► 3. OS TERRENOS DO MONTE
Estes terrenos formam uma grande planície superior às
lavouras referidas, intercalada em vários sítios por vales, que vêm
desembocar ao campo. Esta planície continua pelas freguesias vizinhas,
principalmente as do sul e poente da Vila, sem esperanças de encontrar
terrenos superiores montanhosos e acidentados, de cujos benefícios se
aproveitem,(1) e por conseguinte a sua produção é mediana, e aquilo que
são o devem não a si mas ao trabalho do homem, à cultura, ao abrigo do
vento norte feito por pinhais e aos fenómenos atmosféricos.
A maior parte destes terrenos são ocupados por pinhais;
no entanto alguns são cultivados, que se não pode dizer inteiramente
maus, e que são susceptíveis de serem melhorados.
Devemos advertir que estes terrenos são, há muitos anos e
séculos, afrutados com as mesmas novidades de trigo, centeio, cevada,
aveia e milho, e adubados sempre com os mesmos estrumes, e mal
fermentados. Os adubos são feitos de mato,(2) que é lançado nos currais
de gado, donde depois se junta em meda, mas por tão pouco tempo que só
vai acabar de se corromper na terra, e por isso pouco benefício faz às
novidades, a que se aplica, mas sim a ervas ruins e novidades seguintes.
Os lavradores seguem aqui uma prática que prova o que
tenho dito.
Nos meses de Setembro, Outubro e Novembro, lançam maior
porção de estrume nas terras que semeiam de cereais para pastagem, para
na primavera seguinte lhes semearem milho sem estrume, no que tiram bom
resultado. A primeira sementeira, pela maior porção de estrume e se o
tempo lhe correr favorável, produz bem: a segunda – a do milho muito
melhor, porque acha o estrume em muito melhores condições.(3)
Nós queremos que se empregue antes pouco estrume, mas bom
– paucum sed bene praeparatum. Mas o mal não está nisso: é
necessário variar de estrumes ou melhorar os actuais.
As terras, assim como a espécie humana, também têm o seu
paladar, que se cansa com a repetição de alimentos; e por isso é de
absoluta necessidade ou variar de sementes ou de adubo Nas
/ 49 / vossas circunstâncias não é fácil mudar de sementes, e
portanto deve variar-se de estrumes ou melhorar os de que se têm usado
há tantos séculos; é mister restituir à terra os alimentos que a cultura
constante das mesmas novidades lhe tem roubado; é a Ciência, as
circunstâncias do vosso terreno e a necessidade que tendes de cultivar
sempre as mesmas novidades que o aconselham. Vamos apontar-vos um
exemplo, que vos deve convencer.(4)
Parece-nos que se deve ter por mais antiga a cultura do
trigo nestes sítios, e por isso é esta que mais deve precisar deste
benefício, e assim acontece. Sabeis que em regra os terrenos da
Oliveirinha, Costa e Mamodeiro não são superiores aos nossos, e contudo
a produção destes é inferior à daqueles!
A razão disto é bem clara: é porque os lavradores
daqueles lugares, não contentes com os estrumes destes, vão com grande
trabalho e despesa buscar o escaço, o moliço e o junco à ria de Aveiro;
e (o que é mais) vêm a esta Vila comprar o estrume mais fino(5) que
aqui se faz – a cinza e a estrumeira dos pobres.
Resta-nos descer aos vales, que são de duas espécies, a
saber, pantanosos e não pantanosos.
► 4. VALES PANTANOSOS
Estes vales são os dois da Canisieira até ao lugar da
Azenha de Baixo, e o do Arrujo até à ponte da Granja. Estes produzem
espontaneamente a canísia, a carrega, o bunho e outras plantas
palustrais, que são cortadas anualmente para estrume dos currais; não
têm grande merecimento como adubos, no entanto os lavradores os estimam
para lançar sobre os matos, especialmente o tojo, a amaciar a cama dos
gados. Estes vales são inundados e se conservam cobertos de água a maior
parte dos meses do inverno; e estariam hoje muito alteados e dessecados
e em termos de serem agricultados se não fossem abandonados como foram
pelos anos de 1830, quando da abertura das valas chamadas «reais», pois
até então eram abertos ou limpos anualmente.
A acção das autoridades faltou no dito ano ou já nos
anteriores sobre a abertura destas valas, e os particulares não só não
podiam fazer tudo, porque parte destes terrenos são baldios, mas
acompanharam as autoridades no desprezo e abandono completo nestes
sítios, limitando-se a visitá-los uma vez cada ano para colherem a dita
canísia e outras plantas referidas. E aí têm jazido em abandono duas
boas fontes de riqueza para esta Vila, por incúria dos Poderes Públicos,
que não os melhoram nem deixam melhorar. A abertura destas valas mereceu
tanta consideração dos nossos antigos, que tinham autoridades
privativas, chamadas «juízes das valas», sendo bem para estranhar que um
negócio tão importante e cada vez mais necessário(6) tenha sido tão
descurado no Governo liberal e no século das luzes. No ano de 1849 se
fez um pequeno ensaio da cultura do arroz no sítio do Picoto do dito
Vale do Arrujo. Nos anos seguintes progrediu esta cultura de tal maneira
que não haverá seis lavradores na Vila que não tenham o seu arrozal
maior ou menor, cuja falta seria hoje uma fatalidade para esta classe e
mesmo para os jornaleiros, de ambos os sexos que se empregam nestes
trabalhos, de que vivem. Antes desta cultura, os lavradores estavam em
circunstâncias tais que a cada passo eram obrigados a vender à mão e em
hasta pública as suas propriedades que se compravam a preços muito
baixos; sendo certo que depois que esta cultura tomou algum movimento,
cessaram estas vendas, não obstante as circunstâncias desta classe ir
cada vez a pior, em consequência das moléstias reinantes do vinho,
batatas, castanheiros, laranjeiras e outros arbustos, e modernamente a
do milho.(7) Até aqui eram o gado e o arroz as únicas fontes de
receita, donde os lavradores forravam algum dinheiro para pagarem as
contribuições prediais, cada vez mais crescidas, e fazerem face a tantas
perdas causadas por aquelas moléstias.
Mas parece que tudo se conspira contra esta classe digna
de melhor sorte. O preço do gado chegou a uma baixa como não há exemplo,
a ponto de se venderem crias de gado cavalar a 1:500 rs., 2:000 rs. e
as melhores a 4:000 rs., e dizem os jornais que se venderam a 500 rs. e
por menos! A cultura do arroz acaba de se proibir por Carta de Lei do
1.° de
/ 50 / Julho de 1867. As consequências disto são fáceis de se
prever. E eis aí voltam estes terrenos dos arrozais ao seu primitivo
estado pantanoso, com prejuízo da salubridade pública que esta lei
parece que quis melhorar! Prezamos a salubridade pública mais que tudo;
mas não podemos deixar de nos indignar com uma medida de tal ordem que
de um modo aparatoso nos quis lançar poeira nos olhos (pretextando
salubridade pública) para não vermos que ela foi feita ad-hoc, para
matar os arrozais, sem que se colha outro algum fruto. Não é aqui lugar
de tratar a questão da salubridade ou insalubridade dos arrozais; e nem
os nossos patrícios ligam importância alguma a esta questão, porque
todos têm presenciado que a salubridade pública nestes sítios tem
progredido com o progresso da dita cultura, que só tem incutido um
terror ou pânico a quem ignora completamente o modo como é feita.(8)
Limitamo-nos somente a ponderar que, quando não podemos chegar ao
óptimo, devemos contentar-nos com o melhor.
Ora ninguém pode negar que estes terrenos, antes da
cultura do arroz, eram maus e que, depois desta, estão em melhores
circunstâncias em relação à salubridade; ou que pelo menos não estão
piores do que antes. Cuidem por isso os Poderes Públicos de dessecar
principalmente os pântanos improdutivos, que ainda são muitos, e só
depois de o conseguirem (se podem) é que devem cuidar de tornar óptimos
os terrenos dos arrozais, que já estão melhores do que antes eram.
De mais é um facto reconhecido por todos hoje que os
terrenos dos arrozais deixados sem cultura ficarão em muito piores
circunstâncias e a consequência lógica deste princípio é que a cultura
dos arrozais só se proíba depois que estes terrenos forem dessecados de
modo que possam ser aplicados a outra cultura; e o contrário é um
absurdo insuportável.
Voltando ao nosso ponto de vista, cuidem seriamente os
particulares e autoridades municipais da abertura das valas reais, e não
esperem do Poder Central o dessecamento destes pântanos, em virtude da
dita lei.
/ 51 /
► 5. VALES NÃO PANTANOSOS
Destes vales os principais são os seguintes:
1.º Vale da Granja;
2.º Vale da Alfândega;
3.º Vale do
Suão;
4.º Vale dos Pinheiros;
5.º Vale de Azurva.(9)
Estes vales têm um fundo de pequena superfície, fria e
pouco produtora; porém, as suas encostas são excelentes para vinho, cuja
bondade anda na razão directa da dita enumeração. São cortados por uma
linha do sul (vale n.º 1) a norte (vale n.º 5), de cujos ventos são
muito abrigados por grande extensão de pinhais. A experiência nos tem
feito ver que a boa exposição de um terreno e o seu abrigo do norte
esterilizador são circunstâncias tanto ou mais apreciáveis que a bondade
deste terreno; e é isto que se vê em parte destas encostas.
A natureza destes terrenos é a do
sílico-argiloso-calcáreo, oferecendo variantes de vale para vale, e
mesmo em cada vale, segundo domina algum destes elementos. Por via de
regra, o melhor vinho é o destes terrenos onde domina a argila; contudo,
aparecem terrenos bem expostos e abrigados, onde falta a argila ou é
substituída pela sílica, e não obstante produzem vinhos deliciosos:
apontaremos, para exemplo, o nosso prédio do Picoto, parte da encosta do
norte da Granja e outros; e por isso dizemos que a exposição é tudo. É
para lamentar que ainda esteja uma tão grande extensão destes terrenos a
produzir mato e pinheiros, quando podíamos vê-la coberta e vestida de
lindos vinhedos. Os vinhos destes vales são inquestionavelmente os
melhores por serem mais maduros que os das latas; mas tanto uns como
outros podem ser classificados como vinhos meio maduros; subdividindo-se
em vinhos carrascões, com bastante corpo e cor, e vinhos palhetes,
transparentes, cor de cravo, muito agradáveis. De ordinário, aqueles
procedem das vinhas e cordões, e estes das latas, aparecendo muitas
excepções devidas ao processo de vinificação e à mistura de uma com
outras uvas, com muito bom resultado.
Não é nosso intento nem próprio deste lugar escrever um
tratado de vinicultura; limitamo-nos a notar, de passagem, os
melhoramentos que nos parecem aplicáveis a estes terrenos.(10)
Devemos dizer, em abono da verdade, que em geral nestes
sítios é feita com luxo a plantação das videiras; mas tem havido uma
grande falta na conveniente escolha nas qualidades destas; e todo o mais
tratamento das vinhas e vinho é pouco aperfeiçoado. A Ciência vai
fazendo progressos neste ramo tão importante da agricultura; os
vinicultores não têm tempo para fazerem estudos profundos; e por isso
vamos resumir aos nossos patrícios algumas poucas regras; com elas
muito pouco ficarão sabendo; no entanto, se as conservarem, terão dado o
primeiro passo na carreira da civilização vinícola; e não será sem fruto
que deveis atender:
1) - que o vinho fino não se cria nos terrenos próprios
para pão (cereais), mas sim nos terrenos que chamais «surrapeiros e
barros» – como é parte das encostas destes vales;(11)
2) - que não são as muitas castas de videiras que
produzem
o vinho fino, mas sim a combinação conveniente das doces com as
acres;(12)
3) - que o vinho não nasce feito, mas que a arte, o
processo de vinificação, corrige os defeitos das castas, do solo, do
clima e da exposição.
Estas regras, que são axiomas na Ciência, são também
verdades de primeira intuição para os vinicultores menos ilustrados.
A superioridade dos vinhos das encostas dos vales, de que
estamos tratando, facilmente convence da verdade da primeira regra. Pelo
que toca à segunda regra, aliás tão importante, tem ela sido muito
desprezada nestes sítios. Não podemos estabelecer / 52 / uma regra geral da proporção que deve haver
nestas castas doces e acres, porque a circunstância do solo mais ou
menos frio, húmido ou abrigado a deve fazer variar; e contudo parece-nos
que andará bem o vinicultor que plantar dois terços de bacelo de uva
doce e um terço de uva acre. Os nossos patrícios facilmente se
convencerão disto em presença de um facto que aqui se tem dado muitas
vezes e que se funda nos princípios da dita segunda regra. Muitos
vinicultores têm misturado a uva das vinhas mais doces com a das latas
mais acres. E que acontece? Quando esta combinação é feita em boas
proporções resulta dela um vinho espirituoso, transparente, cor de
cravo, de beber e chorar por mais. Pelo que toca à terceira regra, é aí
onde está a maior dificuldade, não diremos só para os práticos mas
também para a Ciência. Todos reconhecem que a bondade do vinho depende
muito do processo de vinificação; mas são estes processos tão vários em
Portugal, que podemos dizer que cada terra tem seu uso.
Devemos, porém, confessar que temos hoje vinicultores
muito ilustrados, que seguem processos com excelentes resultados; e que
a Ciência ensina muitas regras adoptáveis pelos vinicultores estudiosos,
mas falta-nos um manual de vinificação, resumido e acomodado a todas as
capacidades e bolsas.
Vamos concluir esta parte, notando um erro adoptado
nestes sítios, qual é o sistema de «latas». As «latas» não só dão um
vinho inferior, por serem sombrias, mas até são de difícil e dispendioso
amanho, e ocupam terra que podia ser aproveitada para outras culturas,
se fossem substituídas por cordões. Os cordões podem ter a mesma
dimensão que as «latas» e produzir quase o mesmo vinho; mas é mister
educar as videiras logo de seu princípio para este fim, de maneira a que
a «lata» comece um pouco acima da superfície da terra.
Os cordões ocupam muito pouca terra; a uva fica bem
exposta aos raios do sol mais próximo da terra, e por isso em melhores
condições de vingar, e finalmente de muito fácil amanho e vindima; e, se
forem muitos e paralelos, os cordões formam abrigo uns aos outros.
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NOTAS:
(1)
– É certo que os terrenos, cuja força produtiva não
cansa nunca, são os que ficam vizinhos de grandes montanhas superiores,
que lhes fornecem alimento anualmente de matérias vegetais, e
principalmente minerais; e é esta a razão por que os campos são tão
produtores em consequência do que recebem da serra.
(2) – Aqui chama-se «mato» não só ao tojo, mas até ao
conjunto de outros vegetais que se criam com ele.
(3) – Quantas vezes vemos, ao cavar ou lavrar as terras
que tiveram batatas, nabos e outras novidades, descobrirem-se felpos de
estrume que se não corrompeu, e por isso não se utilizou?
(4) – Desculpem-nos os homens da Ciência por nos
servirmos destes argumentos, que nos parecem os mais próprios para
convencer os agricultores.
(5)
– Toda a gente pobre não agricultora tem à porta do
seu quintal uma cova, que é o depósito geral da sua cozinha. urinas, excrementos e restos de vegetais que colhem. Este excelente adubo
é vendido aos de fora e raríssimas vezes aos lavradores desta Vila.
(6) – Estes pântanos não podem ser esgotados sem se desarear o Rio Vouga, o que é um impossível económico; e por isso o meio
de os dessecar é alteá-los com aterros, para o que concorrem muito as
areias que para eles correm dos montes pelas ditas valas, estando bem
abertas.
(7) – Estas moléstias têm passado quase despercebidas.
Temos chamado a atenção dos Poderes Públicos para elas; mas debalde,
Qualquer ano, os nossos milhos serão destruídos sem remédio; o que será
uma fatalidade, cujas consequências não é fácil avaliar.
(8) – Em nenhuma outra cultura se emprega tanto cuidado,
perfeição e despesa como na do arroz, que tudo compensa. A primeira
operação do cultivador para reduzir um pântano improdutivo a um arrozal
é dessecar aquele por meio de valas ou aterros, procedendo a um perfeito
nivelamento do terreno sem o que o arrozal não pode produzir bem; pois é
hoje sabido por todos os práticos desta cultura que um terreno em estado
pantanoso ou não produz ou produz mal. E que cuidados se não empregam em
procurar águas (a grandes distâncias muitas vezes) para que não fique um
só tabuleiro de arroz sem água ou com ela estagnada? E será isto piorar
os terrenos? Não, decerto.
(9) – Debaixo da denominação de cada um destes Vales,
compreendem-se as suas ramificações e dependências: por exemplo, no 1.º
compreende-se o Picoto: no 2.º o Cabeço Redondo e Vale do Salgueiro: no
3.º as Forcadelas: e no 5.º a Quinta Velha
(10) – Aos vinicultores que quiserem aprofundar a matéria
lembramos a leitura da Tecnologia Rural, do distinto lente do Instituto
Geral de Agricultura João Ignácio Ferreira Lapa, e a Memória sobre o
processo de vinificação composta pela comissão nomeada por Portaria de
10 de Agosto de 1866, publicada no ano de 1867.
(11) – Juvat Ismara Baccho conserere (Virgilio,
Geórg.). E note-se que Virgílio quis aqui elogiar só o monte Ismara como
bom para vinho: mas o elogio serve para qualquer monte – como se
dissesse que o vinho dá-se bem na terra de monte.
(12) – Os vinicultores deste Distrito seguem o rifão de
que «cada casta tem seu ano», e por isso optam pela variedade de castas
e dizem que se uma não frutifica num ano, frutifica em outro ano; se
umas falham num ano não falham outras, e assim julgam que, tendo muita
variedade de plantas, sempre terão vinho. Este sistema tem um grande
inconveniente qual é o das uvas não amadurecerem ao mesmo tempo, e ao
passo que as de uma casta estão maduras, estão as outras completamente
verdes. Devemos porém advertir que há outra coisa que concorre para o
mesmo efeito, que é o de podar a mesma vinha por vezes e não em acto
continuo. As videiras que primeiro foram podadas são as que rebentam e
frutificam primeiro. Por isso parece-nos que cada vinicultor deve
escolher duas ou três castas para a sua vinha, que deve podar tarde (no
fim de Fevereiro, segundo as circunstâncias do tempo) e em acto
contínuo.
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