AVEIRO
Quem, por uma calma e luminosa manhã de Agosto ou
Setembro, deixar a cidade, seguindo a estrada da Barra, e, parando a
meio caminho, pelas alturas do lago do Paraíso, circunvagar em torno a
vista, terá a larga visão panorâmica duma das mais admiráveis e soberbas
paisagens do nosso país.
Luís de Magalhães
Olhando retrospectivamente até aos meus tempos da gaiato, raros pontos
de Aveiro, compreendidos no âmbito do meu circunscrito «mundo»
explorado, me merecem tão íntima simpatia e me proporcionam tão vivazes
e saudosas evocações como o Rossio... Lá me despertaram, novas e
incitantes, as emulações, provei o travo da derrota e o gosto de vencer,
comecei a temperar no viver de relação o ânimo amornecido no mimado
aconchego do ambiente familiar, cimentei as primeiras amizades.
No Rossio travei as minhas batalhas de lídimo «cagaréu», ripostando à
pedrada, por sobre o fosso do Canal Central, às provocações inocentes
dos antagonistas «ceboleiros»; desarvorei em corrimaças desordenadas,
repetidas até soltar pela boca ofegante os bofes exauridos, na guerra
das «nações», na «bandeira» ou na «barra».
Para esse palco desatravancado, franco às traquinices do rapazio, ilha
de liberdade nos domínios da burguesa compostura austeramente vigiada
pela férula policial, transplantei com um grupo de camaradas constantes
– já reduzido nestes cinco lustres com algumas baixas irremissíveis – as
apaixonantes lutas de polícias e ladrões com que as emotivas fitas em
séries estimulavam a nossa avidez de pelejas, algumas vezes menos
incruentas do que as nossas intenções deixariam prever...
No Rossio, tirante o período da «Feira de Março», tão pródiga de
encantos e atractivos, era, aliás, o campo de largas fronteiras, ao
mesmo tempo isento de aperreações e ao alcance dos zelos paternais, onde
se consentia libérrima independência aos impulsos espontâneos do
irrequietismo dos filhos famílias. Era o parque infantil, sem limitações
regulamentares além das aceites pelo mútuo consenso e a geral
compreensão das conveniências da comunidade, numa época em que as
crianças não haviam merecido aos adultos a instituição de recintos
adequadamente apetrechados ao seu divertimento e exercício, mas elas
mesmas, com o próprio engenho e inventiva, com inesgotável imaginação
criadora, com o recurso das suas intactas potencialidades, supriam
sobejamente a falta...
O Rossio que então conheci, e tão nítido revive na minha memória, pouco
difere do actual, apenas mais limpo de ervas e cardos, mais
regularizado, emoldurado num renque de palmeiras – sucessoras mais
afortunadas de umas pobres árvores sem viço que sucessivas vereações e
as «festas da árvore», tão injustamente esquecidas e lançadas no
ridículo, não lograram fazer vingar – e mais liberto das travessuras do
rapazio. Pouco mudou desde então...
Eduardo Cerqueira
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