AVEIRO
Escrevo-te e não sei quem és – como face para sempre
talhada! A mais antiga memória que guardo de ti é a ria a transbordar
por praças e vielas, nas marés vivas. Sob os lampiões dos Arcos, Rua dos
Mercadores abaixo, vogavam bateiras conduzindo os teus íncolas (ia a
dizer os teus doges) às soleiras das portas. E eu batia palmas de menino
com brinquedo, na janela da avó. Casa escura, com mofo a rato, olhares
de José Estêvão no louceiro antigo, um opúsculo do Marques Gomes a
dizer-me que um tio de antanho fora decapitado pelo D. Miguel, grades de
pimpons nas sacadas de pedra antiga – em que um dia entalei a cabeça
(para retomar essa tradição, quem sabe?), tendo sido liberto, depois de
muito suor e ferros, por um serralheiro do Mindelo.
Cá fora, os teus ares lavados e tranquilos, escalas
tocadas ao piano dos suplícios prendados, uma passagem por baixo do
andor de Santa Clara para cortar o freio da língua, luta pelas cavacas
do S. Gonçalinho, musicatas nos coretos – e pouco mais...
Salto o calendário e fustiga-me o rosto a saibrada que o
vento erguia, corro pela Mina, mergulho nas Pirâmides, pergunto pelo
dicionário ao sapateiro da Fonte Nova (...) encaixilho num dos bancos do
Jardim uma conversa entre Homem Cristo e Rocha e Cunha, tenho uma
icterícia de ovos moles...
Vamos crescendo, os dois, já sem laranjas roubadas na Rua
do Gravito e sem aventuras nocturnas pelos arrabaldes – e descubro a
beleza com que te despedes (te despes) do Sol, perco-me em versos pelos
carreiros das marinhas, levo a pasta da namorada à Estação, invento um
jornalzinho de estudantes, colaboro no crime nefando de manter (sob a
pêra de José Estêvão!) o anãozito das sentinas... Aprendo a respeitar
professores como João Joaquim Pires, José Pereira Tavares, Francisco de
Assis Maia, George Agostinho da Silva, António Salgado Júnior, guardo um
profundo desprezo por outros, peço dez tostões à minha mãe para comprar
“O Diabo”, lanço uma cervantina burricada pelo teu centro,
compenso o José Estêvão ensinando-lhe (junto às grades da estátua) o
canto em coro da Internacional – conspiro adolescentemente...
Que te aconteceu entretanto? Não dou fé disso. Estavas
aí, talvez. Mas há tanto que ler e esgravatar, que só me lembro de te
ter nos braços nos bailes dos Bombeiros (Farenheit Adão & Eva),
de falar em lobos de Alsácia aos bigodes e à barretina de Homem Cristo,
de colher nas palmas das mãos o frio de aço de uma das tuas tão singelas
(mas tão típicas!) pontezinhas...
E redescubro, olhando-o melhor, que eras uma vilazinha
apenas, perdida nas brumas do passado...
Como eu, cresces desajeitada e errabunda. Largas os
calções, engravatas-te, ganhas borbulhas na cara, abres risca na cabeça,
asfaltas as pantalonas, escanhoas o arvoredo até ao sangue, pões moderno
onde devia ser antigo e antigo onde devia ser moderno, encastelas
pornografia barata no fórum administrativo, tiras o nome do teu génio
tutelar do frontispício do Liceu, cintas os novos edifícios escolares de
casarios que os abafam, coqueteias com um arquitecto francês a perda do
teu carácter, ergues altos fornos nas costas da tua sentinela cívica...
Deliras, ó púbere! (...)
Passaram os tempos em que davas ovos moles e políticos.
(Os ovos eram bons, hoje menos. Os políticos óptimos, mas deu neles a
pílula). Deixaste de produzir Cartas Constitucionais, mas ainda
promulgas Cartas Comerciais de week end à John Bull, que barcos
de guerra saúdam desflorando-te o porto. E, todavia, és pura ainda, ó
Aveiro! Tens o sal, tens o sol, tens o céu encaixilhado nas marinhas – e
o bacalhau, sem shorts nem nada, a bronzear-se nos tabuleiros...
Serás cidade um dia, ó vila de outrora! Entre les deux ton coeur
balance indecisamente – e o meu com o teu... Mas o meu com cãs
e, o teu, indesvendado ainda, como sempre! Foste noiva, foste esposa e
és viúva dum só Homem: o que filtra bronze num pedestal eterno... Dele
te ficou o segredo de Juvêncio, cujas águas te remoçam transbordando em
plenilúnio. Tens dilúvios aguazados, minha Querida, e arcas de Noé que
trazem da Terra Nova os hirsutos precursores dos hippies de hoje... Com
eles dormes e com eles refloresces, minha Incógnita! O bronze e a
salmoira te protejam até à consumação dos séculos! Ámen.
Mário Sacramento
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