A SEDUÇÃO DA RIA
«Ninguém aqui vem que não
fique, seduzido, e noutro país esta região seria um lugar de vilegiatura
privilegiado. É um sitio para contemplativos e poetas: qualquer fio de
água lhes chega e os encanta. É um sítio para sonhadores e para, os que
gostam de se aventurar sobre quatro tábuas, descobrindo motivos
imprevistos. É-o para os que se apaixonam pelo mar profundo, e para os
medrosos que só se arriscam num palmo de água – porque a ria é lago e
mar ao mesmo tempo. Com meios muito simples, um saleiro e uma barraca
tem-se uma casa para todo o Verão. Pesca-se. Toma-se banho. E esquece-se
a vida prática e mesquinha. Dorme-se ao largo, deitando-se a fateixa ou
abica-se ao areal: um fogaréu, uma vara, a caldeirada... Começam a luzir
no céu e na ria ao mesmo tempo miríades de estrelas. Vida livre dalguns
dias, de que fica um resíduo de beleza que nunca mais se extingue. É a
ria, também sítio para os que querem descobrir novas terras à proa do
seu barco e para os que amam a luz acima de todas as coisas. Eu por mim
adoro-a. É-me mais necessária que o pão. E é este talvez o ponto da
nossa terra onde ela atinge a beleza suprema. Na ria o ar tem nervos. A
luz hesita e cisma e esta atmosfera comunica distinção aos homens e às
mulheres, e até às coisas, mais finas na claridade carinhosa, delicada e
sensível que as rodeia. A luz aqui estremece antes de pousar...»
RAUL BRANDÃO
(Em Os Pescadores)
|