Acesso à hierarquia superior.

Boletim n.º 2 - Ano I - 1983 - pp. 12-15

Coisas de há mais de um século

Continuo à cata de elementos, grandes ou pequenos, para achegas ao passado aveirense. E até onde as circunstâncias de urna vida perra mo consentem, numa inquirição insaciável. Nessa pesquisa, sempre de orelhas hirtas, há dias, jubilei, ao ler num catálogo de um alfarrabista lisboeta um lote com um folheto sobre O Caminho de Ferro do Sul e Sueste. E não resisti, apesar do preço salgadote, à tentação de o adquirir, pois data de 1876. Logo, por essa circunstância cronológica, me fez recordar que essa via-férrea está, nos seus primórdios, estreitamente ligada a um aveirense de renome, de grande espírito empreendedor e de grande fortuna, o Visconde do Barreiro, que conseguiu na terra brasileira para onde emigrou muito jovem, por motivos a que não são estranhos os ideais políticos perigosos, e onde se passou a acção ficcionada da «Escrava Isaura», que todos vimos, com mais ou menos pormenor, na Televisão. E se por lá fez fortuna, que aumentou consideravelmente com o casamento, por cá, com o seu tacto e poder de visionamento antecipado, fez crescer a sólida, larga e dinamizadora riqueza com que regressara à pátria.

Somente aconteceu que nem uma única referência encontrei a essa empreendedora personalidade, já que, como se escreve na sucinta Advertência «neste folheto vêm compilados, com as rectificações denunciadas pelo seguimento dos trabalhos e pela discussão, todos os artigos publicados no “Jornal do Commercio”, desde 6 de Agosto de 1875 até 1 de Novembro de 1876, em defesa da administração dos caminhos-de-ferro do sul e sueste, regida pelo governo, e relativamente à fixação da testa d'esta / 13 / ponte». E a administração estatal contava já nessa altura bem mais de um lustro.

Aliás, o «folheto», explicita-o claramente, na própria capa. Saído da Imprensa Nacional, em 1876, frisa, com saliência e força, incluir «Esclarecimentos sobre a Administração do Governo e reedita as asserções dos responsáveis acerca da discussão sobre o local para fixação do terminus d'esta linha»...

Mas não perdi, em absoluto, nem as referências apetentes das minhas tinetas aveiristas, nem pecuniariamente, o que esportulei nesta leviandade de comprar um espécime bibliográfico, sem conhecimento prévio do conteúdo. O «faro» não me induziu de todo em falso.

Não vou agora discutir – porque excede o âmbito das minhas capacidades, e da minha regedoria predilecta – o que com os dados concretos do presente talvez se me tornasse fácil e me desse aparências enganosas de uma sapiência que nem tenho, nem estultamente quero fazer crer – o preconizado «terminus» daquela via-férrea. Topei, a propósito da implantação defendida e eventuais dificuldades técnicas, de mal agoirada e mal fundamentada provisão para o término no Barreiro, o seguinte passo (reportado ao artigo com data de 9 de Fevereiro de 1876, de Lisboa e subscrito por Miguel Carlos Correia Paes):

«Todos conhecem (os daquele tempo, é evidente!) o viaducto construido no valle de Esgueira» pouco adiante (a norte, como se sabe) da estação de Aveiro, para dar passagem ao caminho de ferro do norte.

«Compõe-se de seis vãos de 30 metros de abertura cada um. Os pilares são de tubos de ferro, e, a começar do sul para o norte, foram-se cravando cada vez mais até ao pilar n.º 4, em que se cravaram 33 metros, que, com 13 acima do terreno até à ponte, fazia a enorme altura de 46 metros». (1)

Ora, à parte os pormenores numéricos, expressos ou não em algarismos e alguns ainda hoje comprováveis, não me trouxe, neste particular, o folheto em referência – que, a brincar enche 96 compactas páginas e inclui uma reprodução desdobrável de uma «Carta Corográfica dos Terrenos em volta de Lisboa», elaborada, em 1869, pelo Depósito Geral da Guerra», então dirigido pelo Gen.l de Brig.da F. (Filipe?) Folque – não me trouxe, dizia, novidade de maior, como comentador para os «mass-media». Já num órgão de Imprensa local tive ensejo, há um bom par de anos, de aludir ao primeiro comboio, que festiva e temerosamente atravessou a arrojada ponte de Esgueira – / 14 / agora praticamente engolida na delimitação citadina aveirense.

E referi-me então, com mais minúcia, à incredulidade que se gerou, na altura, de que o viaduto suportasse, incólume e imoto, a carga, tão elevada, de um comboio, com uma locomotiva a vapor. E alonguei-me a mencionar as sensações manifestadas sobre o evento por um dos heróis dessa temerária travessia inaugural, pelos anos depois, famoso Ramalho Ortigão, que estava nos inícios da sua carreira literária, e, na circunstância, era enviado especial de um dos jornais portuenses.

E, então, terei, acaso, mencionado as alusões feitas ao amedrontador acontecimento pelo redactor para o efeito destacado pelo “Campeão das Províncias” – que, durante muito tempo, foi o decano, e o primeiro, ainda e sempre, dos jornais de Aveiro.

E, talvez, creio, terá confiado, se a memória me não falha, essa temerosa tarefa, ao experiente José Eduardo de Almeida Vilhena, que passara pela chefia da redacção de alguns diários lisboetas de cariz político, e que ainda conheci à janela da casa do Senhor Firmino Huet (lê-se uete), no desaparecido prédio da Rua de Entrepontes (hoje de «Viana do Castelo») onde tinha domicílio, e veio a ficar o espaço contíguo ao Arcada Hotel, arrojadamente construído já para essa finalidade específica.

Lembro-me tenuemente, mas seguramente, do velho Almeida Vilhena, nos fins da vida e valetudinário, decano, já incapaz, dos jornalistas aveirenses, com rastro e capacidade.

Mas, no mesmo artigo, do “Jornal do Comércio” que chegou a ser o mais velho diário do continente português, e fora fundado por Luís de Almeida e Albuquerque, aquele que substituía voluntariamente José Estêvão, enquanto este fintava os agentes assoldadados para prender o grande vulto liberal aveirense, que depois soube compensá-lo – diz-se mais, expressamente:

«O grande trabalho que deu o fundamento do encontro norte da Ponte do Pano, que fica adiante da estação de Oliveira do Bairro». E acrescenta, no período imediato, a seguinte informação, que neste momento me parece cheia de prudente oportunidade, já que naquela ponte da via-férrea se está efectuando uma meticulosa reparação reforçativa e cautelar:

«O péssimo terreno das Agras de Aveiro – os leitores muito provavelmente estarão a lembrar-se de que, por uma libra simbólica, o venerando e intrépido liberal Manuel José Mendes Leite «deu» todo o terreno atravessado por esses estirados aterros do então chamado «Vale do Curvo» – um vale situado pouco antes da estação do mesmo nome, em que uma boa ponte de tijolo, de 4 metros de abertura, construída com todo o esmero sobre uma estacaria de 10 metros e estrado de madeira, desapareceu uma noite, e o aterro enterrou-se mais de 8 metros, refluindo, o terreno natural, a montante e a jusante do aterro, até grande distância e sublevantando-se alguns metros». (2)

Aliás, mais que bastantemente é sabido o papel caloroso e apostolizador que José Estêvão – de quem Mendes Leite era o mais afectuoso e apegado amigo – tomou na defesa, pertinaz e cheia de convicções, dos caminhos-de-ferro em geral, e na localização de uma paragem estanciadora da praticamente totalidade dos comboios em Aveiro. Desse elemento de locomoção, que classificou como o mais democrático de todos – e essa opinião sustentou como das mais decisivas o patrono cívico da sua, nem sempre compreensiva e reconhecida e retribuidora de afecto prestante, já que sempre devotadamente servida, terra natal.

Não, por meros motivos de sentimental bairrismo / 15 / – que a sua isenta lucidez via sempre para além do círculo das badaladas restritas do campanário – mas, porque, assim, o recomendava o acesso pronto e desafogado, pelos mais modernos e eficientes meios, a um porto de mar, que então se repristinava – e que agora, em 1983, estamos prestes a fruir em dilatadas proporções que visam um «hinterland» rasgado até lonjuras internacionais.

Conhece-se, superabundantemente, como José Estêvão – e todos os esclarecidos espíritos com ele coligados nessa corrente que deu o «fontismo» – acreditava profundamente na acção estimuladora dos caminhos-de-ferro, e os advogava persuasivamente com o seu grande poder de dialéctica, eufónica, lógica e comunicativa, na Imprensa ou na Tribuna. (3)

Que, propriamente, como também por demais é conhecido, José Estêvão não escrevia. Mesmo para os jornais em que pontificou – e nunca dispensou – não escrevia, pois não haveria tipógrafo, por mais experimentado, que lhe lesse os gatafunhos hieroglíficos, mas ditava – a começar invariável, reinadia e inconsequentemente por um ponto final. Ditava os artigos de qualquer extensão – mesmo que, entretanto, lhe sobreviesse algum ocasional acesso de sono, inconsequente, mas imperativo e invencível – se envolvessem princípios a que tinha aderido, com o vigor inteiro do seu desfrenado espírito, empolgante e generoso.

Mas, para usarmos linguajar ajustado ao tema, refaçamos as agulhas e volvamos ao rumo principal. Púnhamos mesmo termo a esta digressão evocativa, com este histórico movimento de terras. As margens do Tejo não faziam prever qualquer contratempo semelhante no Barreiro, e que ainda hoje ocasionaria apreensões. O grande desenvolvimento do Barreiro resultou da fixação nos seus limites do términus da linha férrea do Sul e Sueste, cuja exploração começou a efectuar-se em 1861.(4) E púnhamos aqui, contra a predilecção estevaniana, o ponto final, que já é tempo.

EDUARDO CERQUEIRA

______________________________________________

(1)Obra cit., pág. 24.

(2)Obra cit., pág. 24.

(3)In José Estêvão, Estudo e Colectânea, Edição da C. M. de Aveiro, 1962, pág. 197 a 199.

(4)Enciclopédia «Verbo» – Vol. 4, Col. 643.

 

 

Página anterior

Índice Geral

Página seguinte