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Boletim n.º 1 - Ano I - 1983

AVEIRO

Quem, por uma calma e luminosa manhã de Agosto ou Setembro, deixar a cidade, seguindo a estrada da Barra, e, parando a meio caminho, pelas alturas do lago do Paraíso, circunvagar em torno a vista, terá a larga visão panorâmica duma das mais admiráveis e soberbas paisagens do nosso país.

Luís de Magalhães

 

 

Olhando retrospectivamente até aos meus tempos da gaiato, raros pontos de Aveiro, compreendidos no âmbito do meu circunscrito «mundo» explorado, me merecem tão íntima simpatia e me proporcionam tão vivazes e saudosas evocações como o Rossio... Lá me despertaram, novas e incitantes, as emulações, provei o travo da derrota e o gosto de vencer, comecei a temperar no viver de relação o ânimo amornecido no mimado aconchego do ambiente familiar, cimentei as primeiras amizades.

No Rossio travei as minhas batalhas de lídimo «cagaréu», ripostando à pedrada, por sobre o fosso do Canal Central, às provocações inocentes dos antagonistas «ceboleiros»; desarvorei em corrimaças desordenadas, repetidas até soltar pela boca ofegante os bofes exauridos, na guerra das «nações», na «bandeira» ou na «barra».

Para esse palco desatravancado, franco às traquinices do rapazio, ilha de liberdade nos domínios da burguesa compostura austeramente vigiada pela férula policial, transplantei com um grupo de camaradas constantes – já reduzido nestes cinco lustres com algumas baixas irremissíveis – as apaixonantes lutas de polícias e ladrões com que as emotivas fitas em séries estimulavam a nossa avidez de pelejas, algumas vezes menos incruentas do que as nossas intenções deixariam prever...

No Rossio, tirante o período da «Feira de Março», tão pródiga de encantos e atractivos, era, aliás, o campo de largas fronteiras, ao mesmo tempo isento de aperreações e ao alcance dos zelos paternais, onde se consentia libérrima independência aos impulsos espontâneos do irrequietismo dos filhos famílias. Era o parque infantil, sem limitações regulamentares além das aceites pelo mútuo consenso e a geral compreensão das conveniências da comunidade, numa época em que as crianças não haviam merecido aos adultos a instituição de recintos adequadamente apetrechados ao seu divertimento e exercício, mas elas mesmas, com o próprio engenho e inventiva, com inesgotável imaginação criadora, com o recurso das suas intactas potencialidades, supriam sobejamente a falta...

O Rossio que então conheci, e tão nítido revive na minha memória, pouco difere do actual, apenas mais limpo de ervas e cardos, mais regularizado, emoldurado num renque de palmeiras – sucessoras mais afortunadas de umas pobres árvores sem viço que sucessivas vereações e as «festas da árvore», tão injustamente esquecidas e lançadas no ridículo, não lograram fazer vingar – e mais liberto das travessuras do rapazio. Pouco mudou desde então...

Eduardo Cerqueira

 

 

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