Mumadona Dias, pela qual esta nobre dama lega os seus bens ao mosteiro
de S. Salvador de Guimarães.
Este documento é datado de 26 de Janeiro de 959, da era
cristã.
Se Aveiro já existia em mais recuados tempos, deve ter
sido saqueada e destruída pelas hordas bárbaras que invadiram a
Península e a Lusitânia, depois da queda do Império Romano do Ocidente,
pois dela não se encontra notícia senão nos meados do século X.
► ANTECEDENTES HISTÓRICOS
Os velhos documentos, exumados do pó dos antigos tombos,
têm-se mostrado avaros em dizer-nos a época da fundação da vila que, por
ser tão aprazível sítio, tão temperada no clima, tão mimosa de frutas e
pescaria e, finalmente, tão provida de tudo o necessário para sustento
da vida humana, se faz, sobre estimada, apetecida.
Assim a descreveu Pedro Tavares, Senhor de Mira, a Frei
Bernardo de Santa Maria, quando da passagem deste por Aveiro, para ali
fundar o mosteiro de Nossa Senhora do Carmo, acrescentando que «entre as
notáveis deste reino tem avantajado lugar, por ser empório tão
frequentado de naus estrangeiras e naturais, que excede a muitas grandes
e compete com as maiores da nossa costa».
Não falta, porém, quem esteja interessado em considerar
Aveiro como uma das mais antigas povoações da Península, buscando os
mais variados argumentos ou tecendo histórias mais ou menos fantasistas.
«Flumen Vacca oppidum Talabrica» , diz Plínio, ao
enumerar as cidades da Lusitânia.
Antonino, no seu itinerário, marca uma distância de
Talábriga a Aeminium igual à que vai de Aveiro a Coimbra; daí se
identificou, erradamente, Talábriga com Aveiro.
Situada «quase toda de norte a sul, em forma prolongada,
sobre uma fértil e aprazível campina, que não tem competidora em muitas
léguas em roda – como no-la descreve Cristóvão de Pinho Queimado – não é
de aceitar que tenha constituído lugar de eleição para nela se edificar
uma «oppidum» romana, opinião justificada por não terem sido encontrados
no local nem os mais ligeiros vestígios de construções ou objectos da
época da dominação romana.
Frei Bernardo de Brito, na sua Monarquia Lusitana,
quer que Aveiro tenha sido fundada pelos gregos, quando estes, depois da
guerra de Tróia, aproaram às costas da Lusitânia; e, para tanto,
fundamenta-se nos escritos do espanhol Florião del Campo, que viveu no
século XVI.
Também Carvalho da Costa, na sua Corografia Portuguesa,
diz que a povoação foi fundada pelas legiões romanas do tempo de Marco
Aurélio, com o nome de Aviarium, local com muitas lagoas, onde se criam
aves palmípedes.
Velha feitoria fenícia?
Povoação fundada pelos gregos ao sul da foz do Vouga? Ou
pelos celtas e turdetanos?
Célebre cidade luso-romana?
Actual representante da antiga Talábriga?
O que de momento se poderá afirmar é que a sua origem
está ligada à existência de sal na região, pois era grande a importância
deste produto na economia das antigas populações.
O documento datado de 959, escrito em latim bárbaro,
designa Aveiro, pelo nome de «Alavarium... in teritorio Colimbrie...
terras in Alavarium et salinas que ibidem comparavimus».
A partir desta época começam a ser frequentes as
referências à povoação que, no ano de
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1050, surge com o nome de vila de Alaveiro, no inventário dos bens de
Gonçalo Ibn Egas e de sua mulher Dona Flâmula: «in illa marina costa
sala tertia de Alaveiro...» tal qual se lê no documento 378,
Portugaliae, Monumenta Historica Diplomata et Cartae.
A categoria de «vila», que lhe é dada nesta data, não lhe
confere ainda a importância que à primeira vista parece ter, pois nos
séculos X e XI assim era designado qualquer agregado rústico.
De pouca ou nenhuma importância, pela sua posição nada
privilegiada para a guerra, sem castelos ou até mesmo muralhas que a
defendessem das constantes arremetidas dos mouros, só algumas décadas
mais tarde poderia vir a florescer, mercê do seu comércio próspero, da
sua navegação e da sua agricultura.
Muitas vezes assistiu e foi vítima das frequentes lutas
entre cristãos e mouros, quando estes ainda não tinham sido levados de
vencida para lá dos campos do Mondego.
Terra de pescadores e mareantes por excelência, nascida
para ser grande na paz, só começou a sua verdadeira vida de grandeza
depois do século XII, com a tomada de Lisboa em 1147, porquanto só a
partir desta data o tráfico marítimo foi intensificado, após o
afastamento do perigo dos piratas árabes que de Lisboa faziam a base das
suas operações.
Acentuou-se a sua importância a partir de então,
concedendo D. Dinis bastantes privilégios a quem quisesse ir morar para
a «sua vila de Aveiro».
D. Afonso IV conferiu a todos os pescadores e mareantes
da mesma vila, que já então 1348 – apareceram organizados
corporativamente na Confraria de Nossa Senhora da Alegria.
De Aveiro, no ano de 1384, saíram algumas urcas, que se
juntaram à frota que foi em socorro de Lisboa ameaçada pelos
castelhanos.
Não era, porém, chegada a hora que a «vila nobre e
notável» atingiria o seu máximo esplendor e a sua maior grandeza.
Essa hora só soará, quando Portugal tiver aventurado os
seus primeiros passos nos mares desconhecidos, na dilatação da fé e na
expansão do Império, lançando-se numa gigantesca epopeia marítima que
ficará a assinalar uma época na história e civilização de todos os
tempos.
Essa hora só soará quando chegar o século XV, século de
oiro da nossa História, o século português, quando a vila for pertença
do Infante D. Pedro que a cercará de muralhas.
Ecoará e terá ressonâncias grandiosas e sublimes através
de todos os tempos, quando aos destinos da «vila» estiver ligada para a
acompanhar, como seu anjo protector, uma figura luminosa desta época: a
Princesa Santa Joana, «a excelente Infanta e singular Princesa» no dizer
de Garcia de Resende. A sua figura eleva-se a um nível culminante sobre
aquela Europa, que, tal como a de hoje, vinha sofrendo os abalos de
profundas e radicais transformações, quer sobre o aspecto económico e
social, quer sob o aspecto intelectual, político e religioso.
► AMBIENTE EUROPEU
Vejamos:
Economicamente, o sistema corporativo medieval – que dera
origem e fizera a prosperidade de muitos burgos e vilas, como a de
Aveiro, vai-se desagregando e o capitalismo faz progressos crescentes.
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A técnica comercial desenvolve-se consideravelmente e ao
lado das casas bancárias já existentes, principalmente nas cidades
italianas de Florença, Génova e Veneza, e das suas filiais espalhadas
por toda a Europa, outras aparecem, realizando empréstimos,
subvencionando empresas, assegurando e dilatando, em suma, o comércio
internacional.
Por outro lado, ao passo que a nobreza feudal se ia
enfraquecendo e arruinando, com o crescente poder real, ergue-se potente
e dominador o Terceiro Estado, já consciente do seu poder e influência,
oferecendo aos monarcas seguro apoio, para a reacção oposta aos nobres e
ao clero.
Perante a acção centralizadora dos reis, ajudados pelos
juristas, a velha nobreza perde as suas prerrogativas, os seus
privilégios e a sua autoridade; em contraste, a influência da burguesia,
é cada vez maior: burgueses tomam conta de diversas actividades do
reino, entrando na administração do tesouro, fornecendo legistas para o
Conselho do Rei, professores para as universidades.
A nobreza de toga, vence a nobreza de sangue.
No século XIII, a cultura é eminentemente teológica; no
século XV é humana.
O estudo da Filosofia e da Teologia, que atingiu o seu
apogeu no século XIII com a Escolástica, vem-se dessorando a pouco e
pouco na especulação e discussões estéreis do século XIV, e apresenta
neste século XV, sinais de marcada decadência.
A corrente naturalista, já acentuadamente marcada em
Guilherme de Occam, encontra condições favoráveis para o seu
desenvolvimento no humanismo, largamente preparado, nos séculos
anteriores e que desabrocha, cheio de esplendor, com Dante e Petrarca
nas letras, e Giotto e Fra Angélico nas artes.
S. Francisco de Assis, com a sua doutrina amorável e
apaixonada pela natureza, abrindo vastos horizontes ao naturalismo,
ajuda a formação desta nova mentalidade.
Os franciscanos fizeram a reconciliação do homem com a
natureza «o fogo e a água foram julgados dignos de serem irmãos dum
santo. A
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própria água foi lavada e o fogo purificado: a água não é mais aquela
água que foi dos escravos, o fogo não é mais aquele fogo que imolava as
crianças a Moloch...» no dizer de Chesterton.
O estudo da latinidade, que nunca se esquecera na Idade
Média, aprofunda-se no século XIV e, no século XV, o entusiasmo pela
cultura clássica torna-se universal.
É este o século do humanismo fecundo e eterno, que, na
civilização antiga, procura os valores humanos.
Depressa, porém, degenera num humanismo literário mais
superficial, e tem a sua última degenerescência no renascimento paganizante
do século XVI.
Se as letras ganharam neste decalque dos gregos e
latinos, e as ciências experimentais se desenvolveram, a idolatria por
tudo quanto tivesse sabor clássico aniquilou a arrojada arquitectura
medieval, testemunho imperecível do idealismo dos espíritos mediévicos.
Se Giotto e Fra Giovani – O «Angelicus Pictor» – não
perdendo nunca a sua simplicidade interior no estudo da natureza e no
anseio de Ideal, deram às suas obras um cunho de ternura singela e
ingénua, os pintores do século XVI, nas suas, cantavam hinos à natureza
pagã.
Este humanismo degenerado provocou um desequilíbrio na
civilização dos séculos XV e XVI, e a sua influência, sob o aspecto
moral, foi tão nefasta, que os benefícios, que em contrapartida trouxe,
não compensam o descalabro em que fez mergulhar os costumes, desprezando
os tradicionais preceitos e adoptando outros tão livres, tão
desenfreados, que dificilmente se encontrará outra época do mundo
civilizado e cristão, em que moralmente se descesse tanto.
No campo político, a Europa do século XV dava o
espectáculo confrangedor duma Europa desmantelada, separada por lutas
religiosas e fratricidas, abrindo vasto campo à cobiça do turco – o
homem do leste que, ameaçador, batia às portas do Ocidente.
A Espanha, que só com os Reis Católicos – 1492 – conheceu
unidade territorial, estava longe de constituir, como a Nação
Portuguesa, um todo nacional.
A França entrou no século XV completamente retalhada e
ensanguentada pela guerra dos Cem Anos. Parte do seu território estava
na mão dos ingleses e a outra parte ermado pelas guerras desastrosas.
Carlos VII nada mais era do que o Rei de «Bourges», e teria perdido
ceptro e coroa, se, duma aldeia da Lorena, não surgisse a heroína que,
inspirada por Deus, salvou a França, dando-lhe admirável exemplo de fé
nos seus destinos.
A Inglaterra viu perdidos todos os territórios e
garantias que alcançara da França, internamente, as lutas com a Escócia
e a Guerra das Duas Rosas reduziram-na a um deplorável estado.
A Alemanha, constituída por um aglomerado de cidades
livres e cerca de 400 principados, ducados e estados pequenos que
continuamente se guerreavam vivendo na mais dissolvente anarquia, era
permanente campo de lutas, onde os Hohenzollern, os Wettels e os
Habsburgo, se disputavam a coroa imperial, mais um símbolo do que uma
realidade.
A Itália via-se a braços com as rivalidades que mantinham
entre si, não só as diferentes cidades livres e independentes em que
estava fragmentada, mas também as principais famílias duma mesma cidade,
que recorriam a estranhos para solucionarem questões internas,
franqueando-lhes
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a entrada e facilitando-lhes o domínio.
Os Estados Escandinavos esgotavam-se em lutas pela
hegemonia.
Dos povos Eslavos, só a Polónia atingira certa
importância e organização, sendo a potência preponderante da Europa
Oriental e a barreira que, no século XIV, susteve a invasão mongólica.
O Império Bizantino, após uma existência de quase mil
anos, estava reduzido à sua opulenta capital. Dum lado os eslavos, do
outro os húngaros; mais tarde, os tártaros, os árabes e, agora, os
turcos tinham ido minando, esfacelando e arruinando o Império do
Oriente.
O turco avançava sempre e a bandeira do Crescente teria
chegado à Europa cristã, se o rei da Hungria lhe não detivesse a marcha.
Tem ressaibos de tragédia este paralelismo histórico do
século XV e do século que atravessamos!...
O panorama religioso é marcado pelo período tristemente
célebre dos Papas de Avinhão e do grande Cisma, que contrasta com o
período de prestígio e hegemonia do Pontificado, durante a Idade Média.
Os princípios básicos da unidade religiosa e da hegemonia
da Santa Sé são atacados, dando origem à série de calamidades que caíram
sobre a Igreja.
Após as primeiras heresias de Wicleff e de João Huss,
bastou uma chispa lançada por Lutero para que se ateasse o fogo da
rebelião religiosa mais radical que a história regista e que trouxe a
mais dolorosa divisão da Cristandade.
Só nesta ponta ocidental da Península se afirmava já uma
nacionalidade, plena de vigor transbordante de vitalidade, una, forte,
ansiosa de expansão. Passada a crise de crescimento, há paz e grandeza.
► PORTUGAL NA EPOPEIA DOS DESCOBRIMENTOS
Enquanto por essa Europa os homens andavam «cegos e
sedentos» do sangue de seus irmãos,
«Não faltavam cristãos atrevimentos
nesta pequena casa lusitana».
Por ocultos mistérios de Deus afastada de Castela, esta
Nação, que um dia seria chamada «fidelíssima», entrava no século XV
guiada pela mão dum génio, nessa estrada imensa que liga os continentes,
nesse mar ainda tenebroso e que, mercê da fé e do arrojo dos nossos
mareantes, se transformaria num oceano luminoso.
O Príncipe Perfeito, o "Homem», encarnação acabada das
virtudes de seus tios-avós – os Altos Infantes – filósofo, estadista,
humanista, asceta, realizaria o plano arrojado de D. Henrique.
Desligado a pouco e pouco da monarquia leonesa, o pequeno
condado portucalense, vai-se alargando e transformando no reino de
Portugal.
Os filhos de D. João I fazem o seu baptismo de sangue, em
Ceuta, e D. Afonso V assenta no Magreb os primeiros pilares do nosso
império de além-mar.
E, traçados definitivamente os limites geográficos,
organizada a vida administrativa da Nação, despertada a sua consciência
nacional, afirmada e consolidada a sua independência em Aljubarrota,
Portugal entra no século XV, uno, forte e livre,
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marcando uma posição de grande preponderância, numa Europa inquieta e
atormentada por numerosas guerras de predomínio e cisões religiosas.
Ainda com marcados ressaibos de espírito medieval, cujo
expoente máximo está consubstanciado na figura de D. Afonso V, Portugal
é, nesta época, a expressão de uma geração de homens – guerreiros e
santos, sábios e filósofos – que culmina na figura gigantesca do Infante
de Sagres.
Encarnação de todas as virtudes da Raça, tradutor dos
seus sonhos mal despertos para mares nunca doutro lenho arados, acendeu,
em Sagres, o facho que iluminaria as paragens longínquas e desconhecidas
da História, ocultas ainda à radiação da Fé.
O Portugal de Avis, o Portugal dos Descobrimentos, que à
sombra da cruz realizaria o sentido apostólico da sua vocação, irá
continuar a obra inacabada da conquista e do povoamento, obra de Cruzada
que se iniciou em Ceuta e que só terminará no sacrifício de
Alcácer-Quibir.
A conquista de Ceuta, em 1415, é o primeiro verso duma
epopeia inspirada por um ideal inultrapassável, qual era o de, em
«serviço de Deus», destruir o Islão, ameaçador da Cristandade, salvar a
civilização ocidental da cobiça dos povos do oriente.
Mas, mais do que isso, a conquista de Ceuta é o marco
miliário duma idade nova, duma idade oceânica, em que Portugal
representa o primeiro papel. A tomada de Ceuta marca, melhor do que a
tomada de Constantinopla, uma nova época: ela foi a precursora imediata
da idade dos descobrimentos marítimos, determinante duma viragem na
História.
De Ceuta se partiu para a Grande Rota, que substituiu a
concêntrica civilização mediterrânea pela excêntrica civilização
atlântica.
Refugiado na estranha corte do Sacro Promontório, cercado
de desvairadas nações de gentes, D. Henrique prepara cientificamente os
seus marinheiros para vencerem o mar tenebroso, povoado de lendas e
mistérios, esse mar considerado como um limite inviolável da terra.
Ajudado por uma inteligência pujante, este génio
silencioso debruça-se sobre o mar, interroga-o, a querer desvendar-lhe
os mistérios, e giza um plano que irá executar tenaz e porfiadamente.
Há um mar tenebroso povoado de lendas e mistérios?
Há um príncipe cristão para as bandas do Oriente?
Há uma índia, povoada de infiéis para lá desses mares?
É necessário desafiar e vencer o mar das trevas.
É preciso ir em busca do Preste João.
Há que chegar à índia e sufocar mortalmente o inimigo da
Cristandade.
As naus do Navegador, tripuladas pelos seus mareantes,
irão sistemática e perseverantemente, sulcar o Oceano, numa luta de
igual para igual: dum lado o mar tormentoso, do outro o esforço duma
Raça.
O mundo ignorado vai surgindo aos olhos da Europa.
A passagem do Bojador modifica a fisionomia do mundo:
rasga os limites que a antiguidade julgava invioláveis.
O mar-oceano, cujas ondas eram negras como breu,
abria-se, límpido, às naus destes marinheiros de Cristo.
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Não há mais ondas negras, onde o Sol se afogava sem
voltar a aparecer...
Não mais ilhas misteriosas, onde os pescadores sofriam
eternas penas...
Não mais estranhas estátuas! Adamastores disformes,
ordenando terrivelmente que não fossem mais além...
Gil Eanes quebrara o encanto.
O negro mar das trevas era agora o verde mar da
esperança!...
E sempre... se apetrecham as embarcações que seguem rumo
à África em demanda do Oriente... Sempre... no mesmo ritmo, sem
desânimo, por uma obra de Cruzada, depois de cimentada na da conquista e
exploração, os portugueses de quatrocentos tornam-se os pioneiros da fé
católica e obreiros do Império.
É neste momento histórico que, em Lisboa, nasce a
Princesa D. Joana, filha do Rei de Portugal, D. Afonso V, e de sua
mulher, a Rainha D. Isabel.
Com 20 anos, veio para o mosteiro de Jesus, em Aveiro,
sepultar a sua radiosa beleza, trocando o fausto e pompas da corte de
seu Pai pela vida de penitência e austeridade.
Aqui se veio encerrar e aqui se finou santamente. Com a
sua morte, se despiu de galas a própria natureza: em Maio, as flores
murcharam e as folhas caíram...
Os seus contemporâneos lhe chamaram santa Princesa, e sob
esse nome é ainda hoje invocada pelos marinheiros que o põem na proa dos
seus moliceiros e arrastões, e por todos os aveirenses que crêem que a
sua alma continua a protegê-los.
Singular figura a desta Princesa jurada dum reino, cuja
vida silenciosa e humilde é uma eloquente epopeia na projecção que teve
sobre o mundo e a sociedade em que viveu, e que ainda hoje, passadas
centenas de anos, nos faz recolher em saudosa meditação.
Esta Infanta de vitral brilha esplendorosamente, como
iluminura mediévica emoldurada pelos luminosos poentes da sua "Lisboa a
pequena», como com enternecimento chamava à sua vila de Aveiro.
A 25 de Julho de 1415, sai do Tejo a grande armada que
irá conquistar Ceuta.
Nela vão incorporados alguns navios de Aveiro, que faziam
parte da frota "bem alpendrada e toldada» de setenta navios, todos
novos, saída do Porto, sob o comando do Infante D. Henrique.
Ceuta é agora portuguesa. A armada regressou a Portugal.
O Infante D. Pedro, (filho segundo do rei da Boa Memória) é feito duque
de Coimbra e também senhor de Aveiro. No seu espírito nasce a ideia de
tornar a vila uma das primeiras de Portugal.
Para tanto contribui a sua magnífica situação geográfica
e os muitos favores e privilégios que lhe foram concedidos sob a
protecção do seu novo donatário – o da "Virtuosa Benfeitoria» a quem os
Aveirenses chamariam «O Reedificador».
Nunca a vila tinha recebido por senhor quem tanto por ela
se interessasse, e nem por isso foram poucos os que possuíram o senhorio
de Aveiro, ou ali tiveram bens, pois muitas vezes foi doada à nobreza, a
ordens religiosas ou a igrejas, como nos primórdios da nossa
nacionalidade era uso fazer-se no sul da Europa.
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Passando pela mão de diversos donatários, foi pertença da
coroa no reinado de D. Dinis e de D. João I, até ser doada a seu filho o
duque de Coimbra, doação mais tarde confirmada por D. Duarte e depois
por seu sobrinho, o rei D. Afonso V, em 1448, que a tomou de juro e
herdade.
Não quiseram as intrigas políticas e palacianas que por
muito tempo ela estivesse na posse deste nobre senhor.
A sua trágica morte nos campos de Alfarrobeira, no ano de
1449, fá-la voltar à posse da coroa, até que, em carta datada de
Alcobaça, a 19 de Agosto de 1485, D. João II declara fazer «irrevogável
doação da nossa vila de Aveiro com seus terrenos e com todas as rendas e
direitos reais da dita vila e da dízima nova e velha do pescado dela, à
Infanta D. Joana, sobre todas mui prezada e amada irmã», que, no humilde
e pobre mosteiro dominicano, viera sepultar a sua radiosa e estranha
beleza, de cabelos loiros e olhos verdes.
Em Julho do ano de 1472, a Infanta D. Joana, acompanhada
do pai e do irmão, e com todos os da sua corte, cobertos de dó e muito
tristes – como se lê no velho códice quinhentista da Crónica da Infanta
– seguiam a caminho de Coimbra, onde, no sumptuoso e excelente convento
das Claristas, a Princesa ia dar entrada.
Todavia, antes de chegar à cidade de Coimbra, a Princesa,
que «só procurava religião onde vivesse com pobreza e humildade e onde
estivesse com Cristo pobre e pequenino», pediu ao pai que a deixasse ir
para Aveiro, para um mosteiro pobre, havia sete anos fundado. O poderoso
monarca, o primeiro que por graça de Deus foi rei de Portugal e dos
Algarves, daquém e dalém mar em África, «mandou que endereçassem suas
jornadas para a vila de Aveiro contra a vontade e parecer de todos.
► AVEIRO QUATROCENTISTA
No século XV, já aparece nos códices com o nome português
de Aveiro, a antiga Aviarium, a Alavarium ou Alaveiro dos séculos X e XI.
Grande empório comercial e marítimo, banhado pelas águas
da sua riquíssima laguna, que mais não era do que esse mar lusitano, que
desde sempre tanto seduzira os seus habitantes, estendia-se de norte a
sul numa vasta planície das mais belas e produtivas da região das
Beiras.
Um braço da laguna – o esteiro do Cojo cortava a povoação
de poente a nascente, limitando, pelo sul, o recente bairro de Vila Nova
e, pelo norte, o velho e nobre bairro da vila e os bairros comerciais do
Alboi e da Ribeira.
Inflectindo para o sul, corria o esteiro pelo vale do
Cojo, para ir passar junto às terras chamadas das Agras, não longe do
bairro dos Oleiros.
A laguna, aberta para o mar, no sítio da barra, a duas
parcas léguas da vila, ofertava entrada e saída aos barcos de maior
tonelagem de então, quer nacionais quer estrangeiros, fazendo de Aveiro
um dos mais importantes entrepostos comerciais do século XV.
É assim que, através dos seus profundos canais, a laguna
constituía um magnífico porto e permitia que as maiores naus e galeões
viessem acostar ao Cais do Alboi e da Ribeira, à sombra das muralhas da
«antiga e mui nobre e notável cidade de Aveiro».
Era a vila formada pelos seus cinco bairros, o mais
antigo dos quais, o mais nobre e por certo o principal foi rodeado de
muralhas por ordem do Infante D. Pedro, donatário de Aveiro, depois de
1415.
Querendo que ela fosse uma das mais importantes
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do reino, mandou reconstruí-la e iniciar a construção de altos muros,
para o que se utilizou o calcário acinzentado dos lugares próximos,
calcário brando, é certo, mas que o tempo endurecia.
É de presumir que tivesse orientado a construção das
muralhas o mestre de obras do Infante, Lourenço Eanes de Morais, que era
«morador na vila de Aveiro» em 26 de Outubro de 1432.
Quem, pois, no ano de 1472, acompanhasse a Aveiro a
Princesa de Portugal e com ela viesse do sul pelo caminho real,
avistaria a silhueta das muralhas, com suas barbacãs e torreões, que
circundavam o bairro nobre da povoação.
Fora de muros, passava-se ao lado do bairro dos Oleiros,
por uma larga rua que se terminava na entrada mais importante da vila.
Logo ali, sobre a porta chamada, por principal, «a porta
da vila», estavam gravadas na pedra uma inscrição em numeração romana e
as «quinas reais, sobre a cruz de Avis, com a orla dos castelos, tendo
cortados os superiores com o banco de pinchar; por cima, o braço duma
balança cujos pratos pendem dum e doutro lado do escudo e uma fita com a
palavra «désir».
Isto é a era de 1418, sobre o brasão de armas do Infante
D. Pedro.
De sólida construção, o cinto de muralhas, em hexágono
irregular, era formado de seis lanços, interrompidos, «como os de
Jerusalém» por nove diversas entradas (bem que nelas se encontram (12
portas) além de 4 postigos, estes destinados apenas aos peões.
Ao meio do mais importante lanço – o que ficava voltado
para o sul – abria-se a porta da vila.
Nesta entrada se contavam duas portas, ambas em forma de
arco ogival.
Passada a primeira, ficava-se num átrio rectangular,
limitado pela espessura das muralhas e fechado ao fundo pela segunda
porta, que era necessário ultrapassar também, para se ficar dentro da
vila, a que muitos chamavam a «Jerusalém Lusitana».
Na porta principal tinha começo a Rua Direita. Seguia
para norte, cortando a vila e dirigindo-se directamente ao outro extremo
do bairro, onde, depois de tomar o nome de rua da Costeira, se terminava
na porta da Ribeira.
Não precisavam os habitantes do bairro dos Oleiros, como
se verifica pela fotografia das muralhas, de as rodear muito para entrar
no seu recinto fechado: a porta do Sol, voltada quase para nascente,
donde o seu nome, dava-lhes acesso para a rua de Santa Maria, no local
onde tinha sido levantado o convento de S. Domingos.
Foi este convento fundado pelo Infante D. Pedro, que para
isso obteve licença do Papa Martinho V, em 19 de Fevereiro de 1423, e a
ele anda ligada a lendária aparição da Virgem ao velho Afonso Domingues,
trazida até nós pelo notável cronista da ordem dominicana – Frei Luís de
Sousa – e mais tarde romantizada pelo poeta do Trovador, João de Lemos.
No lado interior da muralha, sobre a porta do Sol,
encontra-se um nicho com uma imagem da Virgem e a invocação «Ave-Gratia-Plena».
Da porta do Sol para nascente, abraçavam as muralhas o
convento de S. Domingos e a sua
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grande cerca até junto do campanário da igreja, onde ficava a porta do
campo e em cuja parede exterior estava inscrita na pedra a epígrafe:
«Ano do Senhor de 1418. Estas muralhas, o Infante D.
Pedro, filho de ínclito rei D. João I, mandou construir».
Daqui, corriam os muros até ao extremo da cerca do
mosteiro de Jesus, desciam em curvas e contracurvas a rampa da
Corredoura, como que a querer lançar-se lá em baixo, no esteiro, para se
abrirem junto do cais numa outra entrada, que uns afirmam ser apenas um
postigo, outros garantem ser uma porta. Trata-se da porta do Cojo.
Já para trás, a muralha apresentava mais duas entradas
destinadas a peões: o postigo do campo – também chamado do norte, por
ficar voltado para este ponto cardeal, e o postigo da Corredoura, do
Cojo ou do nascente; o primeiro, à Travessa das Laranjeiras – extremo da
cerca do Mosteiro de Jesus; e o segundo, a nascente da Travessa do
Hospital.
Também na porta do Cojo não faltava uma inscrição, junto
ao arco ogival do lado exterior, que rezava assim:
«Ano do Senhor de 1422. O Infante D. Pedro, filho de D.
João I, mandou fazer estes muros como os da cidade de Jerusalém».
Marginando o cais, seguia a muralha em linha recta para
se abrir na porta da Ribeira com dois arcos, depois do que se continuava
sempre paralela ao esteiro, acompanhando o bairro da Ribeira até ao
largo de S. Brás, onde terminava por um torreão, antes do qual ficava a
porta do cais.
Depois deste, fazendo um ângulo recto, subiam os muros
ameados pela ribeira das Arribas, deixando de fora o bairro dos
comerciantes ingleses. No vértice deste ângulo, situava-se a porta do
Alboi, voltada para poente e dando passagem para o bairro que lhe deu o
mesmo nome.
Ao cimo da porta das Arribas, as muralhas seguiam quase
em linha recta, abrindo-se na porta de Rabães.
Mais ao sul, depois de dois torreões, entrava-se na vila
pelo postigo do mar, e o lanço terminava na porta de Vagos, aberta na
direcção da vila do mesmo nome.
Daí, correndo para nascente, vai fechar-se o hexágono na
porta da vila, não sem ter sido interrompido pelo postigo do Sol.
Desta muralha pouco ou nada resta. Até há pouco, dois
troços de pedras enegrecidas; agora... encontrar-se-á qualquer vestígio
relevante?
► VIDA SOCIAL, ECONÓMICA E RELIGIOSA
O bairro nobre, que as muralhas circundavam, era ocupado,
em grande parte, pelos conventos dominicanos de Jesus e de Nossa Senhora
da Misericórdia – este, com sua grande cerca.
Atravessado de sul para norte, pelas Ruas Direita, do
Loureiro, e do Campo, não contando as de somenos importância, era
cortado de nascente a poente por algumas ruas e travessas, das quais
diremos a Rua de Santa Maria, a Travessa do Terreiro e a Rua de Santa
Catarina. Esta fazia comunicar a Rua do Campo com o adro de S. Miguel,
onde vinha rematar a Rua Direita e a do Loureiro.
A par dos magnificentes conventos e vetustas capelas,
tinha as suas casas todas construídas de pedra, brancas e vistosas a das
pessoas vulgares, e as dos nobres com frontispícios, sacadas e
primorosos jardins.
Tudo isto tornava a vila com suas largas ruas e espaçosas
praças – largas e espaçosas para aquela época – uma das mais belas do
Reino, a que não faltava o encanto que lhe emprestavam a sua maravilhosa
laguna e as suas riquíssimas marinhas de sal a que feéricos poentes de
fogo arrancam cintilações deslumbrantes.
Esquecendo, por momentos, os seus conventos dominicanos,
avultava com seu espaçoso adro a Igreja Matriz de S. Miguel, cuja alta
torre de três sinos e uma garrida projectava, desde o século XI ou até
mesmo desde séculos mais recuados, a sua acolhedora sombra, sobre as
águas azuladas da ria.
Na sua riqueza, surge com a austeridade dos monumentos
medievais.
Fundada cerca do ano de 1086, pelo conde D. Sesnando,
segundo versão de alguns investigadores, assistiu a todas as glórias e a
todas as vicissitudes dos aveirenses.
Voltada ao poente, não obstante a pesada arquitectura,
conservava toda a majestade, com suas «frestas esguias e
semicirculares».
Era um edifício grande, sem naves, de pedra e cal, e
tinha no frontispício um painel de S. Miguel com moldura doirada.
Fora, encostadas às paredes e gozando sombra protectora,
erguiam-se onze capelas; sobressaía uma, de arquitectura gótica, a de
Santa Catarina; destacava-se outra em forma de zimbório a capela de S.
Brás – instituída em 1457 por
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Fernão Vaz de Agomide, contador-mor de D. Duarte e de D. Afonso V.
Muito próximo, no mesmo adro de S. Miguel, a Albergaria
de S. Brás, para alojamento de peregrinos. Dali se avistava, olhando em
frente, a Casa Municipal, situada na Rua da Costeira.
No centro da vila – o largo do Terreiro – vivia a
comunidade judaica que se estendia pelas imediações até à rua da
Judiaria.
Para além da ponte, que se lançava através do esteiro em
quatro soberbos arcos, estendia-se o arrabalde ou Vila Nova.
Era um pequeno bairro de toscas casas, espalhadas desde o
braço do Cojo às vinhas de Sá, construídas de pobres paredes de adobes
de lama e tendo por cobertura humildes tectos colmados.
Habitado por marinheiros, pilotos e pescadores – os
descendentes desses outros aveirenses que já três séculos antes saíam
para o mar a lançar as suas redes – o bairro da Vila Nova tinha começado
a formar-se no primeiro quartel do século XV e possuía já bem
apetrechados estaleiros, onde se construíam não só poderosas naus e
caravelas que iriam ajudar a conquista e expansão, como também barcos e
galés, para o intercâmbio comercial.
Sobranceiro ao canal, ficava um chafariz, donde faziam os
mareantes suas aguadas para abastecer as embarcações, e cuja água corria
até ali, pelo vale do Cojo, trazida em magnífico aqueduto de cantaria.
Muito antiga, e quase no limite do bairro, ficava a sua
única ermida. Outrora fora paróquia, mas naquela época era sede de
importante confraria dos seus pescadores e mareantes.
Elevada sobre minúsculo outeiro, donde se enxergava o
mar, próximo à costa, «é grande e formosa, com um alpendre e seu coro
para se cantarem as Missas; tem três capelas – a maior e duas colaterais
– com retábulos doirados e tudo com grandeza e perfeição» assim no-la
representa Frei Agostinho de Santa Maria.
Santa Maria de Sá... Tal é o nome da pequenina e modesta
ermida, que depois foi chamada de Nossa Senhora da Alegria.
Por anexo, um hospital fundado por Fernão da Veiga para
os pescadores pobres daquela irmandade, organização social e religiosa,
por certo muito antiga, como o atestam os seus confrades nos meados do
século XV, em escritura feita perante Afonso Vicente, tabelião em Vila
Nova.
Os bairros da Ribeira e do Alboi, situados na riba sul do
esteiro e marginando-o, eram habitados, o primeiro, por comerciantes e
mercadores aveirenses; o segundo, por estrangeiros. Predominavam, entre
estes, os ingleses e também holandeses e flamengos.
«Alboi» é, segundo parece, corrupção de AIbion, pátria
dos ingleses que lá habitavam, e que à principal rua do bairro deram o
seu nome – Rua dos Ingleses.
Situado extra-muros, com seu cais acostável, tinha fama
como grande entreposto comercial e centro distribuidor do comércio
externo, representado por firmas de várias nacionalidades. Não é contudo
fácil precisar a data em que se estabeleceram aí as primeiras casas
estrangeiras.
Já no reinado de D. Afonso III, as quinhentas marinhas de
Aveiro, produziram sal bastante para poder ser exportado para
Inglaterra, França e Flandres; a formação do bairro do Alboi deve
remontar, pois, a essa época, tendo atingido, porém, grande incremento
no século XIV quando à
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indústria salineira se juntou a das pescarias, sem dúvida muito mais
importante, o que determinou a afluência de muita gente estrangeira.
Ao entreposto do Alboi aproavam muitos barcos, tanto
nacionais como estrangeiros: saíam uns com grandes carregamentos de sal,
peixe, cereais, vinhos e frutas, destinados aos portos do Reino e aos de
Inglaterra, Flandres, Bretanha e Normandia; entravam outros trazendo, em
troca, os panos de lã, a cambraia, o linho, o barbante e outros produtos
de que se fazia mister.
O homem procura «as localidades cujo torrão fecundo lhes
faculta o granjeio das subsistências, em sítios favoráveis à laboração
industrial e mercantil» – como ensina Amorim Girão. É, pois, de julgar
que o desenvolvimento da indústria salineira e das pescarias, intensa no
século XIV e atingindo o seu apogeu no século XV, tenha chamado a Aveiro
parte da população do interior, que veio juntar-se à que ali já residia.
Era esta constituída especialmente por pescadores
e mareantes, marnotos e medidores, construtores navais e mesteirais,
comerciantes e artífices das construções urbanas e rurais... por nobres
e religiosos.
É sem dúvida a classe marítima a mais representativa da
vila, constituindo uma força social que, com a sua escola de mareantes,
arrojados marinheiros, sábios pilotos, mestres e contra--mestres,
pescadores e arrais, formava uma elite de experimentados navegadores,
que muito contribuíram para a nossa epopeia dos descobrimentos.
Nesta época, a sua importância devia ser tanto maior
quanto é certo que, desde o Infante D. Henrique, mais se tinha
valorizado a função dos pilotos, senhores da ciência náutica e de quase
todos os segredos do mar.
Foi deste alfobre, desta improvisada escola de marinharia
que nasceu João Afonso de Aveiro, conhecido em todo o Reino como piloto
de grande saber e homem afeito ao mar.
Da importância dos mareantes e pescadores pode
avaliar-se, pela sua rica organização religiosa e social, a Confraria de
Santa Maria de Sá, representativa da classe, cujos interesses e regalias
advogava perante o rei e tribunais.
Da sua antiguidade e extensão pode ajuizar-se pela
sentença dada, em 25 de Agosto de 1500, pelo vigário geral do Bispado de
Coimbra,
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em que se diz ter a Irmandade cerca de duzentos anos e agrupar trezentos
a quatrocentos irmãos. Todavia, só no ano de 1441 se constituiu
legalmente, por escritura.
A D. Afonso V devem os mesmos pescadores a confirmação de
todas as suas graças, privilégios, mercês e liberdades, dada em carta
datada de 20 de Julho de 1449 e da qual lhes foi entregue «o treslado
dela em pública forma».
Ainda no século XV e no reinado do Príncipe Perfeito, por
provisão deste rei, em 24 de Abril de 1488, foi concedido que «sem
embargo de taixa, que sobre os ditos pescados aos ditos pescadores têm
disposto que eles o vendam e possam livremente vender a dúzias».
Ligada às actividades desta classe, vivia a burguesia
aveirense, criada na vila como consequência da função do seu porto e do
desenvolvimento do tráfego lagunar e marítimo, na fase que antecedeu os
Descobrimentos.
Possuindo uma mentalidade «sui generis» em razão do seu
contacto diário com outros povos – principalmente de países nórdicos –
contrastava com os restantes habitantes da povoação. Esta classe,
dominando um horizonte que transcendia os estreitos limites da vida
local, era por isso mais aventureira, mais aberta às influências vindas
do exterior e às inovações do progresso.
Com o seu apogeu durante esse século, esta burguesia
composta de mercadores, comerciantes, banqueiros e armadores navais,
procurou vencer as restantes classes, fazendo sentir o seu poderio a
essa população apegada à terra, senhora depositária das velhas
tradições, mantenedora dos antigos usos e costumes.
Todo o esforço destas classes era ajudado pela população
rural, que pela sua actividade agrícola fornecia as subsistências
necessárias ao grande agrupamento urbano, arroteando e semeando a terra
dos grandes senhores – os nobres.
Destes, uns residiam na vila, por nascimento; outros,
tinham vindo em virtude das muitas visitas que a Aveiro fazia o Infante
D. Pedro, ou ainda pela chegada da Princesa D. Joana, e de seu sobrinho
D. Jorge. A sua estadia ali chamava outros, pelo que em Aveiro se foi
formando uma pequena corte.
O número de nobres era já tão avultado que, a pedido dos
Aveirenses, o senhor da Virtuosa Benfeitora lhes concedera o privilégio
de nenhum fidalgo grande, ou pessoa poderosa poder ali estar mais de
quatro dias sem o seu beneplácito.
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Influenciando beneficamente a organização da propriedade
rústica, a nobreza teria exercido, porventura, acção perniciosa na
classe marítima, o que se conclui do facto de D. João II sentir
necessidade de proibir aos fidalgos a sua entrada na feira anual, que se
realizava em Março, feira franca durante nove dias, e de se hospedarem
em casa dos mareantes, pois que durante as suas viagens tinham que
deixar sós as suas mulheres e filhas.
Recolhidos no silêncio dos seus monastérios, solidões
meditativas, refúgio contra um mundo a dessorar-se pelos primeiros
sopros de uma Renascença pagã, em luta feroz contra o espírito da Idade
Média, criador de santos e heróis, mantinham acesa a fé em suas almas,
os monges e as monjas dos dois conventos de Aveiro, em constantes
orações e penitências.
Envergando os seus hábitos de estamenha, pretos e
brancos, sob os quais usavam os cilícios que mortificam a carne, viviam
a mais austera disciplina, pregando a verdadeira Doutrina, com o seu
exemplo de cidade, pobreza e obediência, em transportes de exaltação
mística, num proselitismo ardente.
Em contacto directo com a população da vila, vivendo
junto dos seus templos, vivia o clero secular, vestido de suas batinas
negras e grosseiras e calçado de toscos sapatos à maneira antiga.
Junto a esta população, mas sem com ela se poder
confundir, viviam os de raça judaica em seu bairro próprio, dentro do
bairro nobre. Poderosos, gozando de bastante protecção, explorando todos
os ramos de negócios – à excepção do de metais preciosos que lhes era
vedado – resistiam tenazmente à absorção.
Para fugirem ao baptismo, sujeitavam-se a todo o género
de humilhações por parte da população, para quem representavam um sério
caso de consciência religiosa.
Desventravam-se as terras da vila, e davam-se fartamente
em peixe as águas da laguna e do mar.
Abastecida a população com o necessário, ainda podia
exportar para outras povoações do Reino e do estrangeiro o que estava
para além das suas exigências.
Abundavam os cereais, pois só os campos do Vouga
produziam anualmente 30.000 moios de pão.
Abundava o vinho, os legumes, a hortaliça; a produção de
frutas ultrapassava de tal modo a quantidade de que carecia a população,
que todos os anos se carregavam navios para Inglaterra.
Eram tantas as aves domésticas, que os ovos mandados para
o Porto e Lisboa rendiam 8.000 cruzados em cada ano, depois de
abastecida a vila de Coimbra.
Não escasseava a caça do monte nem a da ria, antes
parecia inextinguível.
As suas marinhas produziam 16.000 moios de sal.
Nas suas férteis pastagens criavam-se formosíssimos
cavalos.
Todos estes produtos contribuíam para valorizar a vila e
o seu porto e tornar Aveiro um dos centros comerciais mais prósperos do
século XV.
Utilizava-se a sua laguna como meio de comunicação, dada
a dificuldade de penetração para o interior, pela falta de estradas e
caminhos, a vila expandiu forçadamente o seu comércio para o mar.
Nos bairros do Alboi e da Ribeira, barcos de todos os
feitios e tamanhos, arvorando bandeiras das mais diferentes
nacionalidades, procediam à descarga dos mais variados tecidos, (como os
panos de lã, o bristol, o lila (de Lile), a cambraia, o linho cru) –
espécie de brim próprio para velas; mais descarregavam fio branco,
esparto, sementes hortícolas, aduela, ferro, papel, vidro e pólvora.
Em troca, levavam madeiras, cereais, legumes, vinhos,
frutas, sal, peixe e mariscos.
São passados quinhentos anos... Aproxima-se o ano
2.000...
Numa Europa e num mundo do século XX, atormentados por
profundas lutas de interesses e dissidências políticas, económicas e
filosóficas, e sob ameaças de cataclismos aniquiladores – a velha
Lusitânia tenta encontrar o seu rumo certo, a sua grande rota.
Como no século XV, os destinos desta «mui notável e nobre
cidade» parecem querer conduzi-la a um avantajado lugar entre as cidades
notáveis. Para isso, não lhe falta o dinamismo do seu povo.
Hoje, Aveiro também merece que os seus habitantes a
designem pelo nome, tão gracioso, que lhe deu a Princesa Padroeira:
«Minha Lisboa, a Pequena...».
Dr.ª Albertina Valentim Oliveiros
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