MEMÓRIA SOBRE A VILA DE
EIXO
PRÓLOGO
Não foi o amor de glória, a que não podemos aspirar; nem
ostentação de ciência, que não temos; nem finalmente o interesse, que
não esperamos; o móvel que nos incitou a escrever estes apontamentos.
Uma única razão – nascemos em Eixo, temos-lhe amor de filho: de mais
coincidiu e nos incitou a este pequeno trabalho a demolição de alguns
monumentos de antiguidade, de que resolvemos fazer esta memória, para
que com o seu auxílio no porvir outra pena mais bem aparada faça obra
perfeita.
Conhecemos que a maior parte dos leitores contemporâneos,
se não censurarem, darão pouca importância a várias minuciosidades, que
escrevemos, esperando que sejam apreciadas pelos vindouros. Para animar
a nossa esperança basta uma simples consideração.
Que apreço não daríamos hoje a um escrito como este,
feito há seis ou mais séculos?
Nós decerto muito o havíamos de apreciar; e por isso
devemos esperar que este mal alinhavado escrito será apreciado pelos
vindouros a quem o oferecemos. Não esperem os leitores mais que um
registo de factos, sem ornato nem flores, porque o cronista
despretensioso só cuida em levantar do pó os fragmentos de ruínas,
limpá-los, e encastoá-los para que o tempo os não acabe de destruir.
Eixo...
► ETIMOLOGIA DE EIXO
Sobre a etimologia de Eixo nada se pode dizer com
certeza; seja-nos permitido recorrer a presunções e conjecturas mais ou
menos prováveis. Devemos advertir que no termo antigo desta Vila está o
lugar de Requeixo, nome que pelo menos soa com parentesco de
Eixo.
As antigas doações régias destas terras compreendem as
ditas povoações de Eixo e Requeixo; e o foral de 2 de Junho de 1516 de
El-Rei o Senhor D. Manuel é dado às terras de Eixo e Requeixo.
Devemos crer que a etimologia de Requeixo é a mesma de
Eixo, com a diferença de que Eixo é das duas a povoação mais antiga ou
que depois desta se seguiu aquela que quer dizer «re Eixo» ou «retro
Eixo», querendo dizer «segunda Eixo» ou «atrás, antes de Eixo»,
acrescentando as letras «qu» para evitar o hiato, e melhor pronúncia.
E com efeito, se atendermos a que há séculos foi a Cidade
de Coimbra a capital civil e eclesiástica estas terras, e certo que
caminhavam do sul para o norte, encontravam primeiro Requeixo e depois
Eixo, e em tempos em que não houvesse povoações de permeio (como hoje
há) é natural chamarem a Requeixo «a primeira Eixo» ou «povoação antes
de Eixo».
Mas qual será a etimologia de Eixo, que os antigos
escreviam «Eyxo»?
A significação natural da palavra eixo é a de «eixo de
carro», «pólo do céu», e em qualquer destes casos compreende a ideia de
um corpo com um centro e duas extremidades. Ora encontram-se vestígios
de que esta povoação na sua origem começasse em três pequenos bairros, a
saber, um ao sul chamado o Arrujo (que o cit. foral chama «a Póvoa do
Arrujo»), e outro ao norte chamado a Laguela e Senhora da Graça, e outro
ao centro no sítio aonde está a igreja actual; e assim chamariam os
primeiros povoadores «eixo» ao dito bairro do meio como querendo dizer
que ele era o centro dos dois extremos? Não ousamos afirmá-lo; antes nos
inclinaremos a que na primitiva se chamasse «Eixido», de que fala Frei
Joaquim de Santa Rosa de Viterbo no seu vocabulário sobre esta palavra «Eixido
– Exido – Enxido» ou «Ixudo» e «Ixudeo» com que os nossos maiores
significaram uma fazendinha «fechada, quintalinho, hortejo» ou «conchouso»
que está perto de vivenda para a qual há fácil entrada ou passagem; e
por ficarem estes pequenos prédios à saída das casas, se chamaram «eidos,
êxitos, éxidos» (e hoje «aidos») do verbo latino «exeo».
Diz mais o cit. Viterbo que estes nomes compreendiam todo
o recinto pertencente a qualquer vivenda, incluindo casas, hortas e
quintais.
E assim se daria a esta povoação o nome das vivendas dos
seus primeiros povoadores.
Finalmente vamos concluir com outra etimologia, que tem
algumas probabilidades a seu favor; qual a de que Eixo virá de «eixe»,
palavra que aqui empregam os lavradores quando querem fazer andar o gado
vacum. É certo que nesta terra se dá, há muito, a criação de gado vacum;
e é de crer que desde esse tempo muito antigo se tenha dado esta
indústria, a que convida a fertilidade, mimo e grande porção de terreno
do campo que abunda em pastos; é por
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conseguinte uma terra de gado especialmente vacum.(1)
Quereriam os primeiros povoadores chamar a esta terra
«terra do gado ou terra de eixe», isto é, onde se diz «eixe» ao gado?
Diz-se aqui gracejando que o primeiro povoador lavrava
com um boi e uma besta e que, quando queria que aquele andasse, lhe
dizia «ei» (ou «eixe» que ainda hoje se usa) e, quando
queria que esta parasse lhe dizia «xo»(2)
(expressão que hoje se emprega para fazer parar a besta) e que as duas
sílabas «ei+xo» se formou Eixo.
Haverá nesta graça alguma coisa que tenha relação com a
conjectura anterior?
Pode bem ser.
► DESCRIÇÃO TOPOGRÁFICA DA TERRA
A Vila é cercada por dois vales, a saber, um chamado o
Ribeirinho e Cavadas ao norte e o do Arrujo ao sul – ambos cortados pela
estrada nova de Aveiro a Águeda nos sítios da ponte da Laguela e no
Arrujo pelo lanço da estrada entre Eixo e Horta. É cercada de campo
entre o nascente, e o norte, e por monte e pinhais entre o poente e o
sul. O local da Vila é quase plano, suavemente inclinado do poente a
nascente, à excepção de pequenas depressões que a cortam do lado do
monte para o campo que fica na margem esquerda do Vouga.
Tem uma rua principal que mede de comprimento dois
quilómetros desde a primeira casa no sítio da Areosa, do lado de Aveiro,
ao Arrujo. Por esta rua passa a dita estrada de Aveiro; e por isso é
toda calçada de macadame. Antes desta obra pode dizer-se que esta rua
nos meses de inverno era um charco intransitável e insalubre.
Cabe aqui uma grave censura às Câmaras da terra por não
fazerem melhoramentos na rua principal da sua sede; e muito mais se
atendermos a que os sítios mais intransitáveis eram os mais
frequentados, como era o local da praça, ao sul e poente do
adro, (3) e a
parte da rua da Picota até à Senhora da Graça, e outras, que no
inverno eram uns lameiros.
(4) Esta rua, que
ainda há poucos anos tinha Cômoras de silvas, está hoje embelezada com
casas, salvas pequenas excepções; sendo certo que a obra da estrada tem
estimulado os moradores a mandar rebocar e caiar as frentes das casas e
muros que correm com ela, e dentro em poucos anos a Vila parecerá um
bairro de cidade. Esta rua, não obstante ser uma continuada, contudo tem
os seguintes nomes em vários sítios começando da Areosa para o Arrujo, a
saber: Laguela, Casal, Picota, Adro de Cima, S. Sebastião. Todas as mais
ruas vêm desembocar nesta, a saber: a do Arrujo, que se bifurca e vai
acabar uma parte no Matouto, e outra no Rego; a rua do Adro de Baixo,
que corre a par do Adro pelo nascente desde a Picota até à Balsa; a da
Balsa, que segue até à cadeia; a do Forno, que começa na Picota e vai
para Oliveirinha; a do Outeiro, que termina no sítio chamado o Lodeiro e
Poço do Grifo;
(5) a Senhora da
Graça, que vai ter à Laguela, mas tem muito poucas casas;
(6) a do
Barreira, que começa na Laguela e segue até à serra de Eixo. Além destas
ruas há vários becos, como o do Barrimau, Canto e outros.
A rua principal antigamente não seguia da Picota para S.
Sebastião, mas sim para a Balsa.
(7)
A profundidade das ruas e caminhos feita pelo atrito de
pé e carro é um vestígio da sua antiguidade; vamos por isso mencionar as
que denotam mais antiguidade por este motivo. Devemos porém advertir
que, quando se fez a estrada nova já referida, se fizeram em alguns
sítios grandes aterros para a altear, que passamos a notar: no sítio da
Laguela se fez um grande aterro aos lados do pontão, tanto para a banda
de Aveiro como para a da Vila, onde a rua era e ainda hoje é muito
profunda em relação às
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terras confinantes de ambos os lados; e a regular-nos por este único
argumento diríamos que ali foi o princípio da povoação.
O pontão actual que ali se fez está construído sobre o
antigo, que não era mais que um pequeno arco de tijolo, de metro e meio
de altura quando muito, e que era no sítio onde hoje é o local do norte
do actual e na base deste; donde se pode ajuizar a altura do aterro que
ali se fez.
Na outra entrada da Vila ao nascente, (rua de S.
Sebastião), fez-se outro não menor aterro desde a capela de S. Sebastião
para o lado do campo, alterando-se e mudando-se por fora da rua o leito
da estrada, que (seguindo antes desde a última casa em linha quase recta
para o campo) agora descreve uma curva de pequeno raio para o sul, o que
a torna muito defeituosa.
A rua anterior de S. Sebastião comunicava com a do Arrujo
por uma ponte ou antes muro de pedra vermelha, por cima da qual se
passava nos meses de inverno e ao mesmo tempo servia de
tapagem a uma propriedade que aí temos.
(8)
Ao lado direito da rua do Arrujo, onde terminava o dito
muro, era o Coval – Curral do Concelho, feito de muro em forma circular
com porta para a dita rua.
Logo abaixo do actual pontão para o lado do campo, sob a
estrada anterior, havia um pequeno pontão de arco de tijolo, que dava
passagem aos barcos para o Ribeiro, e às águas deste para o campo,
passando ali a vala real que tem princípio na ponte da Granja e passa
pelo Picoto, Arrotas, Camarnais e segue pela ponte da Balsa, Poço do
Grifo, Vala da Mata, Taboeira, etc.
A dita ponte velha do Arrujo ligava com a dita rua do
Arrujo por um muro de pedra vermelha, por cima de que se passava desde a
mesma ponte até ao lado esquerdo da mesma rua.
A rua do Arrujo, tanto na parte que vai para o Rego, como
para o Matouto pela viela do Lourenço e das Gatas, mostra em alguns
sítios bastante profundidade e o mesmo se vê na rua do Forno.
A rua do Adro de Baixo também mostra bastante
antiguidade, principalmente no lado do norte da igreja, se compararmos o
seu fundo com o quintal próximo que foi do Reitor Diogo de Morais
Cabral. Devemos lembrar que a rua principal não seguia como hoje pelo
Adro de Cima para o Arrujo, mas sim da Picota para a Balsa; e tanto que
para este lado colocaram a frente da igreja; e isto tanto mais é de crer
quanto ali (quase em frente da igreja e parte do muro do Adro ao
nascente) estão os celeiros do Alto Senhorio da terra, a Sereníssima
Casa de Bragança; bem como foi o seu antigo paço, casa
do Almoxarife e capela de Nossa Senhora da Piedade.(9)
De tudo podemos conjecturar que a Vila começaria os seus
princípios em três bairros separados, a saber: Laguela, Arrujo, e o do
centro, onde se acha hoje a igreja.
E, se não podemos dar inteiro crédito aos ditos vestígios
da profundidade das ruas, porque a mão do homem e a mesma natureza os
pode alterar e desfazer, é certo que os ditos três sítios são os de que
restam mais tradições e mesmo documentos que de algum modo mostram a sua
antiguidade, a saber:
A respeito do Arrujo temos a tradição de que falámos ao
tratar da «Etimologia de Eixo» e que remonta a eras remotas; a respeito
da Laguela e Senhora da Graça temos documento que terminantemente diz
ser a igreja velha neste último sítio (Vd. o que dizemos adiante desta
igreja) e sendo a Laguela próximo desta igreja é provável ser tão antiga
como ela; e finalmente a respeito do bairro central consta da História
que El-rei D. Fernando I celebrou esponsais com D. Leonor Teles nesta
Vila; o seu palacete era neste sítio.
A Vila situada à beira-campo tem vistas muito pitorescas,
principalmente dos sítios mais elevados como o Matouto
(10) e Forno,
donde se avista todo o campo desde o lugar de Pinheiro até Angeja, na
distância de uma légua.
Cada propriedade de campo é fechada por Cômoros de
salgueiros e outros arbustos, que na primavera formam uma paisagem muito
aprazível. Esta parte do campo, ou campo de Eixo, é cercada por uma
cordilheira de pinhais dos lugares de Pinheiro, Salgueiral, Azenhas, S.
João de Loure, lugar de Loure, Frossos e Angeja, que todos se avistam de
Eixo ao norte e nascente, bem assim parte dos lugares da Horta e
Taboeira, além de muitas terras e serras que ficam a maiores distâncias.
Para os lados do sul e poente e intermédios, todos
superiores à Vila, não vê esta senão pinhais e pequenas distâncias que
fecham em semi-círculo; e por isso podemos dizer que a Vila é uma grande
varanda com vistas pitorescas para o nascente e norte, limitadas por
grandes serras, ainda que à distância de algumas léguas.
Parece que devíamos agora tratar da antiguidade da Vila;
mas reservamos esta matéria para o fim desta 1.ª parte, como conclusão
de algumas matérias que vamos tratar.
________________________________________________
NOTAS:
(1)
– Ainda há poucos séculos em certos meses era mandada a cavalaria ao
verde para estes sítios, aquartelando-se nos Lugares de Taboeira, Quintã
e talvez nesta Vila, onde se diz que se casaram dois dos oficiais nobres
(que comandavam os ditos corpos de cavalaria), de que descendem as
famílias Britos Tabordas e Gomes de Lemos, a que pertence o nosso Ex.mo
D. Sebastião Gomes de Lemos, Bispo resignatário de Angola.
(2)
– Neste sentido se toma a palavra «xó» no Lexicon Ethimologico das
palavras portuguesas, que têm origem arábica, composto por Frei João de
Sousa, derivando-se da palavra pérsica «xou» com que se manda parar a
besta. Ainda se usam as duas palavras «xó» e «xou» – aquela para fazer
parar e esta para fazer andar o gado e mesmo aves, de que vem o verbo
«enxotar» ou dizer «xou».
(3)
– Esta praça só tem lugar aos domingos e dias santificados e vende-se
aqui trigo, frutas e hortaliças e aves, e pouco mais. Foi aumentada pelo
Juiz de Fora, Sr. Joaquim Roiz de Bastos.
(4) –
Nos papéis do Dr. Manuel Gonçalves de Figueiredo Gausper (que serviu de
Presidente da Câmara pelos anos de 1817 a 1830) se encontrou um projecto
de calçadas das ruas principais da Vila, orçado em 6:780:400 rs. Por
este projecto ficava a rua principal com passeios aos lados em largura
de cinco palmos, guarnecida dos marcos de pedra.
(5)
– Poço hoje muito profundo que acaba no gramoal de Taboeira, mas que há
menos de oitenta anos era caminho de fazendas confinantes e entre outras
das de um homem chamado «o Grifo" por alcunha, que lhe deu o nome.
(6) –
Tem catorze casas.
(7)
– Há quem diga que antigamente esta rua continuava para o Arrujo pelo
Barrimau, não havendo ainda a de S. Sebastião senão no sítio da capela
até à viela do Barrimau, onde desembocava aquela. Se isto é verdade, é
pelo menos anterior a 1707, porque esta data tem a casa que foi de
Manuel José Soares, já na rua de S. Sebastião; sendo certo que o espaço
da rua desde a Picota até ao meio desta tem pequena profundidade.
(8)
– Este muro tem de altura três metros e de comprimento quinze desde a
dita curva até à entrada da rua do Arrujo; foi demolido pelas obras da
dita estrada que começaram em 18-3-1862.
(9)
– Tanto existiu este paço ou palacete que o prédio da Sereníssima Casa
de Bragança junto aos celeiros ainda hoje se chama «a Vessada do Paço».
(10)
– O sítio do Matouto, na sua parte mais elevada e próximo à Cubelhã, é
sem dúvida o sítio da Vila em que se avista um panorama lindíssimo,
porque não só domina a Vila toda, mas também o campo até à linha férrea
sobre o Vouga, em Cacia.
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