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Boletim n.º 2 - Ano I - 1983 - pp. 25-33

A Decoração do Moliceiro

 

DANIEL TÉRCIO RAMOS GUIMARÃES

 

O presente estudo foi realizado durante o ano lectivo de 1982-83, culminando investigações anteriores sobre aspectos da construção naval na área da chamada ria de Aveiro. Apesar de ser a consequência dessa investigação, ele surge agora, a meus olhos, como o estabelecimento de bases de trabalho e, por isso mesmo, como um novo ponto de partida. Assim, os aspectos nele tratados não o são ainda de modo exaustivo; uma leitura atenta e esclarecida certamente encontrará lacunas neste texto. Porém, o que importa realçar é exactamente o facto de se pretender lançar aqui as bases de recolha e análise dos elementos imagísticos do barco moliceiro, tarefa que, se as condições forem propícias, pretendo desenvolver. Resta dizer que se trata de um texto aberto ao diálogo, à discussão e à polémica, sobretudo no que eles tenham de esclarecedor relativamente ao projecto de investigação das formas decorativas das embarcações navais populares desta região.

 

1. – O barco moliceiro é uma embarcação destinada à apanha do moliço na ria de Aveiro. De um modo geral, tem 15 m. de comprimento, mede entre as cavernas de água 7,50 m. e tem de boca 2,50 m. Conta 21 cavernas. Os costados são muito baixos, para facilitar a recolha do moliço. O castelo de proa, inteiramente coberto e fechado com porta e chave, serve de câmara de tripulantes e de paiol de mantimentos. O castelo da ré, onde se acondicionam o barril de água, as forcadas e as tamancas é coberto por uma tampa móvel, que serve de assento ao arrais. O mastro regula pelos 8 m. de altura e sustenta uma vela trapezoidal com uma superfície média de 24 m2. De fundo chato e pequeno calado, possui a «pá de borda» ou «toste» que substitui a quilha e que é colocada na borda do barco.

Os meios de propulsão são: a vela, a vara e a sirga. O primeiro já foi referido; o segundo consta de varas de 4 a 6 metros que os utentes firmam no fundo e empurram, a peito, em percursos sucessivos, da proa à ré. Quanto à sirga, trata-se de um cabo mais ou menos longo que permite puxar a embarcação a partir da margem; utiliza-se na passagem de canais mais estreitos ou junto às margens, sempre que o barco navega contra a corrente ou contra o vento.

A característica que tem despertado maior curiosidade é a sua decoração. Num artigo sobre a decoração das embarcações populares portuguesas, L. Chaves diz:

«O moliceiro é o barco mais ricamente decorado e mais decorativo» (...) «Na arte popular, a decoração dos moliceiros tem lugar especial: arte de imaginar, pintar e colorir, que dá aos moliceiros aspectos de iluminura na proa, principalmente, e na ré por complemento de efeito»(1).

É este o tema do presente trabalho: a decoração do barco moliceiro, sua análise e suas relações com outras características locais. A bibliografia que existe sobre o assunto é reduzida e, na generalidade, estranha a uma investigação antropológica. Em alguns desses artigos, junto de dados etnográficos, abundam os equívocos (para não dizer os desvios) ecológicos, que fazem do moliceiro e da sua decoração um reflexo mecânico das condições naturais (2); aí quase se dá a imagem de um autóctone «puro», aberto por inteiro às impressões do meio, como se se tratasse de uma espécie de vasilha livre à entrada das imagens da ria. A ordem cultural é então, nessa perspectiva, um reflexo ou um prolongamento da ordem natural: o moliceiro, enquanto artefacto, é tão-só o reflexo das condições do meio.

Nesta lógica, Hélder Pacheco, num artigo inserido no Boletim da ADERAV, afirma referindo-se às embarcações da ria:

«Nesta zona, as actividades produtivas tradicionais são: a agricultura, extracção do sal (em declínio), pesca, apanha do moliço (em rápido desaparecimento). Os cursos de água são fontes de sobrevivência e vias de comunicação entre pontos, às vezes afastados dezenas de quilómetros. Tal facto deu origem à concepção de embarcações adequadas ao meio, por serem soluções funcionais para necessidades específicas: transporte de sal, apanha de moliço, captura e transporte de peixe e transportes fluviais» (3).

A questão é que tal perspectiva parece ineficaz para explicar muitas das características daquelas embarcações em geral e do moliceiro em particular. Já sem falar na decoração, que os seus exemplares ostentam, pergunto, por exemplo, a que função natural responde a elevação da sua proa?

Certamente não são as condições naturais da ria, pois todos estes barcos sulcam as mesmas águas, nem as funções de trabalho, pois, actualmente, com o desaparecimento / 26 / progressivo dos moliceiros, existe uma troca de funções.

Já não é a ordem natural, mas sim a ordem cultural, que pode esclarecer o assunto. Com efeito, a relação do homem com a natureza é medida pela cultura. Como diz Leslie White:

«Assim (com símbolos) o homem criou um novo mundo para nele viver. Certamente ele não deixou de palmilhar a terra, de sentir o vento no rosto, de escutá-lo suspirar nos ramos dos pinheiros; ele bebeu a água dos rios, dormiu sob as estrelas e levantou-se para saudar o sol! Nada mais era como antes. Tudo estava «banhado por luz celestial» e havia «sugestões de imortalidade» em cada mão. A água já não servia mais apenas para saciar a sede; poderia tomar a vida eterna. Entre o homem e a natureza interpunha-se o véu da cultura, e ele nada poderia enxergar a não ser através desse véu. Ele ainda usava seus sentidos. Lascava pedras, caçava cervos, acasalava-se e procriava. Mas tudo era permeado pela essência das palavras: os significados e valores que estavam além dos sentidos. E esses significados e valores o orientavam, além de orientar seus sentidos, tendo muitas vezes precedência sobre eles» (4). A natureza toma-se cultura não pela correspondência ou transposição de unidades naturais para unidades culturais, mas pela integração de elementos naturais numa ordem que caracteriza a cultura. Em suma, a cultura não deriva directamente da experiência ou do acontecimento, na medida em que a prática humana se realiza num mundo já simbolizado.

Toda a cultura pode então, no dizer de L. Strauss, «ser considerada como um conjunto de sistemas simbólicos, na primeira linha dos quais se colocam a linguagem, as regras matrimoniais, as relações económicas, a arte, a ciência, a religião. Todos estes sistemas visam a exprimir certos aspectos da realidade física e da realidade social e mais ainda, as relações que esses dois tipos de realidade mantêm entre si e as que os próprios sistemas simbólicos mantêm uns com os outros» (5).

 

2. – O esclarecimento destas questões parece importante para uma análise eficaz e profícua da decoração do moliceiro. Esta análise incidirá especialmente sobre mais de 30 reproduções de pinturas nas proas e nas rés, a preto-e-branco e a cores, recolhidas em diferentes locais da ria de Aveiro e espaçadas no tempo dos anos 50 a 1982. Além disso, a observação in loco por mim realizada e a vivência no meio, bem como a consideração de outras reproduções publicadas, terão alguma importância na abordagem do tema.

Uma primeira questão que se pode pôr diz respeito à proveniência das decorações... Tratar-se-ia, neste caso, de caminhar pelo tempo em sentido contrário, procurando determinar a sua paternidade cultural. Porém, as dificuldades de tal projecto seriam imensas. Neste âmbito, podemos talvez perguntar se as decorações que hoje encontramos no moliceiro sempre o acompanharam ao longo do tempo (sofrendo certamente inevitáveis alterações), ou se constituem registos que lhe eram exteriores e que a partir de determinada altura foram aplicadas nos barcos. Trata-se ainda de uma questão de difícil resposta. Mesmo que admitamos a primeira daquelas hipóteses, a questão da / 27 / origem destas embarcações perde-se no tempo. O que é certo é que a actividade de recolha de moliço por barcos especializados existe seguramente desde os princípios do século passado (6).

Actualmente, admite-se que a profissão de moliceiro, enquanto actividade profissional especializada, é relativamente recente e resulta da expansão agrícola. Antes desta especialização, a recolha do moliço era assegurada directamente pelo camponês que com ele adubava os seus campos.

O barco moliceiro é, ordinariamente, tripulado por 2 homens – patrão ou arrais e moço – que se tratam por camaradas e cujas funções se confundem; estas constituem-se em duas actividades realizadas simultaneamente: manobrar o barco e recolher o moliço com os ancinhos. Todos os instrumentos de bordo, a aparelhagem e as acções dos tripulantes têm nomes próprios (7). O moliceiro trabalha quase sempre de dia, durante grande parte do ano, especialmente nos meses de verão. A partir de 1912, estabeleceu-se um período de defeso que vai de 24 de Março a 23 de Junho, com a finalidade de proteger as espécies botânicas que entram na composição do moliço e as espécies faunísticas que aí se abrigam e procriam. É frequente os tripulantes pernoitarem no barco, utilizando para o efeito o castelo de proa.

As descrições que o barco enverga não têm, à partida, rigorosamente nada a ver com a vontade de qualquer dos seus tripulantes. Elas são da autoria exclusiva do mestre barqueiro que as realiza a seu gosto. Podem posteriormente vir a ser retocadas por terceiros, mas a proveniência do seu colorido e das formas pintadas cabe por inteiro ao construtor do barco.

Os mestres barqueiros têm os estaleiros situados em Ílhavo e na Murtosa. Actualmente, pouquíssimos subsistem na Murtosa. A construção naval, aqui, passa de pais para filhos. D. José de Castro refere a família dos «Raimundos» na Murtosa como a mais famosa neste mester (8). Para a construção da embarcação, o barqueiro serve-se de uma série de moldes, de uma vara a que chama «pau dos pontos», que constitui um sistema de reconversão de medidas, e de um simples cordel.

Os moldes e o «pau dos pontos» atravessam gerações de barqueiros sem que estes lhes alterem a tradição. Para as decorações não existem moldes visíveis.

Depois do barco pronto e devidamente aparelhado, procede-se ao bota-abaixo: o barco é conduzido à ria, ornamentado com galhardetes ou bandeirinhas de cores variadas que o barqueiro arvora nas duas bicas (da proa e da ré) em pequenas hastes provisórias, rematadas com ramos de flores silvestres, carreado sobre duas zorras puxadas por 3 juntas de bois. Esta operação tem sempre lugar ao sábado.

 

3. – O facto da decoração provir do génio criador do mestre, fazendo parte e finalizando a construção do barco, é sem dúvida um dado importante que não se deve perder de vista. Há como que um processo alquímico pelo qual o artefacto é trazido à luz do diaprocesso pelo qual o barqueiro investe o seu esforço e a sua sabedoria na criação de um ente animado.

Esta noção de barco-ente-animado é justamente posta em relevo, por exemplo, por Octávio Lixa Filgueiras num artigo intitulado «A propósito da protecção mágica dos barcos do Douro» (9). Neste estudo, o autor faz uma breve resenha histórica sobre o modo como se têm concebido as embarcações: do barco enquanto veículo sagrado ou de ritual (comum ao Egipto faraónico e à Idade do Bronze entre os nórdicos), passou-se à concepção de barco-ente-animado; «inicialmente através de sacrifícios de sangue – imolações de pessoas ou de animais – era procurada a transferência dos poderes físicos ou espirituais das vítimas oblatas, incorporando-as intimamente nas madeiras dos cascos recém-construídos. Daí a origem de algumas figuras de proa» (10).

Temos aqui, finalmente, o primeiro dado para a explicação da decoração do moliceiro. Porém, a observação daquele investigador centra-se sobre os barcos poveiros, cujas proas ostentam pinturas de olhos, cruzes e uma ou outra inscrição de pendor religioso. Ora, no que diz respeito ao moliceiro, os motivos de decoração são bastante mais variados: comportam representações esquemáticas mais ou menos abstractas motivos florais diversos, emblemas, signo; de protecção e de identificação, figuras humanas masculinas e femininas, figuras animais, legendas de sabor diverso (patrióticas, religiosas, jocosas, etc.), distribuindo-se por áreas definidas no exterior e interior do barco. Perante tal profusão de elementos decorativos, a hipótese de barco-ente-animado parece submergir na rede inextricável de formas, cores e palavras. À primeira vista, parece que o mestre barqueiro apenas se preocupou em encher algumas áreas com elementos variados, ao sabor da inspiração de momento, combinando ou recombinando «casualmente» as formas as cores e as legendas de que dispõe. Será assim?

O que podemos verificar é, primeiro, se as relações entre os elementos decorativos é aleatório ou, pelo contrário, se se rege por qualquer espécie de lei. Em segundo lugar, podemos também verificar a regularidade ou não regularidade das áreas pintadas e sua relação com os nomes das mesmas. Finalmente, e em terceiro lugar, podemos procurar similitudes entre os motivos decorativos do moliceiro e decorações noutros artefactos.

Começando pela terceira destas questões, é imediato o reconhecimento de fortes semelhanças entre os elementos decorativos do / 28 / moliceiro e os que animam os jugos e cangas vareiras (11).

Para lá da semelhança entre alguns dos seus motivos – elementos florais mais ou menos geometrizados – podemos destacar a gama de cor e a localização geográfica de oficinas e estaleiros. Quanto ao cromatismo, a canga vareira utiliza talvez uma gama mais alargada, mas igualmente próxima das cores primárias. Curioso é o facto de o moliceiro, tal como a canga vareira, apresentar inicialmente a cor amarela (12).

Quanto à localização dos estaleiros e oficinas de barqueiros e jugueiros, há uma proximidade geográfica; em Estarreja e Ílhavo encontram-se tradições numa e noutra actividade.

É importante, para o esclarecimento da exposição, lembrar que estas questões se põem a partir da vontade de verificar a hipótese barco-ente-animado, no que concerne ao moliceiro. Vejamos pois a segunda das questões: determinação das áreas pintadas no moliceiro e sua relação com os nomes das mesmas.

Uma afirmação proferida por L. Chaves num interessante artigo sobre «A decoração dos nossos barcos» (13) permitiu-me levantar a ponta do véu.

Diz aquele investigador:

«Os barcos vestem-se como se vestiram os corpos, e se enfeitaram, guarneceram, defenderam com o que vestiram e como o vestiram» (...) «O homem coloriu-se, desde a pele ao traje, das coisas que usa às que o abrigam e protegem.»

Depois, em nota de rodapé, esclarece:

«Nos barcos, como nos vestidos, há faixas coloridas, paralelas ou não, grades ou xadrezes, barras, flores estilizadas ou realistas, emblemas, etc. O princípio do revestimento é o mesmo.»

Tal como o corpo, o barco veste-se e enfeita-se. Ou, se quisermos, tal como o corpo pode ser tatuado por intermédio de pequenas incisões e da aplicação de pigmentos coloridos também os costados e a madeira se impregnam de tintas; num e noutro caso oferecem o espectáculo das legendas saborosamente picantes ou evocativas, das figuras provocantes, emblemáticas ou religiosas, debruadas por cercaduras geometrizadas.

O moliceiro possui então zonas que evocam mais ou menos directamente os órgãos do corpo:

▪ as «bicas» na proa e na ré;

▪ as «mãozinhas» ou «golfiões», situadas sobre o castelo de proa (que servem para amarração da sirga, descanso dos ancinhos, das varas, do fuso ou para fixação do respectivo cabo);

▪ a «orelha» situada a estibordo atrás do painel de proa (que, conjuntamente com a corrente, serve para prender o barco ao moirão, protegendo-o do atrito).

O barco torna-se assim, por efeito dos nomes das suas partes, por adição das suas tatuagens, um ente vivo, o terceiro «camarada».

O seu corpo – a sua pele – é então iluminada, não em pontos ao acaso, mas em áreas específicas, importantes quer pela exibição que proporcionam vistas do exterior, quer pela protecção que garantem no interior.

Temos 4 painéis diferentes entre si 2 de proa e 2 de ré, visíveis do exterior. Cada um deles apresenta no centro uma representação figurativa com respectiva legenda; o espaço central pode ser ainda acabado de / 29 / preencher com um motivo floral; finalmente todo este conjunto é envolvido por frisos mais ou menos geometrizados e estilizados. A maioria dos autores reconhece um carácter mais ou menos nobre aos painéis da proa e maior sugestividade e espírito aos da ré com respectivas legendas.

São ainda decoradas a bica de proa, que apresenta ordinariamente o terminus de um motivo floral simétrico que se inicia na cobertura do castelo de proa, e as «mãozinhas» ou «golfiões» sobre os quais se encontram pintados um rosto masculino e um rosto feminino. Já no espaço interior, a porta do castelo de proa ostenta por vezes signos de protecção mágica (o signo-saimão) e uma cercadura com motivos florais.

O signo identificativo do construtor surge pintado na parte superior do leme. Regra geral, todos estes motivos são pintados nas cores primárias – amarelo, encarnado, azul – a que se junta o verde.


4. – Pegando no conjunto de motivos decorativos observados e realizando uma desmontagem dos mesmos, podemos estabelecer algumas categorias. É evidente que tal desmontagem jamais é inocente, pois pressupõe um critério de análise e classificação. Complementarmente, ao realizar tal operação «desmancha-se» a «unidade estética» que cada painel ostenta. Por outro lado, o exercício pode ser útil e frutuoso para uma leitura correcta dos motivos apresentados e, sobretudo, para uma determinação da regularidade de ocorrência dos mesmos.

Seguindo um critério morfológico, podemos considerar três categorias de ornamentos:

A - Elementos, desenhos e composições ornamentais geométricas ou geometrizadas;

B - Desenhos livres, isto é, aqueles que não são geométricos;

C - Composições ornamentais mistas.

Cada painel apresenta uma organização regular: à medida que se aproximam da periferia, as decorações tornam-se mais geometrizadas.

Paralelamente, relacionando os diferentes painéis, podemos afirmar que existe maior regularidade nas formas de expressão da categoria A e maior liberdade de expressão na categoria B.  / 30 /

Como diz Nicolae Duñare:

«Estudos diacrónicos mostraram que a ornamentação geométrica é conservadora e tem uma considerável continuidade. Pelo contrário, a ornamentação livre tem provado ser mais receptiva à mudança» (14).

De um ponto de vista temático podemos agrupar de maneira diversa os mesmos ornamentos... Aqui, porém, pisamos terreno mais movediço, pois nem sempre é líquido o significado de um certo elemento. Além de um grupo de ornamentos abstractos (I), existe um outro de ornamentos concretos (lI), que podem ser fitomórficos (1), zoomórficos (2) ou antropomórficos (3), e um terceiro de expressão de formas sociais (llI), que pode ser simbólico (4), religioso (5), heráldico (6), etc.

Regra geral, cada painel apresenta uma organização centripta, isto é, conduz o olhar do espectador para o centro, onde se desenrola a cena com respectiva legenda. Há, aí, como que a representação de um espaço cénico:

 

Então, as figuras centrais assumem, quase sempre, o lugar de actores, cujas deixas aparecem escritas em baixo esclarecendo o público quanto à cena a que naturalmente assiste.

Por vezes, o actor interpela directamente o público: «ORA! VIVA MEUS SENHORES».

 

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Noutros casos, os actores falam entre si: «SÓ QUERIA A TUA ROSA».

Os painéis que situam e definem a personagem: «O EMIGRANTE»

   

Há também os painéis que incluem uma voz de origem indeterminada: «À PROCURA DOS TRÊS».

E, finalmente, os que ostentam o nome do «encenador» que, no caso, é também o criador do «texto teatral» e o arquitecto do «teatro».

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A variedade e a profusão de elementos decorativos é, assim, esclarecida e decifrada em sistemas. Estes constituem modos de perceber o real (venha ele da natureza ou da sociedade) e que procedem a uma classificação sobre a tecitura exterior realizando sobre ela uma ordenação que lhe é estranha. Na decoração dos moliceiros estão presentes os sistemas simbólicos dos seus construtores. Assim, podemos encontrar nos motivos decorativos:

– uma caracterização e uma classificação social (ou socio-profissional);

– uma ordenação natural, em especial uma classificação botânica, que parece presente também nas cangas e jugos da mesma área geográfica;

– uma ordem mágica, que consiste na utilização de sinais de protecção (porta do castelo de proa) e nas figuras masculinas e femininas nas mãozinhas. (15)

 

5. – Esta exposição sobre a decoração do moliceiro passou pela abordagem de 3 aspectos nucleares:

I) Verificação da hipótese barco-ente-animado ou barco-corpo, bissexuado e tatuado; lI) Interpretação dos painéis como representações cénicas a que se assiste ou que se espreitam; lII Detecção no conjunto das formas decorativas de sistemas de integração e classificação do real.

Obviamente, qualquer destas abordagens poderia ser mais e melhor desenvolvida e aprofundada... Por outro lado, questões como as do dinamismo dos elementos decorativos e introdução de elementos que lhes eram geneticamente estranhos ficam por abordar; outras – como a questão das relações entre as formas decorativas do moliceiro e outras expressões artísticas populares da mesma área geográfica – foram apenas esboçadas. De qualquer modo, houve a preocupação de inverter a tendência de investigação nesta matéria, que até à data se tem limitado ora a considerações vagas e saudosas, ora a uma mera descrição etnográfica de dados. As conclusões estão ainda e apenas desvendadas, mas as vias para as atingir ficam, assim o espero, mais nítidas.

Daniel Tércio Ramos Guimarães

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NOTAS

(1) – Chaves, Luís –, A decoração dos nossos barcos, p. 53 in «Broteria» XLI.

(2) - Vide, por exemplo:

– Dr. Alberto Souto citado por Celestino Gomes in Os motivos da decoração ilhavense, Minerva ed., 1932: «A semelhança do bico da gaivota com o feitio da proa é flagrante.»

– Rocha Madahil, Barcos de Portugal in «Vida e Arte do Povo Português»: «os dois painéis da proa e as suas cercaduras são bem a réplica achada pelo íncola da região ao colar de penas de vivo colorido que certas aves aquáticas, certos palmípedes, apresentam ao pescoço, como se à imagem e semelhança delas o barco tivesse sido concebido pelo seu remoto criador.»

– Hélder Pacheco, Pinturas dos barcos da Ria, boletim da ADERAV, Maio/Junho de 1980.

(A propósito da actividade criadora dos mestres barqueiros, afirma:) (...) «uma observação atenta e amável das coisas concretas, donde se desprende um encantamento, uma clareza, uma alegria, que transforma as pinturas em instantâneos apaixonantes de um quotidiano sensível, que comprova a ideia dos pintores serem gente com ria, campo, paisagens e animais bem perto de si.»

(3) – Hélder Pacheco, Pinturas dos barcos da Ria, boletim da ADERAV, Maio/Junho de 1980.

(4) – L. White citado por SANLINS, Marshal, Cultura e Razão prática, p. 121, Zahar ed., Rio de Janeiro, 1979.

(5) – L. Strauss, Introdução à obra de M. Mauss in «Estruturalismo –antologia de textos literários», Portugália ed., p. 158.

(6) – Vide: Padre João Vieira Resende, Monografia da Gafanha, Gráfica Ilhavense, Ílhavo, 1938. Na p. 273 diz-se: «Um decreto de 2 de Julho de 1802 lançou o imposto de 10 réis aos barcos maiores carregados de moliço e de 20 réis aos barcos menores.»

(7) – Vide: Domingos José de Castro, Estudos etnográficos AVEIRO, obra ed. pelo Inst. para a Alta Cultura, 1943.

Vide também: Moliceiros, publicação do posto de turismo da C. M. de Aveiro da responsabilidade de Diamantino Dias.

(8) – Domingos José de Castro, obra citada, p. 14.

(9)In memoriam António Jorge Dias, Inst. de Alta Cultura, Lx., 1974.

(10) – Idem, p. 189.

(11) – Para a decoração, o mestre jugueiro começa por utilizar moldes de cartão ou de papel que lhe permitem passar o desenho para a madeira; depois segue-se o trabalho de goiva e, finalmente, a pintura tradicional, destacando-se os fundos em amarelo e, sobre eles, o desenho revestido de verde, vermelho, azul, laranja, roxo e branco.

(12) – No caso do barco a cor amarela é obtida por efeito do embreamento a pez louro; mais tarde, logo que sofre a primeira reparação («Amanhação»), o costado é totalmente embreado a pez negro, menos oneroso e mais eficiente no calafeto e protecção. Daqui se conclui que o primeiro embreamento não resulta de uma função utilitária.

(13) – In «Broteria» , XLI.

(14) – DUÑARE, Nicolae –, Criteria for the classification of folk ornaments.

(15) – Uma possível interpretação seria alcançada pela relação destes motivos com o mito do andrógino; o moliceiro tornar-se-ia um ente sexualmente neutro, ou então bissexuado. / 33 /

 

OBSERVAÇÕES

1. – As gravuras das proas de diversos barcos e da proa e do alçado lateral do moliceiro foram extraídos de desenhos incluídos nos «Estudos Etnográficos - AVEIRO», de Domingos José de Castro.

2. – As quatro gravuras seguintes – duas a toda a largura da página e duas pequenas – foram executadas sobre desenhos do autor.

3. – As últimas cinco gravuras – rés e proas de moliceiros – reproduzem fotografias do arquivo de Tércio Guimarães, pai do autor.

 

BIBLIOGRAFIA

GERAL

– DUÑARE, Nicolae, Criteria for the classification of folk ornaments.

– LEVI-STRAUSS, Introdução à obra de Marcel Mauss in «ESTRUTURALISMO – antologia de textos literários», Portugália ed., Lx.

– SANLINS, Marshall –, Cultura e razão prática, Zahar ed., Rio de Janeiro, 1979.

 

ESPECÍFICA

– Alberto Souto, Etnografia da região do Vouga, Coimbra ed., 1929.

– António Nascimento Leitão, Aveiro e a sua laguna – estudo comparativo de temas
   regionais
, Livrar. Sá da Costa, Lx., 1944.

– Celestino Gomes, Os motivos da decoração ilhavense, Minerva ed., 1932.

– Jaime Cortesão, Portugal, a Terra e o Homem, Artis, sem data.

– Jaime S. Pato, Problemas da região de Aveiro, tip. comercial, Anadia, 1948.

– Padre João Vieira Resende, Monografia da Gafanha, Gráf. Ilhavense, Ílhavo, 1938.

 

REVISTAS:

– Prof. Arq. Octávio Lixa Filgueiras, Barcos da Costa norte, sua contribuição no estudo das áreas culturais, Porto, 1964 e A propósito da protecção.

– D. José de Castro, Estudos etnográficos AVEIRO. Obra editado pelo Instituto para a Alta Cultura, 1943. Mágica dos barcos do Douro in «ln memoriam António Jorge Dias», Inst. da Alta Cultura, Junta de Investigação Científica do Ultramar, Lx., 1974.

– Rocha Madahil, Barcos de Portugal, in «Vida e arte do povo português.

– “Aveiro e o seu distrito”, pubI. semestral da Junta Distrital de Aveiro n.º 3, n.º 5, n.º 6,
     n.º 12, n.º 16, n.º 20, n.º 23/25.

– Arquivo do distrito de Aveiro, voI. lI, 1936 e  vol. XXXIV, 1968.

– Boletim da Associação de Defesa do Património Natural e Cultural da Região de
    Aveiro, n.º 2 e n.º 4.

– Broteria, voI. XLI.


BROCHURAS

Moliceiros, publicação do posto de turismo da C.M.A. da responsabilidade de Diamantino Dias.


 

 

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