AVEIRO
Quem surriba chão de areia não encontra onde enterrar
raízes de esperança e quem irriga duna virgem sabe que mija numa
peneira! Quem lança a semente num ventre que é maninho não pode ter
esperanças de fecundação. E por isso, o Gafanhão, antes de cultivar a
lomba, teve de corrigir-lhe a esterilidade servindo-se da Ria que lhe
passa à ilharga, procurando nela a nata com que amamentou a semente que
deixou cair, amorosamente, naquele chão danado. E humanizou a duna...
A paisagem que nos cerca é macia e acetinada. Um não sei
quê de aguarela almofada a retina de um sossego repousante e calmo e,
por muito que se trepe no relevo do distrito até ao cume dos montes,
avista-se sempre uma nesga de água de superfície serena e polida a
refrescar o conjunto da paz e de lirismo...
A Ria estende-se em canais, em esteiros, em valas, em
fiozinhos de água, dividindo-se e subdividindo-se até ao capilar,
entrando pela terra dentro, recortando-a e irrigando-a de água salgada,
ou, pelo menos, salobra, e que se vai adocicando à medida que foge do
mar e se estende, por aí fora, a servir de espelho a uma lavoura anfíbia
que lança a semente ao chão e penteia o fundo lodoso das cales, que
surriba terra até sentir os pés encharcados e pesca pimpões nas valas
intercalares nos fugidios momentos de lazer.
Os longes de água são emoldurados por um debrum
delgadinho – topo de planície rasa povoada de casas alapadas – e tem-se
a sugestão de que a terra se envergonha e se humilha perante a
imensidade da laguna, esfumando-se e diluindo-se no horizonte de
encontro ao perfil violeta dos montes das distâncias...
Em certas manhãs, do iradas pelo sol nascente, a Ria
parece toda um espelho onde, apenas, um trémulo de evaporação – ténue e
vibrátil – põe um vestígio de movimento ritmado.
E, então, os malhadais, os montes de sal, os palheiros
exíguos e pintados de zarcão, duplicam-se invertidos, nas águas quietas
onde, de vez em quando, uma gaivota, maleabilíssima e ágil, raspa uma
tangente quase imperceptível.
As pálpebras cerram-se sobre a pupila magoada por esta
duplicação da luz que se remira no espelho da água e, no silêncio
inundado de sol, o chap chap de uns remos, ou o golpe da ponta de uma
vara que empurram o barco que desliza, põem uma nota fugidia de
onomatopeia...
O moliceiro! Deixemos-lhe lá a origem para os catadores
de raízes; entreguemos-lhe a árvore genealógica aos pesquisadores de
impossíveis e fixemos os olhos no seu perfil de agora, presente sobre o
alçado da nossa visão, a bolinar quase contra o vento, todo empertigado
na sua proa policromada de ornatos e figurinhas polvilhadas de ironia e
de malícia, a ilustrar textos ingénuos salpicados de harmoniosos erros
de ortografia.
Deslizam na água, vaidosos e vibrantes, com os ancinhos
descomunais a arrastar, com a borda rasando o lume de água, sob o peso
do moliço de um verde fresco e intenso, a vela a panear tocada pela
aragem levezinha, quando viram de rumo para novo bordo.
Homens da terra a pentear o leito da laguna para
fertilizar as dunas – vidro moído ainda há poucos anos estéril, ainda há
poucos anos maninha – terra que parecia gafada, a terra da Gafanha!
Frederico de Moura
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