Acesso à hierarquia superior.

Boletim n.º 4 - Ano II - 1984


AVEIRO - 1984

1025 anos de história

225 anos de cidade

 
 

Neste ano de 1984 decorreu o 550º aniversário da instituição em Aveiro de uma feira franca – a popular «Feira de Março». O facto foi devidamente lembrado no número anterior do Boletim Municipal.

Agora, recordam-se mais dois aniversários, por se contarem em quartos de século após o milénio e o bicentenário; dizem respeito à primeira referência histórica da existência de Aveiro, que é do ano de 959, e à sua elevação a cidade por El-Rei D. José I, em 1759.

 

 

►   ANTECEDENTES HISTÓRICOS

Foi no ano de 711 que os Mouros, tendo vindo do norte de África, derrotaram as forças cristãs visigóticas de D. Rodrigo, na batalha de Guadalete; em seguida, penetraram rapidamente na Península Ibérica, a tal ponto que, mal decorridos uns escassos quatro anos, a tinham em seu poder, com excepção das Astúrias. Aqui, alguns capitães cristãos encontraram asilo, defendidos naturalmente pelas montanhas da região; comandava o núcleo de resistência o cavaleiro Pelágio, Pelaio ou Paio que, em 718, conseguia humilhar o exército invasor em Cangas de anis. Aclamado rei pelos Cristãos, Pelágio iniciava assim imediatamente esse movimento que a história denominaria por «Reconquista Cristã» – luta que durou cinco séculos no actual território português.

Após algumas décadas, no tempo de D. Afonso I (739-757), a Reconquista atingiu as terras da Galiza e do Douro, culminando com a tomada das cidades de Astorga e de Leão – passando esta a ser a cidade real e a cabeça do reino asturiano. Talvez mesmo se possa concluir que aquele rei, no segundo ano de governo, terá conquistado Chaves, Braga, Porto e Viseu. Todavia, o grande esforço para a libertação do Ocidente Peninsular apenas se iniciou a sério durante o reinado de D. Afonso III (866-910), o qual se traduziu na conquista das terras situadas entre os rios Minho e Mondego. Em 878, os Cristãos apoderaram-se de Coimbra, sob o comando de Hermenegildo Guterres; dez anos antes, graças à acção de um cavaleiro de nome Vímara Peres, já tivera lugar a presúria de Portucale, junto à foz do rio Douro, cujo território, delimitado pelos «distritos» de Braga, Lamego, Viseu e Coimbra, se estenderia a norte para além do rio Ave e a sul até ao curso do / 10 / Vouga. O presor, porém, estava ligado à colina de Vima, o berço de Vimaranes (Guimarães), e o topónimo «Portucale» ia denominando toda a zona sobre a qual se fazia sentir a autoridade dos respectivos bispos e condes – vassalos do rei de Leão.

Mais importante é o caso da Condessa Mumadona Dias, esposa do conde Hermenegildo ou Mendo Gonçalves, que, tendo enviuvado, fundara um mosteiro em Guimarães e mandara aí construir o castelo de S. Mamede; no século X, foi a dama mais poderosa do Noroeste Peninsular. Oriunda da Galiza e aparentada com D. Ramiro II, de Leão, tornou-se dona de numerosas propriedades desde o rio Vouga até à cidade de Pontevedra e dominou por inteiro a sociedade que remotamente tornaria possível Portugal. Figura nobre e culta, possuía uma valiosa biblioteca, constituída por vinte códices – a mais antiga de Portugal! – que, lega da ao Mosteiro de Guimarães, foi o núcleo da livraria da Colegiada de Nossa Senhora da Oliveira. Teria já falecido em 981 – ano em que o filho herdeiro, o Conde Gonçalo Mendes, fez uma escritura pela qual doou ao Mosteiro de Lorvão as vilas de Paus e de Lamas, junto ao Vouga.

 

►  PRIMEIRO REGISTO HISTÓRICO

Como certificado da existência milenária de Aveiro é tida a escritura de doação que a mencionada Condessa Mumadona Dias, já viúva, outorgou juntamente com os seis filhos – Gundisalvus, Didacus, Ranimirus, Nunus, Arriane e Oneca – em favor do Mosteiro de Guimarães; o documento tem a data, segundo a Era de César, de 26 de Janeiro de 997 da Era de Cristo, 959. Entre as propriedades legadas, aí se referem as «terras in Alauario et salinas que ibidem comparauimis»; se a Condessa havia comprado as salinas, é porque já antes havia proprietário e vendedor que aí explorava o sal. Por tal documento do século X é testificada a existência de uma Aveiro, nascida sob o signo do sal e desabrochando para uma nova história. (1)

Na ocasião, o pequeno aglomerado ainda se situava junto ao mar, alcandorado na sua pequena colina; daí já então se podia desfrutar um vasto panorama de grande beleza, embora de configuração totalmente diversa da actual: céu e mar, água e terra, combinando-se, prolongando-se, confundindo-se, em comunhão íntima, como as vidas dos seus ainda poucos habitantes que simultaneamente já seriam infatigáveis marnotos e experientes pescadores, teimosos lavradores e hábeis caçadores – verdadeiros artífices de um futuro que nascia do trabalho constante, obscuro, fecundo e benfazejo.

 

►  ELEVAÇÃO A CIDADE

Detenhamo-nos agora num facto importante para Aveiro, a encher uma nova página ilustrada na história da liberdade da nossa terra.

Decorria o ano de 1758. Em 13 de Dezembro, ao tornar-se público o respectivo processo, comunicava-se oficialmente ao País ter sido El-Rei D. José I vítima de um atentado na noite de 3 para 4 de Setembro; entre os implicados no crime, encontrava-se gravemente responsabilizado D. José de Mascarenhas, duque de Aveiro e marquês de Gouveia, além de mordomo-mor da Casa Real. Em face desta versão, urdida em segredo durante meses, a população aveirense verberou indignada o «horroroso e sacrílego insulto» e revoltou-se contra o donatário da vila.

Em 6 de Janeiro de 1759, na igreja matriz de S. Miguel, reuniram-se o Senado Municipal, a Nobreza, o Clero, o Elemento Militar e o Povo e, nas mãos do prior, Frei Paulo Pedro Ferreira, depuseram um protesto solene contra aquele atentado, declarando que não queriam que esta povoação continuasse sob a tutela de donatários, mas que desejavam que ficasse imediatamente sob o governo de D. José I, a quem prestaram juramento de fidelidade. Na sequência dos factos, D. José de / 12 / Mascarenhas seria condenado à morte, em 12 de Janeiro; a duríssima sentença executar-se-ia no dia seguinte, em Belém, no meio de horríveis sofrimentos e com requintes de ferocidade. O último representante da Casa de Aveiro, «envolvido na misteriosa conspiração dos Távoras, expirou com seus cúmplices no patíbulo, numa das execuções mais requintadamente cruéis e ferinas de que as justiças portuguesas são rés em face da humanidade» no dizer de Luís de Magalhães. (2)

O monarca mostrou-se sensível e agradecido perante a atitude de repulsa dos habitantes de Aveiro e procurou, desde logo, valorizar a vila, coadjuvado pelo Marquês de Pombal. Assim, em 11 de Abril do mesmo ano, D. José I assinava o alvará pelo qual a vila de Aveiro, notável por mercê filipina, era elevada à dignificante categoria de cidade: – «Hei por bem e me apraz que a dita vila de Aveiro, do dia da publicação deste em diante, fique erecta em cidade» – lê-se no documento.

Em 1 de Junho, a Câmara Municipal, por sua vez, resolveu agradecer oficialmente a el-rei a graça concedida, encarregando o aveirense João de Sousa Ribeiro da Silveira, cavaleiro da Ordem de Cristo e capitão-mor de Ílhavo, de beijar a mão de Sua Majestade, como sinal da mais viva gratidão, e de lhe pedir dispensa do pagamento dos direitos. Desempenhando-se dessa honrosa missão, o ilustre fidalgo trouxe a carta régia que, entretanto, o soberano tinha assinado em 25 de Julho, pela qual se fazia público de que Aveiro – elevada a cidade – definitivamente teria «todos os privilégios e liberdades de que devem gozar e gozam as outras cidades deste Reino, concorrendo com elas em todos os actos públicos e usando os cidadãos da mesma cidade de todas as distinções e preeminências de que usam os de todas as outras cidades». (3)

O capitão-mor, chegado a Aveiro, leu e entregou o documento nos Paços do Concelho, em 29 de Setembro, festa litúrgica de S. Miguel, estando presentes a Vereação, o Clero, a Nobreza e o Povo. Seguidamente, na igreja matriz, houve missa solene, sermão pelo orador Frei Bernardo de S. José Magalhães, da Ordem dos Pregadores; à tarde, cantou-se um te-deum, levantaram-se preces pelo rei e uma procissão percorreu as ruas da nova cidade, bem ornamentadas; as manifestações de alegria prolongaram-se pelos dois dias seguintes, com festejos populares, iluminações, encamisadas e touradas. Aveiro era a décima sétima cidade de Portugal, por ordem cronológica.

João Gonçalves Gaspar

____________________________________________

(1) – Tradução: – «As terras que possuímos no Alavárío (Aveíro) e as salinas que aí mesmo comprámos». Vd. Milenário de Aveiro –Colectânea de Documentos Históricos I, 1959, pg. 3. Arquívo da Universidade de Coimbra, doc. n.º 1 da Colecção da Colegiada de Guimarães (Apógrafo do século XII).

(2) Aveiro - A Cidade e a Paisagem, em «A Arte e a Natureza em Portugal».

(3) Milenário de Aveiro cit. II, pgs. 586-588: Vd. Também "Arquivo do Distrito de Aveiro", 1959, XXIII, pgs. 255-258: alvará e carta de elevação de Aveiro a cidade.


 

 

Página anterior

Índice Geral

Página seguinte

pp. 9-12