AS PROCISSÕES DE AVEIRO
... O homem da faixa marítima
onde nasci, que ama a Deus porque ama as procissões, requintadamente
artísticas, com uma ordem e disciplina admiráveis, sem balandraus de
paninhos nem chimpanzés como as de quase todos os outros pontos do país
– onde ele ostenta as suas luvas, o seu calção e meia, o seu sapato de
entrada baixa, a sua opa de seda, o seu donaire, a sua elegância, a sua
nativa distinção, fidalgo de nascença ...
... Quem viu uma procissão
em Aveiro não viu decência maior em parte nenhuma.
Aqueles homens da beira-mar
andavam ontem na sua faina, nas companhas de S. Jacinto ou da
Costa-Nova-do-Prado, dentro dos grandes barcos de proa esguia, a remar,
a deitar as redes, ou, à pancada de água, a dirigir as manobras do saco;
de ceroulas arregaçadas, de peito ao léu, cheio de escamas, gritando a
todo o pulmão. E hoje, ali vão eles, irrepreensivelmente bem postos, de
fato preto, de calçado a luzir, de gravata branca e de luvas brancas, de
opa de seda com cordão de borlas de ouro!
Quem há como a sr.ª
Marquinhas Carvalho para compor um anjinho?! Aquelas cabeças
encaracoladas, aureoladas e floridas, são na realidade as cabeças dos
serafins que Murillo fazia brotar das nuvens que emolduravam as suas
Virgens; aquele ouro, distribuído com sobriedade e com arte, está
infinitamente longe de ser, como noutras partes, a exposição ambulante
de algum ourives de feira; e os sapatinhos de cetim branco amoldam-se
tão perfeitamente ao formato dos pequeninos pés que os calçam, que por
um lado não fazem a menor ruga, e por outro não estorvam o menor
movimento, a menor contracção.
Os andores, a maior parte
das vezes, são verdadeiros encantos de ornato: nem uma coisa a mais, nem
uma coisa a menos; e cada coisa no seu lugar próprio!
Os pendões bordados e as
cruzes de prata, a sequência grave das irmandades, o brilho das vestes
litúrgicas, a custódia debaixo do pálio, a «música-nova» ou a «música-velha»
a bulir-nos na alma, o nosso esplêndido povo pelas janelas e pelas ruas,
tudo se apresenta tão bem, que digam-me se eu não tenho razão em repetir
o que escrevi ao princípio: quem viu uma procissão em A veiro não viu
decência maior em parte nenhuma.
Homem Cristo
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