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Boletim n.º 1 - Ano I - 1983

AVEIRO

 

Escrevo-te e não sei quem és – como face para sempre talhada! A mais antiga memória que guardo de ti é a ria a transbordar por praças e vielas, nas marés vivas. Sob os lampiões dos Arcos, Rua dos Mercadores abaixo, vogavam bateiras conduzindo os teus íncolas (ia a dizer os teus doges) às soleiras das portas. E eu batia palmas de menino com brinquedo, na janela da avó. Casa escura, com mofo a rato, olhares de José Estêvão no louceiro antigo, um opúsculo do Marques Gomes a dizer-me que um tio de antanho fora decapitado pelo D. Miguel, grades de pimpons nas sacadas de pedra antiga – em que um dia entalei a cabeça (para retomar essa tradição, quem sabe?), tendo sido liberto, depois de muito suor e ferros, por um serralheiro do Mindelo.

Cá fora, os teus ares lavados e tranquilos, escalas tocadas ao piano dos suplícios prendados, uma passagem por baixo do andor de Santa Clara para cortar o freio da língua, luta pelas cavacas do S. Gonçalinho, musicatas nos coretos – e pouco mais...

Salto o calendário e fustiga-me o rosto a saibrada que o vento erguia, corro pela Mina, mergulho nas Pirâmides, pergunto pelo dicionário ao sapateiro da Fonte Nova (...) encaixilho num dos bancos do Jardim uma conversa entre Homem Cristo e Rocha e Cunha, tenho uma icterícia de ovos moles...

Vamos crescendo, os dois, já sem laranjas roubadas na Rua do Gravito e sem aventuras nocturnas pelos arrabaldes – e descubro a beleza com que te despedes (te despes) do Sol, perco-me em versos pelos carreiros das marinhas, levo a pasta da namorada à Estação, invento um jornalzinho de estudantes, colaboro no crime nefando de manter (sob a pêra de José Estêvão!) o anãozito das sentinas... Aprendo a respeitar professores como João Joaquim Pires, José Pereira Tavares, Francisco de Assis Maia, George Agostinho da Silva, António Salgado Júnior, guardo um profundo desprezo por outros, peço dez tostões à minha mãe para comprar “O Diabo”, lanço uma cervantina burricada pelo teu centro, compenso o José Estêvão ensinando-lhe (junto às grades da estátua) o canto em coro da Internacional – conspiro adolescentemente...

Que te aconteceu entretanto? Não dou fé disso. Estavas aí, talvez. Mas há tanto que ler e esgravatar, que só me lembro de te ter nos braços nos bailes dos Bombeiros (Farenheit Adão & Eva), de falar em lobos de Alsácia aos bigodes e à barretina de Homem Cristo, de colher nas palmas das mãos o frio de aço de uma das tuas tão singelas (mas tão típicas!) pontezinhas...

E redescubro, olhando-o melhor, que eras uma vilazinha apenas, perdida nas brumas do passado...

Como eu, cresces desajeitada e errabunda. Largas os calções, engravatas-te, ganhas borbulhas na cara, abres risca na cabeça, asfaltas as pantalonas, escanhoas o arvoredo até ao sangue, pões moderno onde devia ser antigo e antigo onde devia ser moderno, encastelas pornografia barata no fórum administrativo, tiras o nome do teu génio tutelar do frontispício do Liceu, cintas os novos edifícios escolares de casarios que os abafam, coqueteias com um arquitecto francês a perda do teu carácter, ergues altos fornos nas costas da tua sentinela cívica... Deliras, ó púbere! (...)

Passaram os tempos em que davas ovos moles e políticos. (Os ovos eram bons, hoje menos. Os políticos óptimos, mas deu neles a pílula). Deixaste de produzir Cartas Constitucionais, mas ainda promulgas Cartas Comerciais de week end à John Bull, que barcos de guerra saúdam desflorando-te o porto. E, todavia, és pura ainda, ó Aveiro! Tens o sal, tens o sol, tens o céu encaixilhado nas marinhas – e o bacalhau, sem shorts nem nada, a bronzear-se nos tabuleiros... Serás cidade um dia, ó vila de outrora! Entre les deux ton coeur balance indecisamente – e o meu com o teu... Mas o meu com cãs e, o teu, indesvendado ainda, como sempre! Foste noiva, foste esposa e és viúva dum só Homem: o que filtra bronze num pedestal eterno... Dele te ficou o segredo de Juvêncio, cujas águas te remoçam transbordando em plenilúnio. Tens dilúvios aguazados, minha Querida, e arcas de Noé que trazem da Terra Nova os hirsutos precursores dos hippies de hoje... Com eles dormes e com eles refloresces, minha Incógnita! O bronze e a salmoira te protejam até à consumação dos séculos! Ámen.

Mário Sacramento

 

 

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