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Boletim n.º 1 - Ano I - 1983

AVEIRO

Aveiro, que sítio esquisito... Passei lá há séculos a caminho do Porto, queriam à força que eu visitasse o Vouga: uma cidadezinha vulgar, horrorosa, a cheirar a peixe e a podre.

À tarde passeámos em silêncio por Aveiro, e das ruas, das casas, das pracetas, desprendia-se um aroma húmido e morno, um bafo animal de coisa viva que o frio de Fevereiro assassinava...

Ia anoitecendo em Aveiro, alguns anúncios de lojas piscavam já, dentro em breve as fieiras dos candeeiros da rua acender-se-iam bairro por bairro, hesitantes de início, reduzidos aos filamentos das lâmpadas, ganhando força depois, inchadas com acne de luz, suspensas dos seus pontos de interrogação de metal, e o Vouga sumir-se-ia nas trevas como um gigantesco pântano submerso.

... Ancorei no Iodo e na lama de Aveiro como os botes sem préstimo, reduzidos ao esqueleto das travessas, comidos pelos mexilhões e pelas lulas.

... À medida que a manhã se dilatava e crescia sentia-se como se circulasse numa luminosidade de sótão, num ovo de vidro, numa espécie de cristal de pus que modificava os sons, reagrupava as árvores numa ordem diferente, dividia o vento e trazia consigo o odor rombo da ria, semelhante ao cheiro podre de um cadáver.

... As gaivotas gritavam estridentes, nas paredes do meu crânio, os eucaliptos oscilavam, a primeira revoada de pardais soltou-se em desordem do pomar na direcção da mata...

Consegui distinguir os contornos da cidade do outro lado da ria, que se apequenavam devagar até se sumirem por completo no nevoeiro descolorido da manhã.

ANTÓNIO LOBO ANTUNES

 

 

 

Formoso é o aspecto de Aveiro que, sentada num extenso tapete de verdura, sob o azul dum céu puríssimo, vê deslizar a seus pés as plácidas águas da ria... esse lago em que se unem em fraternal abraço as águas do Oceano com as do Vouga.

Marques Gomes

 

 

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