AVEIRO
Aveiro, que sítio esquisito... Passei lá há séculos a
caminho do Porto, queriam à força que eu visitasse o Vouga: uma
cidadezinha vulgar, horrorosa, a cheirar a peixe e a podre.
À tarde passeámos em silêncio por Aveiro, e das ruas, das
casas, das pracetas, desprendia-se um aroma húmido e morno, um bafo
animal de coisa viva que o frio de Fevereiro assassinava...
Ia anoitecendo em Aveiro, alguns anúncios de lojas
piscavam já, dentro em breve as fieiras dos candeeiros da rua
acender-se-iam bairro por bairro, hesitantes de início, reduzidos aos
filamentos das lâmpadas, ganhando força depois, inchadas com acne de
luz, suspensas dos seus pontos de interrogação de metal, e o Vouga
sumir-se-ia nas trevas como um gigantesco pântano submerso.
... Ancorei no Iodo e na lama de Aveiro como os botes sem
préstimo, reduzidos ao esqueleto das travessas, comidos pelos mexilhões
e pelas lulas.
... À medida que a manhã se dilatava e crescia sentia-se
como se circulasse numa luminosidade de sótão, num ovo de vidro, numa
espécie de cristal de pus que modificava os sons, reagrupava as árvores
numa ordem diferente, dividia o vento e trazia consigo o odor rombo da
ria, semelhante ao cheiro podre de um cadáver.
... As gaivotas gritavam estridentes, nas paredes do meu
crânio, os eucaliptos oscilavam, a primeira revoada de pardais soltou-se
em desordem do pomar na direcção da mata...
Consegui distinguir os contornos da cidade do outro lado
da ria, que se apequenavam devagar até se sumirem por completo no
nevoeiro descolorido da manhã.
ANTÓNIO LOBO ANTUNES
Formoso é o aspecto de Aveiro que, sentada num extenso
tapete de verdura, sob o azul dum céu puríssimo, vê deslizar a seus pés
as plácidas águas da ria... esse lago em que se unem em fraternal abraço
as águas do Oceano com as do Vouga.
Marques Gomes
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