FESTAS DA CIDADE E DE
SANTA JOANA
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De 6 a 27 de Maio realizaram-se em Aveiro as Festas da Cidade,
de cujo programa constaram os actos religiosos em honra da
Padroeira Santa Joana Princesa. Entre as diversas alíneas,
incluíram-se provas desportivas de diversas modalidades,
concertos musicais e corais, várias exposições e festivais, e
ainda um espectáculo de folclore com a participação de todos os
grupos do Concelho.
A festa de Santa Joana efectuou-se no próprio dia litúrgico, 12
de Maio, aniversário da sua morte, que é também feriado
municipal; celebrou-se a Eucaristia e promoveu-se a procissão.
O Boletim Municipal de Aveiro honra-se em publicar, na
íntegra, as palavras que o Bispo da Diocese, D. Manuel de
Almeida Trindade, proferiu na ocasião oportuna, durante a Missa,
na igreja de Jesus. Elas significam um sereno apelo no sentido
de que a civilização contemporânea, para não despersonalizar o
homem e se tornar monstruosa, se deixe acompanhar e imbuir dos
valores do espírito.
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► UM PEDIDO SATISFEITO
Em Setembro de 1471 D. Afonso V regressou vitorioso da
campanha do norte de África. Acompanhava-o o príncipe D. João. Lisboa
aprestou-se para os receber. A princesa D. Joana que, durante a ausência
do pai e do irmão, tinha tomado «vestido preto e touca chã», ataviou-se,
o melhor que lhe foi possível, para receber os vencedores.
D. Afonso V desceu em terra e abraçou enternecidamente a
filha. D. Joana julgou ser o momento azado para expor ao pai o desejo
que trazia no coração. É uma cena patética, de certo ressaibo clássico,
essa que nos é narrada, com simplicidade encantadora, no Memorial de
Margarida Pinheiro.
Como Sua Alteza muito bem sabia – disse a princesa – era
costume dos imperadores e reis antigos, quando regressavam de uma
vitória, oferecerem aos seus deuses a jóia melhor que possuíam, isto é,
as próprias filhas. El-rei não devia ser menos generoso para com o
«verdadeiro e mui poderoso Senhor», do que os monarcas da antiguidade o
costumavam ser para com os seus ídolos. Por isso, pedia ao pai que a
considerasse como «coisa dada e oferecida já a Deus» e lhe permitisse
recolher-se a um mosteiro do Reino, onde pudesse «servir Aquele que,
para nos salvar, todo se deu e se ofereceu na cruz».
D. Afonso V, embora com o coração a sangrar, não pôde
dizer que não à filha; «...lançando seus braços em ela com lágrimas que
bem demonstravam a dor de dentro do coração – são palavras do Memorial –
disse-lhe benignamente que lhe prazia e outorgava o que tão
sabedoramente soubera pedir». O rei comportava-se como um pai cristão.
É sabido que não foi a mesma a reacção do irmão e da
assembleia do povo e dos nobres que ouviu o discurso de D. Joana.
Parecia-lhes que razões de estado legitimavam que se pusesse obstáculo
ao pedido ali formulado. E essa oposição jamais deixaram de a fazer ao
longo da vida da Santa Princesa, mesmo quando ela já se encontrava
dentro das paredes deste mosteiro.
Mas, se as alegadas razões de estado impediram que a
filha do «Africano» fizesse profissão religiosa segundo as regras
canónicas em vigor, não conseguiram, porém, demovê-la da sua consagração
a Deus. D. Joana era da têmpera do irmão. Já se falou da sua «teimosia».
Mas quando a teimosia é lúcida e humilde, então ela tem outro nome:
chama-se a virtude cardeal da fortaleza.
Como se explica uma vocação deste tipo? / 14 /
► AO SERVIÇO DE DEUS E DOS HOMENS
Talvez a pergunta e a resposta venham a propósito neste
dia. Está a celebrar-se, à escala mundial, a Semana das Vocações, que
terá o seu ponto culminante, por vontade expressa do Santo Padre, no dia
de amanhã. O problema interessa a todos nós. Permiti que o aborde numa
rápida e sumária reflexão.
Haverá sempre quem, desconhecedor dos pro-fundos segredos
das consciências e, mais ainda, da acção misteriosa de Deus, – é Ele que
toma a iniciativa! – atribua a consagração a Deus a motivos menos
elevados e menos nobres. Não faltou quem assim pensasse a propósito até
de Santa Joana Princesa, aliás com clara adulteração da realidade
histórica.
É evidente que não tem vocação para a vida religiosa ou
para o estado eclesiástico quem pretendesse abraçá-lo só porque a vida
do século lhe é intolerável, porque não é capaz de se adaptar à
convivência social, ou então porque perdeu a esperança de realizar no
mundo o ideal que sonhou e continua a sonhar.
Digo: «e continua a sonhar», porque, enquanto a alma
estiver presa a um amor puramente humano (mesmo que seja apenas numa
saudade) não está em condições de se poder dar a Deus. A Ele só se podem
unir - e encontrar nesse íntimo desposório a felicidade – aqueles que
são livres ou conquistaram a liberdade dos filhos de Deus.
A um belo rapaz que, de lágrimas nos olhos, pedia o seu
ingresso num seminário porque a tuberculose lhe tinha roubado a noiva, o
superior respondeu, não sem esconder a simpatia que o moço nele
despertara, que fosse primeiro enxugar as lágrimas e que voltasse
depois. De facto, não voltou. Uma figura de Eurico, encadeado ao
sacerdócio e romanticamente enamorado de qualquer Hermengarda, é uma
caricatura do sacerdócio católico. Mais ainda, da consagração religiosa.
Haverá palavras que sejam capazes de exprimir o conteúdo
psicológico, religioso, sobrenatural, deste movimento da alma que se
chama a «vocação»? Receio bem que neste, como em tantos outros campos,
nos vejamos reduzidos simplesmente a balbuciar.
Para se entender o sentido de uma vida de consagração a
Deus seria necessário ter uma noção suficientemente exacta de quem é
Deus. Ora, para a maior parte dos homens Deus dificilmente ultrapassa a
esfera de uma pura abstracção. É um ser longínquo. Não é Alguém.
► CONHECER A DEUS PELO NOME
Conhecer a Deus pelo nome, como sendo Alguém – à maneira
de Abraão, de Moisés, de Jesus Cristo – isto é, de uma maneira vital,
íntima, reveladora da realidade que Ele é, constitui privilégio de
poucos. Para esses poucos Deus «tornou-se o ser vivo por excelência,
vivo de uma vida tão intensa, carregado com o peso de uma tal realidade,
que qualquer outra se desvanece nos momentos em que a alma se encontra
sozinha e toma consciência de si mesma» (J. Leclercq).
Daí que, para aqueles que encontraram Deus, a ausência e
o desconhecimento d'Ele sejam considerados a «suprema miséria». Se eles
sofrem com o frio, com a fome, com a injustiça social, com o
subdesenvolvimento de que os outros são vítimas, o sofrimento é muito
maior quando vêem os homens a caminhar ao longo da vida sem luz e sem
esperança. Pior ainda – escreve um convertido, o Padre Loew, que, por
amor dos seus irmãos, se tomou estivador no porto de Marselha – quando
«a ausência de Deus não é uma simples atitude de facto, mas se pretende
apoiar esta indiferença numa doutrina». É a corrupção da inteligência,
bem mais trágica do que a corrupção dos sentidos.
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«Penso – são palavras do mesmo autor – nas bases de
extracção de petróleo, não ousando acrescentar «no Saará», porque os
aviões de todos os tipos, os camiões gigantes, a electricidade, as
piscinas, os climatizadores, fazem desta região uma realidade que não se
parece nada com o deserto que a palavra «Saará» evoca.
Bela e admirável a técnica da extracção do petróleo! As
colunas metálicas de 45 metros de altura fazendo descer as sondas
perfuradoras a três ou quatro quilómetros do subsolo, as colunas de fogo
no alto das chaminés iluminando a noite, as auto-estradas onde se pode
viajar a mais de 100 à hora... tudo ali é tão belo e tão bom como a
magnificência de uma indústria onde o menor utensílio vale 80 ou 100
milhões, em que o avião substitui o táxi para levar o operário ao
trabalho ou para evacuar um ferido mesmo pouco grave.
Mas, ao mesmo tempo, que deserto espiritual!
Bem pagos, bem alimentados, habilmente distraídos, estes
engenheiros e operários, que vivem longe dos seus, não conhecem durante
nove semanas consecutivas nem domingo nem Natal nem festa alguma. Aí o
nome de Deus faz lembrar as cartas recambiadas ao remetente, em que o
carteiro escreveu: «Desconhecido, não habita no endereço indicado».
Poderá haver penúria maior? Acorrem-nos as palavras de Jesus: «De que
serve ao homem ganhar o mundo inteiro, se vier a perder a própria vida?»
Esta penúria parece atingir o seu paroxismo quando o
desconhecimento de Deus recai sobre o pequeno e o pobre. Não só porque o
pobre está desprovido de outros bens, mas porque, podendo a pobreza
conduzi-lo mais facilmente a Deus como ensina o Evangelho, exemplos ou
teorias maléficas o afastam d'Ele.
É este espectáculo, comum a todos os séculos – embora com
cambiantes e proporções muito diversas – que explica, na maioria dos
casos, a vocação religiosa.
Guardo dos meus tempos de Coimbra a carta de uma jovem
universitária que trocou as fitas largas de finalista por um apagado e
humilde convento num recanto Ignorado de Portugal. Diz assim: «A grande
aspiração que teve o poder de me separar do mundo foi precisamente o
desejo de o salvar. Eu tinha visto, durante a minha estadia em França,
os desoladores estragos que o mal realiza na maioria das almas e os tão
limitados frutos que os bons recolhem da sua acção. Foi uma visão
angustiosa, destas a que só se pode responder com a própria vida. E como
me pareceu que só no Carmelo a minha imolação seria total e útil,
portanto, à humanidade, por isso vim!».
É evidente que uma atitude destas só se entende à luz da
fé.
É a fé que explica a vida da Princesa Joana, enquanto
viveu neste mosteiro. O Memorial aponta explicitamente os motivos que a
decidiram: «servir Aquele que, para nos salvar, todo se deu e ofereceu
na cruz».
► UMA FERIDA NO PEITO
Também no século XV, como no nosso, entre o povo humilde
e sobretudo a gente da corte haveria homens e mulheres que caminhavam
«distraídos» na vida. A sedução das bagatelas faz vítimas em todos os
tempos. Este espectáculo doloroso, então como hoje, não deixa de abrir
uma ferida no peito de quem recebeu de Deus a graça de O conhecer mais
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de perto. E este espectáculo que suscita os apóstolos e os
contemplativos.
«Aquele que foi ferido no seu amor a Deus, por vê-I'O
injuriado, relegado para o armazém das coisas acessórias, esquecido,
esse está preparado para ouvir o apelo do Senhor; aquele que pressente,
no amor pelos seus irmãos, a angústia sem nome que subirá um dia do mais
fundo destes homens e destas mulheres vazios de Deus, também esse está
preparado para corresponder à chamada. O amor que este homem (ou esta
mulher) tem a Deus – a Deus que não hesitou entregar o seu próprio Filho
a esta humanidade ingrata – o amor que este homem (ou esta mulher) sente
pelos seus irmãos que ele vê mutilarem-se no que têm de mais belo e
correrem angustiados para as farmácias à procura de tranquilizantes,
este duplo amor diante de tantos atoleiros e de tanta lama, far-lhe-á
ouvir o apelo do Senhor. Contemplativo, ele irá consagrar-se mais
exclusivamente a viver diante de Deus em nome de todos os homens e por
eles, compensando a sua folia. Apóstolo, ele irá misturar-se à multidão,
para lhe anunciar, sem cessar, pelo testemunho da vida e da palavra, a
única coisa que é essencial na vida».
Esta atitude nada tem de fariseísmo. O apóstolo e o
contemplativo sabem por experiência que «tudo é graça». Isso os mantém
humildes e fiéis ao mesmo tempo.
► AS ZONAS VERDES DA HUMANIDADE
Vidas inúteis? Mas terá sido inútil a vida de Santa Joana
Princesa?
Quem o poderá dizer, com verdade, de existências que
foram consagradas ao serviço dos homens, amparando e educando crianças,
assistindo jovens que sobem para a vida, cuidando de doentes, de
leprosos ou de velhinhos, enxugando lágrimas, apontando caminhos de fé,
de honra e de dignidade?
Mas, mesmo que se tratasse de contemplativos que passam a
vida rezando, trabalhando e sacrificando-se escondidamente pelos outros,
quem poderia afirmar que são vidas inúteis?
Também àquele que vê a vida e as coisas com critérios de
pragmatismo a curta distância parecerão inúteis as zonas verdes das
grandes metrópoles ou mesmo das pequenas cidades. Porquê – dirá lá
dentro de si – tanto espaço perdido? Não valeria mais construir ali uma
casa de muitos andares e de rendimento assegurado?
Mas haverá alguém, conhecedor da necessidade do oxigénio
para a vida, que se deixe sucumbir perante semelhante tentação?
Os conventos dos contemplativos são as zonas verdes por
onde a cidade respira. Mal iria ao mundo se deixasse de os haver.
Ficaria infinitamente mais pobre do que se desaparecessem do seio da
terra os filões de oiro ou as minas de diamantes.
Enquanto a civilização industrial ergue fábricas
gigantescas em que o homem corre o risco de se despersonalizar, reduzido
a um dente de uma roda ou a um botão que se comprime, é necessário que
este surto de progresso seja acompanhado de um sopro de contemplação,
que se afirme como sinal do Espírito no meio da civilização material.
Esta, sem o contrapeso do Espírito e de todos os valores que ele
representa – e, entre estes, sem dúvida, a procura da justiça social e o
cultivo de tudo quanto concorre para uma autêntica libertação do homem –
corre o risco de se tornar uma civilização monstruosa.
Que Santa Joana Princesa, Padroeira da Diocese e da
Cidade de Aveiro, interceda para que esta terra, que lhe foi tão
querida, hoje em ritmo crescente de progresso, não esqueça que, para ser
feliz, não basta um acréscimo de riqueza. Só a fé cristã lhe poderá dar
aquilo que é o mais importante.
Este mosteiro e o exemplo de quem nele viveu são, no
coração da Cidade, um apelo constante para que o mais importante não
seja esquecido.
D. Manuel de Almeida Trindade
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