Coisas de há mais de um
século
Continuo à cata de elementos, grandes ou
pequenos, para achegas ao passado aveirense. E até onde as
circunstâncias de urna vida perra mo consentem, numa inquirição
insaciável. Nessa pesquisa, sempre de orelhas hirtas, há dias, jubilei,
ao ler num catálogo de um alfarrabista lisboeta um lote com um folheto
sobre O Caminho de Ferro do Sul e Sueste. E não resisti, apesar
do preço salgadote, à tentação de o adquirir, pois data de 1876. Logo,
por essa circunstância cronológica, me fez recordar que essa via-férrea
está, nos seus primórdios, estreitamente ligada a um aveirense de
renome, de grande espírito empreendedor e de grande fortuna, o Visconde
do Barreiro, que conseguiu na terra brasileira para onde emigrou muito
jovem, por motivos a que não são estranhos os ideais políticos
perigosos, e onde se passou a acção ficcionada da «Escrava Isaura», que
todos vimos, com mais ou menos pormenor, na Televisão. E se por lá fez
fortuna, que aumentou consideravelmente com o casamento, por cá, com o
seu tacto e poder de visionamento antecipado, fez crescer a sólida,
larga e dinamizadora riqueza com que regressara à pátria.
Somente aconteceu que nem uma única
referência encontrei a essa empreendedora personalidade, já que, como se
escreve na sucinta Advertência «neste folheto vêm compilados, com
as rectificações denunciadas pelo seguimento dos trabalhos e pela
discussão, todos os artigos publicados no “Jornal do Commercio”, desde 6
de Agosto de 1875 até 1 de Novembro de 1876, em defesa da administração
dos caminhos-de-ferro do sul e sueste, regida pelo governo, e
relativamente à fixação da testa d'esta
/ 13 / ponte». E a administração
estatal contava já nessa altura bem mais de um lustro.
Aliás, o «folheto», explicita-o
claramente, na própria capa. Saído da Imprensa Nacional, em 1876, frisa,
com saliência e força, incluir «Esclarecimentos sobre a Administração
do Governo e reedita as asserções dos responsáveis acerca da discussão
sobre o local para fixação do terminus d'esta linha»...
Mas não perdi, em absoluto, nem as
referências apetentes das minhas tinetas aveiristas, nem
pecuniariamente, o que esportulei nesta leviandade de comprar um
espécime bibliográfico, sem conhecimento prévio do conteúdo. O «faro»
não me induziu de todo em falso.
Não vou agora discutir – porque excede o
âmbito das minhas capacidades, e da minha regedoria predilecta – o que
com os dados concretos do presente talvez se me tornasse fácil e me
desse aparências enganosas de uma sapiência que nem tenho, nem
estultamente quero fazer crer – o preconizado «terminus» daquela
via-férrea. Topei, a propósito da implantação defendida e eventuais
dificuldades técnicas, de mal agoirada e mal fundamentada provisão para
o término no Barreiro, o seguinte passo (reportado ao artigo com data de
9 de Fevereiro de 1876, de Lisboa e subscrito por Miguel Carlos Correia
Paes):
«Todos conhecem (os daquele tempo, é
evidente!) o viaducto construido no valle de Esgueira» pouco adiante
(a norte, como se sabe) da estação de Aveiro, para dar passagem
ao caminho de ferro do norte.
«Compõe-se de seis vãos de 30 metros de abertura cada um.
Os pilares são de tubos de ferro, e, a começar do sul para o norte,
foram-se cravando cada vez mais até ao pilar n.º 4, em que se cravaram
33 metros, que, com 13 acima do terreno até à ponte, fazia a enorme
altura de 46 metros».
(1)
Ora, à parte os pormenores numéricos,
expressos ou não em algarismos e alguns ainda hoje comprováveis, não me
trouxe, neste particular, o folheto em referência – que, a brincar enche
96 compactas páginas e inclui uma reprodução desdobrável de uma «Carta
Corográfica dos Terrenos em volta de Lisboa», elaborada, em 1869, pelo
Depósito Geral da Guerra», então dirigido pelo Gen.l de Brig.da
F. (Filipe?) Folque – não me trouxe, dizia, novidade de maior,
como comentador para os «mass-media». Já num órgão de Imprensa local
tive ensejo, há um bom par de anos, de aludir ao primeiro comboio, que
festiva e temerosamente atravessou a arrojada ponte de Esgueira –
/ 14 /
agora praticamente engolida na delimitação citadina aveirense.
E referi-me então, com mais minúcia, à
incredulidade que se gerou, na altura, de que o viaduto suportasse,
incólume e imoto, a carga, tão elevada, de um comboio, com uma
locomotiva a vapor. E alonguei-me a mencionar as sensações manifestadas
sobre o evento por um dos heróis dessa temerária travessia inaugural,
pelos anos depois, famoso Ramalho Ortigão, que estava nos inícios da sua
carreira literária, e, na circunstância, era enviado especial de um dos
jornais portuenses.
E, então, terei, acaso, mencionado as
alusões feitas ao amedrontador acontecimento pelo redactor para o efeito
destacado pelo “Campeão das Províncias” – que, durante muito tempo, foi
o decano, e o primeiro, ainda e sempre, dos jornais de Aveiro.
E, talvez, creio, terá confiado, se a
memória me não falha, essa temerosa tarefa, ao experiente José Eduardo
de Almeida Vilhena, que passara pela chefia da redacção de alguns
diários lisboetas de cariz político, e que ainda conheci à janela da
casa do Senhor Firmino Huet (lê-se uete), no desaparecido prédio
da Rua de Entrepontes (hoje de «Viana do Castelo») onde tinha
domicílio, e veio a ficar o espaço contíguo ao Arcada Hotel,
arrojadamente construído já para essa finalidade específica.
Lembro-me tenuemente, mas seguramente, do
velho Almeida Vilhena, nos fins da vida e valetudinário, decano, já
incapaz, dos jornalistas aveirenses, com rastro e capacidade.
Mas, no mesmo artigo, do “Jornal do
Comércio” que chegou a ser o mais velho diário do continente português,
e fora fundado por Luís de Almeida e Albuquerque, aquele que substituía
voluntariamente José Estêvão, enquanto este fintava os agentes
assoldadados para prender o grande vulto liberal aveirense, que depois
soube compensá-lo – diz-se mais, expressamente:
«O grande trabalho que deu o fundamento
do encontro norte da Ponte do Pano, que fica adiante da estação de
Oliveira do Bairro». E acrescenta, no período imediato, a seguinte
informação, que neste momento me parece cheia de prudente oportunidade,
já que naquela ponte da via-férrea se está efectuando uma meticulosa
reparação reforçativa e cautelar:
«O péssimo terreno das Agras de Aveiro – os leitores
muito provavelmente estarão a lembrar-se de que, por uma libra
simbólica, o venerando e intrépido liberal Manuel José Mendes Leite
«deu» todo o terreno atravessado por esses estirados aterros do então
chamado «Vale do Curvo» – um vale situado pouco antes da estação do
mesmo nome, em que uma boa ponte de tijolo, de 4 metros de abertura,
construída com todo o esmero sobre uma estacaria de 10 metros e estrado
de madeira, desapareceu uma noite, e o aterro enterrou-se mais de 8
metros, refluindo, o terreno natural, a montante e a jusante do aterro,
até grande distância e sublevantando-se alguns metros».
(2)
Aliás, mais que bastantemente é sabido o
papel caloroso e apostolizador que José Estêvão – de quem Mendes Leite
era o mais afectuoso e apegado amigo – tomou na defesa, pertinaz e cheia
de convicções, dos caminhos-de-ferro em geral, e na localização de uma
paragem estanciadora da praticamente totalidade dos comboios em Aveiro.
Desse elemento de locomoção, que classificou como o mais democrático de
todos – e essa opinião sustentou como das mais decisivas o patrono
cívico da sua, nem sempre compreensiva e reconhecida e retribuidora de
afecto prestante, já que sempre devotadamente servida, terra natal.
Não, por meros motivos de sentimental
bairrismo
/ 15 / – que a sua isenta lucidez via sempre para além do
círculo das badaladas restritas do campanário – mas, porque, assim, o
recomendava o acesso pronto e desafogado, pelos mais modernos e
eficientes meios, a um porto de mar, que então se repristinava – e que
agora, em 1983, estamos prestes a fruir em dilatadas proporções que
visam um «hinterland» rasgado até lonjuras internacionais.
Conhece-se, superabundantemente, como José Estêvão – e
todos os esclarecidos espíritos com ele coligados nessa corrente que deu
o «fontismo» – acreditava profundamente na acção estimuladora dos
caminhos-de-ferro, e os advogava persuasivamente com o seu grande
poder
de dialéctica, eufónica, lógica e comunicativa, na Imprensa ou na
Tribuna.
(3)
Que, propriamente, como também por demais
é conhecido, José Estêvão não escrevia. Mesmo para os jornais em que
pontificou – e nunca dispensou – não escrevia, pois não haveria
tipógrafo, por mais experimentado, que lhe lesse os gatafunhos
hieroglíficos, mas ditava – a começar invariável, reinadia e
inconsequentemente por um ponto final. Ditava os artigos de qualquer
extensão – mesmo que, entretanto, lhe sobreviesse algum ocasional acesso
de sono, inconsequente, mas imperativo e invencível – se envolvessem
princípios a que tinha aderido, com o vigor inteiro do seu desfrenado
espírito, empolgante e generoso.
Mas, para usarmos linguajar ajustado ao
tema, refaçamos as agulhas e volvamos ao rumo principal. Púnhamos mesmo
termo a esta digressão evocativa, com este histórico movimento de
terras. As margens do Tejo não faziam prever qualquer contratempo
semelhante no Barreiro, e que ainda hoje ocasionaria apreensões.
O
grande desenvolvimento do Barreiro resultou da fixação nos seus limites
do términus da linha férrea do Sul e Sueste, cuja exploração começou a
efectuar-se em 1861.(4) E púnhamos aqui, contra a predilecção
estevaniana, o ponto final, que já é tempo.
EDUARDO CERQUEIRA
______________________________________________
(1)
– Obra cit., pág. 24.
(2)
– Obra cit., pág. 24.
(3)
– In José Estêvão, Estudo e Colectânea, Edição da C. M. de
Aveiro, 1962, pág. 197 a 199.
(4)
– Enciclopédia «Verbo» – Vol. 4, Col. 643.
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